quarta-feira, 26 de outubro de 2011

Riscos e possibilidades no estágio atual da crise mundial



Ironicamente, o sistema financeiro e os ricos, responsáveis por conduzir a economia à crise e socorridos em seu início pela sociedade, recusam-se agora a pagar parte da fatura. Confira artigo que aponta a conjuntura da crise nas principais economias mundiais

Por Rodrigo Alves Teixeira e Pedro Paulo Ciseski

As medidas monetárias e fiscais tomadas desde o início da crise em 2008 foram insuficientes para reverter o fraco desempenho econômico e reduzir o elevado desemprego nos Estados Unidos. Além disso, a política monetária apresenta ineficácia crescente na atual conjuntura de armadilha de liquidez, onde os agentes, diante de incerteza elevada, entesouram praticamente toda moeda adicional criada. Deste modo, os sucessivos afrouxamentos promovidos pelo Fed servem somente para impedir o agravamento da crise bancária.

Por outro lado, a política fiscal, instrumento mais eficaz para estimular a atividade nessa conjuntura recessiva, está bloqueada politicamente pela oposição republicana, sob os argumentos de excessivo endividamento público e de ineficácia do próprio instrumento.

Este último argumento sugere que o aumento de despesa pública é incapaz de estimular o gasto privado porque os agentes elevam sua poupança para pagar o aumento futuro de impostos necessários para financiá-la. O problema é que esse argumento não considera que tanto o aumento da despesa quanto dos impostos pode incidir sobre diferentes grupos da sociedade. Se a despesa for direcionada aos mais pobres, de elevada propensão a consumir, e os impostos aos mais ricos, de elevada propensão a poupar, a equivalência não ocorre. Porém, a oposição republicana é contrária a aumentos de impostos para os ricos, mesmo após manifestação favorável de bilionários como Warren Buffett.

Perde-se assim oportunidade histórica para corrigir grave distorção da economia americana, caracterizada pela elevada desigualdade de renda acumulada nas últimas décadas em decorrência da financeirização crescente da economia. Ironicamente, o sistema financeiro e os ricos, responsáveis por conduzir a economia à crise e socorridos em seu início pela sociedade, recusam-se agora a pagar parte da fatura. A "crise de consciência" de alguns bilionários decorre disso e de serem os maiores beneficiados do modelo anterior.

Felizmente, as recentes manifestações causadas pela ocupação das ruas de Wall Street apontam para um aumento da insatisfação da sociedade e poderão favorecer uma postura mais combativa do governo, especialmente no campo fiscal, para impedir um duplo mergulho da economia e estimular sua recuperação.

Além disso, apesar do entrave político, os graus de liberdade da política econômica dos EUA, país detentor de "privilégio exorbitante" pela condição de emissor da moeda reserva, ainda superam os da área do Euro ou de qualquer outro país do globo.


Europa

Antes da crise, alguns países da zona do Euro, em especial Grécia, Portugal e Espanha, não dispondo da taxa de câmbio como instrumento de ajuste, apresentavam déficits crescentes em transações correntes, facilmente financiados por capitais externos atraídos pela estabilidade da moeda única. Esse crédito fácil e barato levou a um forte endividamento do setor privado na Irlanda e na Espanha e do setor público na Grécia, elevando sua fragilidade financeira.

Contudo, parecia não haver problema de financiamento para os déficits externos e fiscais no período de calmaria entre o surgimento do Euro e 2008. Porém, ao pressionar as contas públicas das economias do bloco, a crise revelou que a zona do euro não dispõe de mecanismos eficazes para lidar com situações de elevado estresse financeiro e econômico pelo fato de a união limitar-se ao aspecto monetário. Sem união fiscal, inexiste o mecanismo coletivo de auxílio aos deficitários. Somente durante a crise foi criado o European Financial Stability Facility (EFSF), o fundo de resgate das economias da zona do euro. Adicionalmente, os países do bloco não dispõem individualmente dos dois outros instrumentos de combate a crises: as políticas monetária e cambial.

As compras pelo Banco Central Europeu (BCE) de títulos públicos dos países com dificuldade de financiamento geram alívio momentâneo, mas são insuficientes para estimular a economia, posto que a liquidez resultante é anulada por operações de esterilização. Além disso, o BCE resiste em adotar medidas de afrouxamento quantitativo, ao modo do Federal Reserve americano, sob o argumento de que a inflação permanece acima da meta apertada de 2%. Este fato evidencia que a região não é uma área monetária ótima, pois a política monetária é adequada para alguns países, mas não o é para outros.

O uso anticíclico da política monetária exigiria mudança radical do BCE, que resiste em abandonar o foco exclusivo na inflação, e, do mesmo modo, o uso da política fiscal está limitado pela crise das dívidas. Para piorar, as medidas de austeridade adotadas pelos governos como condição para obter ajuda financeira tendem a dificultar a recuperação econômica do bloco, especialmente num contexto de consolidação fiscal generalizada.

Neste cenário, a recuperação da economia da região tende a ser lenta, dados os limites impostos pela própria união monetária. Daí as especulações de que alguns países, que não contam mais com o financiamento voluntário de seus déficits, possam abandonar a união para viabilizar a depreciação de suas moedas e a recuperação da competitividade sem o longo e penoso processo recessivo de redução nominal de salários e preços. Vantajosa em seu início pelos efeitos benéficos sobre o investimento e o crescimento de alguns países da periferia, a união revela-se nesse momento uma poderosa camisa de força para sua recuperação.

O Banco da Inglaterra, que preservou sua autonomia não aderindo ao Euro, acabou de anunciar nova rodada de afrouxamento quantitativo para estimular sua economia. A Suíça, igualmente, entrou explicitamente na guerra cambial desvalorizando sua moeda recentemente. Tais medidas sinalizam, para os países em dificuldade, as vantagens de abandonar a união.


China

Apesar da crise mundial, a China continua a apresentar taxa de crescimento elevada. Porém, muitos começam a questionar a sustentabilidade do seu modelo de crescimento baseado em exportações em função do tamanho atingido por sua economia e das perspectivas sombrias para a crise.

Cremos que o país depara-se com duas possibilidades. A primeira é manter o modelo, que se baseia em elevada taxa de poupança, cerca de metade do PIB, e baixo consumo, cerca de um terço. Para tanto, terá que substituir a demanda dos EUA e da Europa por novos mercados. Isto tem sido feito com relativo sucesso até o momento, como prova o forte crescimento das exportações para o Brasil. Porém, esta alternativa pressupõe a manutenção do consumo interno nos baixos padrões atuais e, como consequência, crescente dificuldade política, especialmente com uma desaceleração maior, caso a crise mundial se aprofunde.

A segunda possibilidade é explorar o seu enorme mercado interno potencial. Para tanto, terá que melhorar a distribuição da renda e o padrão de vida da população, elevando o consumo. Porém, essa escolhe implica taxa de crescimento de longo prazo menos elevada pela queda esperada na taxa de investimento. Para alguns analistas, essa queda implicaria grande dificuldade política sob a hipótese de que a legitimidade do regime pressupõe elevada taxa de expansão econômica. Entretanto, cremos ser esse um falso dilema, pois o menor crescimento será compensado por melhor distribuição de renda e maior consumo, fato apreendido na teoria do crescimento econômico sob o conceito de "regra de ouro", que postula que taxas de investimento e de crescimento mais baixas podem resultar em maior bem-estar no curto e no longo prazo, pois investimento excessivo produz desperdício de capital.


Brasil

No Brasil, apesar do impacto recessivo no início da crise, a manutenção da renda e do emprego domésticos em níveis elevados garantiram demanda elevada. Em contraste, a produção industrial apresentou recuperação lenta e o setor permanece em estado de letargia em razão da elevada taxa de juros e da apreciação cambial.

A forte alta do dólar, causada recentemente pelas turbulências no mercado financeiro internacional em razão da fragilidade da economia européia, foi parcialmente revertida. Não obstante, o crescente déficit em transações correntes tem sido financiado com folga pela conta financeira, garantindo inclusive a manutenção pelo Banco Central do elevado nível de reservas internacionais. Todavia o crescimento tem sido baixo e de frágil sustentabilidade, visto que prejudica a indústria nacional. Em países de crescimento rápido e sustentável, esse setor é a principal fonte de inovação, de ganhos de produtividade e de geração de empregos de qualidade. Seu encolhimento deixa o país dependente de situações externas favoráveis, que podem se reverter subitamente. Além disso, o descompasso entre a demanda elevada e a fraca produção industrial, num regime de metas de inflação, frustra a euforia, posto que o Banco Central mantém elevada a taxa de juros para cumprir a meta.

Uma questão central é por que, com a renda e a demanda crescendo em ritmo elevado, a oferta de bens e serviços não responde na mesma velocidade para manter os preços estáveis. Cremos que a discussão sobre o controle da inflação deveria transcender o enfoque exclusivo na demanda, onde a taxa de juros aparece como o único instrumento de política. Esse enfoque, adotado pelo Banco Central durante a gestão anterior criava um círculo vicioso e autorrealizável que, felizmente, a atual tem olhado de forma mais crítica. O crescimento do produto potencial abaixo da demanda levava à manutenção de taxas de juros elevadas para conter a pressão inflacionária, porém essas taxas acabavam frustrando os planos de investimento e assim restringindo o próprio crescimento do produto potencial.

O controle da inflação deve continuar, pois do contrário implicaria o retorno do crescimento às custas da redução da renda real da maioria da população. Porém, não deve ocorrer contendo salários e emprego via juros elevados ou importações que desagregam as cadeias produtivas domésticas e sufocam nossa indústria. Esse controle deve ser buscado também e principalmente com políticas que estimulem a oferta e os ganhos de produtividade, em especial nos setores de produção de bens de consumo dos assalariados, que participam diretamente do índice de preços ao consumidor.

O crescimento sustentado da economia brasileira envolve, mais do que nunca, políticas que incentivem a inovação, o aumento da produtividade e impeçam que nossa pauta de exportações se concentre apenas em primários. Para tanto, é necessário uma política industrial e de desenvolvimento mais agressiva, baseada não exclusivamente em medidas protecionistas, como no passado, mas também com exigência de contrapartidas em inovação e competitividade, aliadas a investimentos em educação e ciência e tecnologia.


Perspectivas

Para que tanto a economia doméstica quanto a mundial possam crescer de maneira estável, é urgente uma reforma mais ampla do sistema monetário internacional, que traga mais estabilidade às relações entre as moedas. A liberdade aos fluxos de comércio não terá muita eficácia em meio à "guerra cambial".  É com isso em mente que o Brasil levou recentemente a discussão do desalinhamento cambial à OMC.

Também é muito importante o combate ao privilégio exorbitante dos EUA, além do avanço no debate, ainda tímido, mas já lançado no âmbito do G20, de administrar os fluxos de capitais para evitar catástrofes como a atual e das últimas décadas, dando margem de manobra para as economias se defenderem contra a especulação.




Rodrigo Alves Teixeira é Coordenador Geral da Diretoria de Estudos e Relações Econômicas e Políticas Internacionais do IPEA e professor licenciado da PUC-SP. Pedro Paulo Ciseski é ex-professor da PUC-SP.

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