sábado, 13 de agosto de 2011

O outro lado do “estamos todos juntos nessa”



Os tumultos são o outro lado da moeda do “nós estamos juntos nessa”. Não só porque, como se viu na Grécia e na Espanha, há um limite para o que se pode esperar que as pessoas aceitem antes que elas decidam que “agora chega”. Mas, também, porque uma sociedade que vê crescer a desigualdade e nada faz a respeito é uma sociedade na qual, fatalmente, coisas assim ocorrerão. O artigo é de Rodrigo Nunes.

Em 2005, fui dos poucos brasileiros, fora a família, a comparecer a uma manifestação e missa em memória de Jean Charles de Menezes, em Londres. Ainda era permitido reunir-se em frente ao Parlamento – hoje não é mais– e, depois de rápida vigília, pusemo-nos a andar na direção da Catedral de Westminster, em Victoria, local da missa. Quando nosso pequeno grupo estava a caminho, uma senhora bem-vestida, que vinha na direção oposta, gritou: “Mas o que vocês querem? No Brasil, a polícia mata rapazes como ele todos os dias!”

A situação surpreendeu-me, também pelo que havia de improvável numa senhora como aquela pondo-se a gritar; sinal do quanto Londres se tornara uma cidade tensa nas semanas que se seguiram aos atentados de julho de 2005. Eu podia, até certo ponto, entender como ela se sentia – um dos aspectos mais insidiosos da política do medo é que, mesmo quando você está racionalmente consciente de como o medo comanda suas reações, ainda assim não consegue racionalizar o modo como se sente. Mas, evidentemente, a frase soou especialmente dolorosa para mim, tanto por parecer indicar o menor valor relativo da vida de um brasileiro (comparada à ameaça sentida contra as vidas de britânicos), como também porque era, em sentido estrito, verdade: qualquer pessoa, no Reino Unido, que seja minimamente informada a respeito do Brasil, já ouviu falar de nossa altíssima desigualdade social, e de como esta se traduz em uma prática policial brutal e altamente desigual.

É óbvio porque esse incidente voltou-me à memória logo que soube dos tumultos em Tottenham no fim de semana passado, dada a fagulha que acendou essa fogueira específica: a polícia ter matado um homem, quase da mesma idade que Menezes, em circunstâncias que – sobretudo depois de casos recentes, como o de Ian Tomlinson ou Smiley Culture – inevitavelmente parecem suspeitas. Acrescente-se a isso que a atual baixa histórica na confiança nas instituições públicas na Inglaterra, sobretudo depois do escândalo dos celulares grampeados por jornalistas, que expôs o modo como uma panelinha determinou décadas de agenda política; que a morte ocorreu numa área com um histórico de abuso policial passado e presente; que os padrões de vida estão em deterioração e que as perspectivas de futuro são cada vez mais sombrias; e que paira sobre todos a sensação de terem caído num “conto do vigário”, quando os impactos da crise parecem tão desproporcionalmente distribuídos, e “estar todos juntos nessa” parece significar coisas muito diferentes para os ricos e para os pobres. Com toda a sabedoria que nos é dada pelas coisas que já aconteceram, seria tentador dizer hoje que algo do tipo não tardaria em acontecer.

Em 1625, Francis Bacon publicou uma análise dos levantes (“sedições”), na qual distinguia entre causas materiais – o material inflamável – e causas ocasionais – os eventos contingentes que agem como fagulha. Há dois tipos de causas materiais: um grau de privação que se torna insuportável; e o descontentamento, que pode existir mesmo sem privação. Causa ocasional pode ser qualquer uma de várias fagulhas potenciais que, caindo sobre a matéria combustível existente, leve os indivíduos a “unir-se na injúria”. Se um governo deseja evitar levantes, conclui Bacon, não faz sentido concentrar-se nas causas ocasionais, que são relativamente imprevisíveis. É aos sentimentos de privação, de desempoderamento, de descontentamento que deve dar atenção; pois é só quando esses estão presentes que alguma coisa pode operar como o catalisador que une elementos que, até então, permaneciam relativamente dissociados, levando os que deles padecem ao ponto onde decidem agir – para mostrar, coletivamente, que “agora chega”.

Mas nem a existência de sofrimentos e carências, nem a ocorrência de uma “última gota” bastam para fazer agir um indivíduo ou uma multidão. Quando alguém escolhe correr o risco de cruzar uma fronteira em busca de vida melhor, quando alguém joga um tijolo contra uma vidraça, ou quando uma multidão decide enfrentar uma barreira policial, sempre há alguma coisa que não pode ser reduzida a quaisquer das causas, materiais ou ocasionais, pré-existentes. Enquanto as causas materiais podem ir-se acumulando ao longo de muito tempo, essa ‘alguma coisa’ é apenas um instante, o menor dos suplementos, mas sem ela nada acontece. Ao longo dos séculos, muita gente observou que o surpreendente não era que os levantes acontecessem, mas que não acontecessem com mais frquência. Com certeza, as razões pelas quais o Ancien Régime na França, Ben Ali na Tunísia ou Mubark no Egito foram derrubados não brotaram da noite para o dia; assim sendo, por que as pessoas demoraram tanto a agir – e por que, então, agiram quando agiram? É esse pequeno excesso subjetivo, que se sobrepõe às causas objetivas, que é sempre impossível de localizar.

À medida que a imagem do que aconteceu na Inglaterra nos últimos dias vai-se tornando mais clara, talvez se possa usar esse excesso subjetivo como critério para fazer distinções entre o aconteceu aqui ou acolá. Uma coisa é ser motivado pela urgência de manifestar, por quaisquer meios necessários (e muitas vezes pelos únicos meios pelos quais se fazer ouvir), anos e anos de raiva, frustrações, humilhações acumuladas. Outra coisa é, de repente, perder o medo, porque se descobre que, se o grupo for suficientemente grande, você finalmente vai poder se vingar da polícia, pelo menos uma vez. É outra coisa, ainda, calcular que uma força policial assoberbada e uma vitrine de loja quebrada são boa oportunidade para adquirir algumas coisas de graça. Independente de o quanto essas linhas possam ser ou venham a ser demarcadas, há três lições claras a aprender.

A primeira é que é um absurdo completo dizer que os tumultos de Londres nada tem a ver com política. Sem dúvida, muitos dos que participaram deles talvez não estivessem “pensando em política” enquanto agiam; e foi particularmente triste ver moradores dos bairros que tiveram suas vidas ameaçadas, suas casas e negócios destruídos, quando eles pertencem às mesmas comunidades e padecem dos mesmos males sociais que afligem os manifestantes. Mas não se pode confundir motivação subjetiva com causas materiais e ocasionais– as quais, como Bacon sabia, são de natureza eminentemente política. Não se trata de simples anomalia estatística que jamais alguém tenha visto banqueiros saqueando uma loja; tampouco sua refinada educação ou gosto sofisticado podem explicar isso. É óbvio que o fato de os saqueadores sempre serem os mais pobres diz algo sobre a distribuição da riqueza e das oportunidades numa sociedade. E no atual clima na Inglaterra, depois dos “resgates” aos bancos e do escândalo Murdoch/News of the World, talvez também demonstre que mais e mais pessoas começam a suspeitar que os banqueiros têm, de fato, acesso a meios mais eficientes, sancionados pelo estado, de saquear os outros. Isso quer dizer que fazer do plano de “austeridade” da coalizão Conservadores/LibDem a causa material e ocasional do que se viu em Londres é contar apenas metade da história. É preciso olhar para atrás, para décadas de exploração e desempoderamento, inclusive para o sentimento de que não faz diferença qual partido esteja no poder, será sempre apenas uma uma pequena fração da sociedade que terá seus interesses politicamente representados.

A segunda lição é a seguinte: os tumultos são o outro lado da moeda do “nós estamos juntos nessa”. Não só porque, como se viu na Grécia e na Espanha, há um limite para o que se pode esperar que as pessoas aceitem antes que elas decidam que “agora chega”. Mas, também, porque uma sociedade que vê crescer a desigualdade e nada faz a respeito é uma sociedade na qual, fatalmente, coisas assim ocorrerão.

Há um “contrato social” perverso que se vê em cidades como Rio de Janeiro, Joanesburgo ou Cidade do México – onde uma pequena elite troca seu acesso desproporcional a riqueza, oportunidades e representação política, pela vida em condomínios, o gasto de fortunas em segurança e o medo. A mais clara ilustração disso talvez venha daqueles pontos nas favelas da Zona Sul do Rio de Janeiro que se tornaram áreas militarizadas nas quais o estado brasileiro não entra. Olhando do alto as áreas mais ricas da cidade, das quais estão muito perto, elas parecem dizer: “podemos não ter bem-estar, podemos não ter voz na política, mas estamos aqui. Olhem por cima do ombro e vocês verão: estamos juntos nessa”.

Claro, os problemas sociais na Europa estão longe desse nível. Mas o importante aqui é ressaltar que aceitar a desigualdade é um pacto mefistofélico: entra-se numa espiral em que se troca o acesso ao consumo e ao privilégio (mesmo que seja o duvidoso privilégio de poder pagar por serviços de segurança) por direitos: o direito de andar livremente sem medo, o direito de usufruir de bons serviços públicos etc. Você pode ter um carro do ano, mas se seu carro for roubado ou quebrar, porque a cidade foi inundada, o transporte público será ruim ou perigoso demais para que você possa usá-lo. Você pode ter sapatos ridiculamente caros, mas alguém, um dia, pode decidir tirá-los de você. Saques e criminalidade são, na verdade, o outro lado daquela espiral; aquilo que a compensa, como uma espécie de mecanismo “não-oficial” (ainda que ineficaz) de redistribuição de riqueza. Acabem com a infraestrutura e com os serviços comuns, substituam-nos por consumo, e os que não podem consumir, mas são diariamente chamados a fazê-lo, consumirão “por outros meios”.

Não resolvam essas questões, e elas criarão raízes. Veja-se, por exemplo, o controle territorial que hoje têm os cartéis de droga em várias regiões do México; ou como o Primeiro Comando da Capital conseguiu paralisar em São Paulo duas vezes (nem tão diferente do que se viu em Londres nos últimos dias). E nenhuma força policial, por mais de ferro que seja sua mão, consegue interromper essa dinâmica. Os lugares onde a disparidade social é maior tendem a ser aqueles em que as polícias são, mais claramente, um instrumento brutal de proteção dos ricos contra os pobres, e, ainda assim, entre os mais violentos do mundo. O fato de serem um inferno para os pobres não faz deles um paraíso. Talvez os super-ricos – os que, nessas cidades, sobrevoam as ruas em seus helicópteros – nada vejam. Todos os demais entram, com mais ou com menos, na “vaquinha” para pagar o preço desse pacto.

No final das contas, então, os “baderneiros” da Inglaterra não precisam estar “pensando em política” para que a mensagem que enviam seja política. Pois a última lição a ser tirada aqui nada tem de diferente daquela de protestos “explicitamente” políticos, na Grécia, Espanha ou Israel: o fosso que separa ricos e pobres aumenta dia a dia, e a grande maioria se sente cada vez mais passada para trás. Se não se quer deixar que as coisas fiquem ainda mais feias, a hora para mudar de rumo é agora.

Quando a Espanha conquistou a Copa do Mundo de futebol, Barcelona, uma publicação argentina sarcasticamente batizada em homenagem ao destino preferido dos migrantes daquele país, celebrou a conquista com uma manchete gozadora: “Crise, desemprego, miséria, fim do estado de bem-estar, rendição ao FMI e sucesso nos esportes: as nações mais pobres do mundo saúdam os espanhóis – Bem-vindos ao Terceiro Mundo!”. Além de ser uma ótima piada, a manchete faz uma observação pertinente: por que aquilo que é cristalino para as pessoas do Norte global, quando elas estão falando do Sul, parece tão difícil de entender quando acontece “na sua casa”?

Pergunte a qualquer cidadão britânico medianamente informado sobre a violência no Brasil, e é provável que ele responda algo sobre a distribuição desigual da riqueza, a falta de oportunidades, ou mesmo sobre como o tráfico chega a locais onde o estado nunca entrou, como alguns adolescentes veem uma arma como instrumento para que sintam-se valorizados e respeitados,como a polícia piora tudo, porque é vista como corrupta e preconceituosa, e de como o sistema político basicamente reproduz essa situação. E no entanto, agora mesmo, posso imaginar aquela senhora que vi em Victoria. “Por que eu deveria escutar o que você diz?”, ela pergunta ela. “O seu país tem problemas sociais muito maiores que o meu.”

Tem razão, minha senhora. É exatamente por isso.

(*) Rodrigo Nunes é doutor em filosofia pelo Goldsmiths College, Universidade de Londres, pesquisador associado do PPG em Filosofia da PUCRS

Artigo publicado originalmente no blog Orango Quango

Tradução: Vila Vudu

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