quinta-feira, 14 de julho de 2011

Como reduzir os juros

FIOCCA, Demian. “Como reduzir os juros”. Valor Econômico. São Paulo, 14 de julho
de 2011.

Dos interessantes artigos publicados pelo Valor sobre câmbio, juros e inflação, emergiram mais perplexidades do que consensos. Modelos abstratos não dão conta desse misterioso equilíbrio brasileiro com juros reais tão altos. A explicação está no exame mais concreto dos mecanismos de transmissão da política monetária. Face a juros reais médios de 6% a 7%, normalmente se pergunta quais condições excepcionais do Brasil exigem tamanho contrapeso na política monetária. Uns especulam se o brasileiro tem uma inusual propensão a consumir e somente juros muito altos podem fazê-lo poupar. Outros dizem que é a forte expansão de gastos públicos que exige a contenção do setor privado. Ou seria para compensar o crédito direcionado, segurando o crédito livre. Talvez um alto risco da dívida pública, ou a incerteza jurídica etc. Nessas hipóteses, a ideia é quase sempre que os juros altos estão compensando alguma outra coisa anômala. Só que não estão. E é essa a grande peculiaridade do Brasil.
Em qualquer parte do mundo, juros reais de mais de 5% deveriam conter o mercado de crédito. Mas, no Brasil, entre 2004 e 2008, por exemplo, os juros reais foram de 9,1% em média e o crédito livre cresceu 25,6% ao ano!
Ou seja, a peculiaridade do Brasil é a baixa eficiência dos próprios juros de curto prazo: muitos, para pouca contenção do mercado privado de crédito. E note-se que, contrariamente ao que alguns disseram, o crédito direcionado (BNDES, agrícola e habitacional) cresceu menos. Aumentou 17,1% ao ano no mesmo período. Ou seja, foi o crédito livre que os juros reais muito altos não conseguiram conter. A demanda agregada teria crescido ainda mais, exigindo juros ainda mais altos, se o crédito direcionado reagisse como o crédito livre.
A ideia é quase sempre que a taxa elevada está compensando alguma outra coisa anômala. Só que não estão Mas deixemos de lado o crédito direcionado e examinemos o crédito livre, que é a ponta final do mecanismo de transmissão pelo qual a Selic deveria conter a demanda e segurar a inflação.
Na maior parte do mundo, a dívida pública é prefixada e de longo prazo. Os bancos são grandes detentores de dívida pública e sofrem perdas quando os juros sobem. Essa perda de capital deixa os bancos mais cautelosos. Eles então alteram suas políticas, no sentido de conter a oferta de crédito. Deveria funcionar assim: o Banco Central (BC) muda os juros de curto prazo; o mercado corrige as taxas de longo prazo na mesma direção; estes provocam ganhos ou perdas de capital; que influenciam a política bancária; que altera a oferta de crédito; que afeta a demanda agregada; que influencia a inflação.
No Brasil, grande parte da dívida pública é indexada aos juros de curto prazo. Assim, os ganhos ou perdas de capital dos bancos são menos relevantes e não alteram a oferta de crédito na mesma intensidade. Além disso, como essa dívida corresponde a 24% do Produto Interno Bruto (PIB), cada alta dos juros de 1% expande a demanda agregada em 0,24% do PIB, pela maior injeção de dinheiro na economia, pago aos investidores de curto prazo. Esse efeito indesejado é insignificante nas economias com dívida pública prefixada.
Desse modo, é como se no Brasil a Selic fosse um freio que, além de ser fraco, ainda estivesse enganchado no acelerador. Pelo lado do crédito livre, contém menos a demanda que em outras economias. Pelo aumento imediato do pagamento de juros, estimula a demanda. O efeito líquido felizmente ainda está na direção esperada. Ou seja, o carro perde velocidade. Mas gasta muito mais pastilha de freio e combustível ao mesmo tempo.
Essa baixa eficiência da Selic significa que os juros no Brasil são altos, não porque precisam ser altos, mas porque podem ser altos. A boa notícia é que eles também podem ser mais baixos. Imagine-se que o efeito "freio fraco com acelerador enganchado" fosse neutro, ou seja, que as forças opostas do freio e do motor se compensassem. Nesse caso, o carro pode manter a mesma velocidade tanto freando e acelerando muito (com juros altos), como freando e acelerando pouco (com juros baixos).
A baixa eficiência da Selic implica que uma taxa mais baixa provavelmente não trará um impulso expansionista tão forte e, portanto, demandará ajustes apenas moderados em outros condicionantes da demanda agregada. A consequência teórica disso é que é promissora a intuição de Olivier Blanchard, economista-chefe do Fundo Monetário Internacional (FMI), de que o Brasil pode apresentar dois equilíbrios, um com juros
altos e outro com normais.
A consequência prática é que temos um caminho viável para conduzir a economia a taxas de juros de curto prazo mais próximas dos padrões mundiais. Não se trata de questões mitológicas, como mudar a psicologia de um brasileiro supostamente ultra-consumista, ou tentar convencer-se da hipótese de que um déficit público de apenas 2,5% do PIB e uma dívida/PIB em queda afugentam credores. Trata-se de desenhar uma transição da política monetária mesmo, utilizando instrumentos complementares, como os controles macroprudenciais. Fazer uso menos intenso da Selic e uso mais intenso de instrumentos que tenham o mesmo efeito sobre a oferta de crédito, sem o efeito contrário e indesejado da injeção de dinheiro na economia.
Uma transição gradual combinaria a manutenção do elevado superávit primário e, possivelmente, juros de longo prazo nos níveis atuais, para evitar uma inflação de ativos. É desejável que o efeito compensatório das medidas macroprudenciais seja cada vez mais mensurado e explicitado, visando à coordenação de expectativas. Em todo o mundo, a discussão sobre mecanismos de transmissão da política monetária é mais familiar a profissionais de Bancos Centrais do que a macroeconomistas. Talvez por isso ela não receba espontaneamente grande atenção. No Brasil, porém, a visível baixa eficiência da Selic demanda esse tratamento menos abstrato e mais detalhado da política monetária.  competência que a diretoria do BC mostrou neste início de ano, debelando com serenidade o suposto risco de descontrole da inflação propagandeado por alguns economistas, mostra que o Brasil está à altura de superar mais esse desafio.

Demian Fiocca é autor de "A Oferta de Moeda na Macroeconomia Keynesiana". Foi presidente do BNDES e da Nossa Caixa. É sócio-diretor da Mare Investimentos.

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