domingo, 21 de agosto de 2011

Um grito mudo

Frei Beto




A foto do jornal me causou  horror. A criança somali lembrava um ET desnutrido. O corpo, ossinhos  estufados sob a pele escura. A cabeça, enorme, desproporcional ao tronco  minguado, se assemelhava ao globo terrestre. A boca – ah, a boca! –  escancarada de fome emitia um grito mudo, amargura de quem não mereceu a vida  como dom. Mereceu-a como dor.

 Ao lado da foto, manchetes sobre a  crise financeira do cassino global. Em dez dias, as bolsas de valores perderam  US$ 4 trilhões. Estarrecedor! E nem um centavo para aplacar a fome da criança  somali? Nem uma mísera gota de alívio para tamanho  sofrimento?

 Tive vergonha. Vergonha da Declaração Universal dos  Direitos Humanos, que reza que todos nascemos iguais, sem propor que vivamos  com menos desigualdades. Vergonha de não haver uma Declaração Universal dos  Deveres Humanos. Vergonha das solenes palavras de nossas Constituições e  discursos políticos e humanitários. Vergonha de tantas mentiras que permeiam  nossas democracias governadas pela ditadura do dinheiro.

 US$ 4  trilhões derretidos na roleta da especulação! O PIB atual do Brasil ultrapassa  US$ 2,1 trilhões. Dois Brasil sugados pelos desacertos dos devotos do lucro e  indiferentes à criança somali.

 Neste mundo injusto, uma elite  privilegiada dispõe de tanto dinheiro que se dá ao luxo de aplicar o supérfluo  na gangorra financeira à espera de que o movimento seja sempre ascendente.  Sonha em ver sua fortuna multiplicada numa proporção que nem Jesus foi capaz  de fazê-lo com os pães e os peixes. Basta dizer que o PIB mundial é, hoje, de  US$ 62 trilhões. E no cassino global se negociam papéis que somam US$ 600  trilhões!

 Ora, a realidade fala mais alto que os sonhos e a  necessidade que o supérfluo. Toda a fortuna investida na especulação explica a  dor da criança somali. Arrancaram-lhe o pão da boca na esperança de que a  alquimia da ciranda financeira o transformasse em ouro.

 À  criança faltou o mais básicos de todos os direitos: o pão nosso de cada dia.  Aos donos do dinheiro, que viram suas ações despencarem na bolsa, nenhum  prejuízo. Apenas certo desapontamento. Nenhum deles se vê obrigado a abrir mão  de seus luxos.

 Sabemos todos que a conta da recessão, de novo,  será paga pelos pobres. São eles os condenados a sofrerem com a falta de  postos de trabalho, de crédito, de serviços públicos de qualidade. Eles  padecerão o desemprego, os cortes nos investimentos do governo, as medidas  cirúrgicas propostas pelo FMI, o recuo das ajudas humanitárias.

 A miséria nutre a inércia dos miseráveis. Antevejo, porém, o  inconformismo da classe média que, nos EUA e na União Europeia, acalentava o  sonho de enriquecer. A periferia de Londres entra em ebulição, as praças da  Espanha e da Itália são ocupadas por protestos. Tantas poupanças a se  volatilizarem como fumaça nas chaminés do cassino global!

 Temo  que a onda de protestos dê sinal verde ao neofascismo. Em nome da recuperação  do sistema financeiro (dirão: “retomada do crescimento”), nossas democracias  apelarão às forças políticas que prometem mais ouro aos ricos e sonhos, meros  sonhos, aos pobres.

 Nos EUA, a derrota de Obama na eleição de  2012 revigorará o preconceito aos negros e o fundamentalismo do “tea party”  incrementará o belicismo, a guerra como fator de recuperação econômica. A  direita racista e xenófoba assumirá os governos da União Europeia, disposta a  conter a insatisfação e os protestos.

 Enquanto isso, a criança  somali terá sua dor sanada pela morte precoce. E a Somália se multiplicará  pelas periferias das grandes metrópoles e dos países periféricos afetados em  suas frágeis economias.

 Ora, deixemos o pessimismo para dias  melhores! É hora de reacender e organizar a esperança, construir outros mundos  possíveis, substituir a globocolonização pela globalização da solidariedade.  Sobretudo, transformar a indignação em ação efetiva por um mundo  ecologicamente sustentável, politicamente democrático e economicamente justo.



Frei Betto é escritor, autor, em parceria com Marcelo  Barros, de “O amor fecunda o Universo – ecologia e espiritualidade” (Agir),  entre outros livros. http://www.freibetto.org/>    twitter:@freibetto.

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