sábado, 29 de dezembro de 2012

"Milagres econômicos" da guerra fria


"Milagres econômicos" da guerra fria
Por José Luís Fiori
Salvo engano, foi o jornal "The Times" que falou pela primeira vez -
em 1950 - de "milagres econômicos", referindo-se a países com
prolongados períodos de altas taxas de crescimento econômico
sustentado. Depois, essa expressão foi utilizada para caracterizar o
crescimento da Alemanha, Itália, Japão, Coreia e Brasil, entre as
décadas de 50 e 80, período áureo da Guerra Fria. Entre 1950 e 1973, o
produto nacional da Republica Federal Alemã, cresceu a uma taxa média
anual de 5,05%; no mesmo período, a Itália cresceu 5,68%; o Japão,
9,29%; e a Coreia do Sul, 9.85%. No Brasil, as taxas foram mais altas
e descontínuas, com uma média de 8%, entre 1955 e 1960, 11%, entre 67
e 73, e 6,4% entre 74 e 80, mas com uma queda significativa no período
61/67. Assim mesmo, depois de 1980, a taxa de crescimento de todos
esses países caiu de forma desigual mas permanente.

Agora bem, a despeito de suas grandes diferenças históricas e
políticas, Alemanha, Japão, Itália e Coreia foram derrotados e
destruídos - na Segunda Guerra Mundial ou na Guerra da Coreia - e
depois foram ocupados e transformados em "protetorados militares" dos
EUA. Logo depois da guerra, a ideia americana era desmontar as antigas
estruturas econômicas desses países. Mas, com o começo da Guerra Fria
e o fim da Guerra da Coreia, esse projeto inicial foi substituído por
uma política diametralmente oposta, de estímulo ao crescimento
econômico, com forte participação dos governos locais, e dos próprios
agentes econômicos e instituições privadas do pré-guerra. Por isso se
pode dizer com toda certeza que a lógica da Guerra Fria pesou
decisivamente na origem dos "milagres econômicos", e na transformação
posterior daqueles países em peças centrais da engrenagem econômica do
poder global dos Estados Unidos, pelo menos até a década de 70.

No caso do Brasil - que foi aliado dos EUA na Segunda Guerra Mundial -
o caminho foi diferente, mas também se pode falar de um "convite" que
foi aceito - depois do Acordo Militar Brasil-EUA, de 1952 - e que
transformou o Brasil no pivot central da estratégia desenvolvimentista
americana, para a América Sul. A nova política foi experimentada
primeiro com o governo JK - inteiramente alinhado com os EUA e com o
colonialismo europeu - e só depois, a partir de 1964, sob comando
direto do regime militar.

Estratégia americana permitiu o cerco e a desconstrução final da União
Soviética e o fim da Guerra Fria

Depois de quase três décadas de "milagre econômico", entretanto, esse
processo foi interrompido pela "crise americana" da década de 70, e
pela nova mudança da política internacional dos EUA. Tudo começou com
a reaproximação da China, no início da década de 70, que levou à
derrota/saída americana do Vietnã, e ao redesenho do equilíbrio do
poder no sudeste asiático. Foi nesse mesmo contexto que os EUA
decidiram abandonar Bretton Woods, liberando sua moeda e iniciando a
desregulação do seu mercado financeiro, com a lenta construção de um
novo sistema monetário internacional, baseado no dólar, mas sem base
metálica. A nova estratégia permitiu o cerco e desconstrução final da
URSS e o fim da Guerra Fria, mas, ao mesmo tempo, ela desativou ou
esvaziou o papel econômico que fora ocupado pela Alemanha e pelo
Japão, e secundariamente pelo Brasil, durante as primeiras décadas da
Guerra Fria. O crescimento econômico médio anual da Alemanha caiu para
2,10%, entre 1973 e 1990; o do Japão, caiu para 2,97%; o da Itália,
para 1,76; o da Coreia, para 6,77; enquanto o Brasil entrava num longo
período de estagnação.

Ao mesmo tempo em que a China se transformou no novo milagre econômico
do sistema capitalista mundial, a Alemanha e o Japão seguiam na sua
condição de gigantes industriais e tecnológicos, mas com "pés de
barro", ainda na condição de protetorados militares dos EUA e sem
dispor de recursos naturais essenciais, além de serem igualmente
dependentes do ponto de vista alimentar e energético.

Assim mesmo, no início da segunda década do século XXI, pode ser que o
Japão e a Alemanha venham a ser resgatados, uma vez mais, como caminho
de saída da crise, para os EUA, e como instrumentos da nova doutrina
Obama, que se propõe fazer - desta vez - o cerco econômico e militar
da China. O Japão e a Coreia estão sendo pressionados para participar
da Trans-Pacific Partenership - TPP, que é hoje a pedra angular da
política comercial de Obama, e que se propõe reunir dos dois lados do
Pacífico uma grande zona de livre comércio. Ao mesmo tempo em que a
Alemanha vem sendo estimulada a liderar um grande pacto comercial
transatlântico, entre a UE e os EUA, há quem proponha que o Brasil se
junte à "aliança do pacífico". Neste novo xadrez, entretanto, o Brasil
é muito menos desenvolvido que a Alemanha e o Japão, mas dispõe de
recursos naturais e é autossuficiente, do ponto de vista alimentar e
energético. Por isso, talvez só o Brasil tenha hoje condições reais de
escolher um caminho que lhe dê maior grau de autonomia estratégica, e
maior capacidade de projetar seus interesses e sua influência, numa
escala global.

José Luís Fiori, professor titular de economia política internacional
da UFRJ, é autor do livro "O Poder Global", da Editora Boitempo, e
coordenador do grupo de pesquisa do CNPQ/UFRJ "O Poder Global e a
Geopolítica do Capitalismo".

www.poderglobal.net




sexta-feira, 28 de dezembro de 2012

Hermeto e Sivuca


http://www.youtube.com/watch?v=jxh6gbohJLs&feature=share&list=PLB0046AEEDE72A0D9

Inglaterra libera documentos secretos sobre Guerra das Malvinas




Documentos desclassificados pelo Arquivo Nacional britânico mostram que a ex-primeira ministra Margaret Thatcher estava disposta a chegar a um acordo com a Argentina sobre o status e a soberania das Malvinas que evitasse o enfrentamento militar entre as duas nações. Em contraposição à imagem intransigente de Thatcher, as minutas sobre as reuniões do gabinete de guerra indicam que a primeira ministra considerou como um “prêmio considerável” uma solução diplomática´. O artigo é de Marcelo Justo.
Data: 28/12/2012
Londres - A dama de ferro não era tão férrea. Os documentos desclassificados pelo Arquivo Nacional britânico mostram que a ex-primeira ministra Margaret Thatcher estava disposta a chegar a um acordo com a Argentina sobre o status e a soberania das Malvinas que evitasse o enfrentamento militar entre as duas nações.

Em contraposição à imagem intransigente de Thatcher, as minutas sobre as reuniões do gabinete de guerra indicam que a primeira ministra considerou como um “prêmio considerável” uma solução diplomática discutida a apenas duas semanas da tomada das ilhas em 2 de abril de 1982.

Nesta solução se propunha que a Argentina estivesse representada no Conselho governante das ilhas e em uma comissão interina que deveria ser criada para tratar do futuro das Malvinas ao final do ano em troca da retirada das forças militares. “A retirada das tropas argentinas seria conseguida sem a necessidade de recorrer a uma ação militar. A Argentina ganharia representação no comitê interino e no conselho local e um compromisso para negociar o futuro das ilhas, mas sem garantia prévia de que o resultado da negociação seria uma transferência de soberania. É repugnante que um agressor obtenha algo de sua agressão, mas parece um preço aceitável a pagar”, assinalava Thatcher em um documento desclassificado com a rubrica de “Top Secret”.

O plano em questão era estadunidense e estava inserido no marco da guerra fria. O governo de Ronald Reagan, que considerava a ditadura militar argentina como seu principal aliado na América Latina, buscava por todos os meios uma solução que evitasse brigar com um regime que considerava chave na luta contrainssurgente regional pelo assessoramento que ofereciam às forças repressivas em El Salvador ou aos contras que buscavam derrotar o sandinismo na Nicarágua. Segundo as minutas do gabinete de Thatcher, o principal obstáculo ao plano era a intransigência da junta militar argentina. “O presidente Galtieri é um alcoólatra, aparente incapaz de pensamento racional”, assinalam as minutas do gabinete de guerra de 22 de abril.

O afundamento do General Belgrano e do plano de paz promovido pelo presidente peruano Fernando Belaúnde no início de maio praticamente fecharam o caminho diplomático, mas ainda no dia 19 de maio, dois dias antes de as forças britânicas desembarcarem nas Malvinas, Thatcher disse ao gabinete que em “uma sincera tentativa de evitar o derramamento de sangue, o Reino Unido não insistiu que fossem implementadas todas as nossas demandas”.

O presidente Ronald Reagan, que havia dado finalmente seu apoio ao governo britânico, tentou no último momento uma saída mais honrosa para as forças armadas argentinas. Uma nota das reuniões do gabinete de guerra revela detalhes da conversa telefônica que teve com Thatcher em 1º de junho, 13 dias antes de o general Mario Menéndez se render às forças britânicas comandadas pelo general Jeremy Moore. “O presidente Reagan disse que os Estados Unidos consideravam imperativo que o Reino Unido mostrasse sua disposição ao diálogo. Dado que o Reino Unido tem agora uma clara vantagem militar deveria aproveitá-la para chegar a um acordo”, assinala a nota. Ao que Thatcher respondeu que o presidente “agiria da mesma maneira que ela se o Alaska estivesse sofrendo uma ameaça semelhante”.

Os documentos secretos do Arquivo Nacional têm duas curiosidades. Em um plano digno de James Bond, o procurador geral britânico Sir Michael Havers exortou o primeiro ministro a roubar os famosos mísseis Exocet franceses com os quais a aviação argentina havia atacado com êxito a armada britânica. Em uma nota enviada em 1º de junho, Havers reconhecia que seu plano era “digno de James Bond”. A ideia era adquirir os direitos de transporte dos Exocet que a França estava exportando ao Peru – e que, deste país, se dirigiam a Argentina – para terminar desviando a carga para as ilhas Bermuda. Dois dias antes, em 30 de maio, Thatcher havia escrito um telegrama ao presidente francês François Miterrand pedindo que ele adiasse a entrega dos Exocets. “Seria um desastre para a aliança (...europeia...). Nem você nem eu queremos isso”, disse Thatcher a Miterrand.

A Copa do Mundo de Futebol de 1982, na Espanha, também sofreu impacto do conflito. O Reino Unido considerou a possibilidade de retirar a Inglaterra, a Escócia e a Irlanda do Norte e exerceu pressão sobre a FIFA para que a Argentina – campeã mundial de 78 – não participasse do evento. O temor era de que as equipes tivessem que se enfrentar nas oitavas de final ou – muitíssimo mais improvável falando do ponto de vista futebolístico – na final. Nenhuma dessas coisas ocorreu e foi preciso esperar a Copa do Mundo do México, em 1986, para que a Argentina enfrentasse a Inglaterra e vencesse a partida por dois a um, com aqueles dois gols famosos de Diego Maradona, o primeiro rebatizado pelo jogador (e nunca esquecido pela imprensa britânica) como “a mão de Deus”.

Tradução: Katarina Peixoto

Obsolecência programada

http://youtu.be/pDPsWANkS-g

As causas reais das políticas de austeridade


20/12/2012
Carta Maior - Economia -
 
 
 
 
As políticas de austeridade levadas a cabo pelos Estados estimularam uma enorme concentração dos rendimentos. As elites econômicas aumentaram os seus lucros à custa do bem estar da maioria das populações, exemplo claro no caso de Espanha. Essas políticas têm como objetivo beneficiar os interesses do capital financeiro ao privatizar as transferências públicas e os serviços públicos do Estado, a fim de facilitar a intervenção de capital financeiro nestes setores e debilitar a proteção social e com isso a classe trabalhadora e as classes médias. O artigo é de Vincenç Navarro.
 
 
Vincenç Navarro (*)
 
 
Este artigo identifica as causas que originaram a crise econômica e financeira atual nos dois lados do Atlântico, causas enraizadas nas políticas levadas a cabo pelos Estados que estimularam uma enorme concentração dos rendimentos, criando um enorme problema de procura de bens e serviços, por um lado, e um capitalismo baseado na especulação, por outro.

O artigo assinala que, em consequência disso, as elites financeiras e econômicas aumentaram os seus lucros à custa do bem estar da maioria das populações, exemplo claro no caso de Espanha. As políticas de austeridade têm como objetivo beneficiar os interesses do capital financeiro ao privatizar as transferências públicas e os serviços públicos do Estado, a fim de facilitar a intervenção de capital financeiro nestes setores e debilitar a proteção social e com isso a classe trabalhadora e as classes médias.

Num artigo recente, indiquei que as medidas que se estão a tomar para racionalizar o sistema financeiro na União Europeia não estão a ter um impacto na resolução da Grande Recessão que a União Europeia está a provar. Segundo o Fundo Monetário Internacional (FMI), a economia espanhola descerá 1,5% do PIB, a italiana 2,3%, a portuguesa 3%, a grega 5,2%, a britânica 0,6%, a alemã 0,9% e a francesa 0,1%. Para a média da União Europeia, as previsões de crescimento econômico são nulas, como assinala a Comissão Europeia.

Na realidade, calcula-se que a descida da economia europeia seja de 0,4% do seu PIB. Um mal presente e um futuro pior. As reformas financeiras parecem não estar a melhorar a situação. Antes pelo contrário, muitas das medidas que se estão a tomar para melhorar o sistema financeiro, estão a piorar, em vez de melhorar, a situação econômica. O ênfase do Banco Central Europeu (BCE) e da Comissão Europeia em continuar as políticas de austeridade é um claro exemplo disso. Argumenta-se que a disciplina fiscal (reduzir o déficit público dos Estados) é a chave para recuperar a confiança dos mercados financeiros. Daí que, e como consequência, se fazem mais e mais cortes nas transferências e nos serviços públicos do Estado.

A maioria dos trabalhos científicos credíveis mostram o profundo erro dessas políticas. Na realidade, estas políticas de austeridade são responsáveis para que se vá caindo mais e mais nesta Grande Recessão. E a causa de que isto seja assim não é nada difícil de entender. A grande descida dos rendimentos do trabalho na maioria dos países do mundo ocidental (e muito em especial na América do Norte e na Europa ocidental) criou um enorme problema de escassez de procura, que ainda quando foi paliada, em parte, devido ao enorme endividamento da população (endividamento que beneficiou a banca), chegou a um limite que paralisou o crescimento econômico. Mas a diminuição dos rendimentos do trabalho foi feita à custa do enorme crescimento dos rendimentos do capital e da sua concentração em sectores enormemente minoritários da população (o famoso 1% do movimento Occupy Wall Street).

Encontramo-nos assim com o aparente paradoxo que vemos: um enorme crescimento da quantidade de dinheiro existente nas mãos de uns poucos, uma grande escassez de dinheiro para que a maioria da população possa pagar os bens e serviços de que necessita para manter o seu nível de vida. Na realidade, a pobreza está a alcançar dimensões epidêmicas, atingindo grupos e classes sociais que se tinham sempre considerado imunes à tal escassez de recursos.

 
O que deveria ser feito e não se faz

Pareceria que o mais lógico seria repartir a enorme concentração de dinheiro e se transferisse para a população, em geral, permitindo-lhe comprar e atender às suas necessidades, recuperando assim a economia.

A solução para esta recessão é extraordinariamente fácil de desenhar, se o conhecimento científico fosse o que motivara as decisões políticas. De novo, toda a evidência científica credível existente assinala que a concentração dos rendimentos está a dificultar a resolução da crise. E a forma de corrigir essa concentração é a redistribuição desse dinheiro. Só nos EUA, o dinheiro acumulado (pela elite econômica) durante estes anos de crise é de 2 trilhões de dólares. Não há, pois, falta de dinheiro. A sua redistribuição para as classes populares resolveria rapidamente o problema da falta de procura nos EUA.

Que isso não se faça, deve-se ao enorme poder que tem 1% da população em cada país e das alianças que se estabelecem entre eles em vários países. Os argumentos que constantemente se dão, inclusivamente por autores de esquerda, para explicar porque não se faz essa redistribuição e se estimule a procura, é que os economistas que dirigem ou aconselham estas políticas de austeridade são incompetentes ou ignorantes, argumentos que não são credíveis. Outro argumento que se utilizou é que esses economistas estão imbuídos de uma ideologia, a ideologia neoliberal que praticam e promovem com uma fé falhada de base empírica que a sustente. Mas esse argumento ignora que a fé sempre se reproduz porque beneficia os que a promovem e a sustentam. Há interesses muito poderosos – para os quais esses economistas trabalham - que apoiam austeridade. Um deles é o capital financeiro, pois a expansão econômica, que resultaria das políticas redistributivas, afetaria a inflação.

O inimigo número um da banca é sempre a inflação. Se o leitor tiver 100 euros e a inflação anual for de 10%, no final do ano, a sua nota de 100 euros tem unicamente um valor de 90 euros em comparação com o valor inicial. E a banca tem trilhões de euros. Isso significa que ligeiras variações da inflação podem ter impactos sumamente negativos para o capital financeiro. Daí que as políticas de austeridade que estão a ser impostas na Eurozona (e utilizo a expressão impostas, porque em nenhum dos países onde essas políticas estão a ser levadas a cabo, constavam dos programas eleitorais dos partidos governantes), e que estão a destruir o bem-estar da maioria da população, tenham sido escolhidas pelo sistema de governo do euro (o Banco Central Europeu e também a Comissão Europeia), enormemente influenciado pelo capital financeiro europeu (e, muito em especial, o alemão). Estas políticas tiveram muito êxito para esse capital financeiro. A inflação média da Eurozona foi cerca de 2% por ano: o objetivo que se desenhou quando se estabeleceu o euro (em novembro foi 2,2%).

 
Outras causas das políticas de austeridade

Mas existe outra razão pela qual continuam as políticas de austeridade. É que a enorme quantidade de dinheiro que está a ser utilizada, por parte da banca, em práticas especulativas, tem também os seus elevados riscos, como a banca bem o sabe. Daí o seu desejo de procurar novas áreas de investimento, que não sejam especulativas, tais como a Segurança Social e os serviços públicos do Estado. São necessárias, pois, medidas de austeridade que empobreçam as transferências públicas (como as pensões) e os serviços (como a saúde ou a educação), e que estimulem a sua privatização. Isso oferece novas possibilidades para a banca e para as companhias de seguro de modo a conseguir amplos lucros em atividades menos arriscadas que as especulativas.

Esta é a explicação das medidas de austeridade. E se não acreditar, veja quem está a beneficiar com as privatizações da saúde na Catalunha, na Comunidade Autonômica de Madrid, onde essas políticas de privatização foram mais acentuadas. Entre muitos interesses financeiros, existem investimentos de alto risco, companhias de seguro, consultorias para capital financeiro e um longo etcetera. É a “americanização da saúde”.

Quer dizer, a extensão do modelo de saúde norte-americano gerido pelas companhias financeiras com o afã de lucro, que determinaram o sistema de saúde mais caro, mais ineficiente e mais impopular dos sistemas de saúde existentes. Nos EUA o setor da saúde é um campo de expansão do capital financeiro. E este é o objetivo das políticas de austeridade na Europa (ver o meu livro “Medicine under Capitalism” para analisar as consequências deste sistema de financiamento da saúde).

Outra causa da persistência dessas políticas de austeridade é debilitar o mundo do trabalho e os sindicatos. O caso espanhol é claro. Pela primeira vez numa época democrática, os rendimentos do capital superam os rendimentos do trabalho. A enorme influência do capital financeiro junto do patronato e do poder político governante, faz e explica que, apesar da descida da procura e do escasso crescimento económico, os rendimentos do capital continuem a crescer, ajudados pelas políticas fiscais que garantem os seus amplos benefícios. A aliança do capital com o Estado garante a prioridade de umas políticas que, enquanto beneficiam uma minoria da população, destroem enormemente o bem-estar da maioria.

 
Não é só 1%

Quando escrevo uma minoria não me refiro só a 1%, tal como o movimento Occupy Wall Street faz referência. Este 1% (proprietários e controladores do grande capital) tem um poder decisivo e determinante. Na realidade, a sua percentagem sobre a população, tanto nos EUA, como em Espanha, é muito menor que 1%. Mas este grupo controla os meios que configuram o que um dos analistas mais agudos das sociedades capitalistas, Gramsci definiu como hegemonia ideológica, que inclui desde as escolas e academias até aos meios de informação e persuasão, e determina a sabedoria convencional do país, que inclusivamente hoje, depois de tanta dor e danos causados à população, continua a dominar: o neoliberalismo.

Toda uma bateria de fundações, centros de estudos ou projetos de investigação são financiados pelo capital e muito, em particular, pelo capital financeiro. Os maiores bancos do país têm centros de estudos, organizam conferências, financiam jornais e revistas chamadas científicas, onde o dogma se reproduz e se promove através de amplas caixas de ressonância, meios radiofónicos e televisivos, ou imprensa escrita, por sua vez endividada e dócil para com esses poderes. Este 1% para poder mandar necessita do aparelho ideológico que o sustente. E daí que, apesar dos danos que tais políticas estão a causar, elas continuam a ser promovidas.
 

(*) Vicenç Navarro – Foi Catedrático de Economia Aplicada na Universidade de Barcelona e Professor de Políticas Públicas na Universidade Johns Hopkins (Baltimore, EUA). Dirige o Observatório Social de Espanha.

quinta-feira, 27 de dezembro de 2012

Polêmica a respeito do crescimento: investimento ou consumo?




DEBATE ABERTO


As alternativas de correção de rumo para 2013 devem incorporar a ampliação da parcela de investimentos no PIB. Isso significa que o Estado deve retomar seu papel de vanguarda e de exemplo para que as decisões de ampliar a capacidade instalada sejam efetivas em nosso País.
Data: 27/12/2012
As páginas dos cadernos de economia dos grandes jornais e as publicações especializadas começam a centrar o debate a respeito das diferentes interpretações quanto aos números do crescimento do PIB brasileiro em 2012. Depois de apresentar taxas relativamente baixas no ano passado, as desculpas oficiais apresentadas referiam-se aos efeitos da crise econômica internacional e suas conseqüências sobre a economia dos países desenvolvidos. Em razão das dificuldades enfrentadas por Estados Unidos e Europa, a economia brasileira estaria sendo menos solicitada. Ao longo de 2011, nosso Produto cresceu apenas 2,7% em comparação com 2010. As esquivas da área econômica atribuíam tal fato às incertezas dos principais investidores mundo afora e suas decisões insuficientes de iniciar novos empreendimentos em nosso País.

Enquanto isso, a equipe econômica e a própria Presidenta se contentavam em apresentar dados a respeito do significativo crescimento do consumo.

Na busca desesperada por obter, e apresentar ao grande público, informações positivas quanto ao crescimento da nossa economia, o estímulo ao consumismo foi a tônica das decisões de política econômica. As metas de gerar crescimento, porém, previam a manutenção do modelo macroenômico essencial, com controle de inflação por meio de metas, a liberdade cambial e a geração de superávit primário. Mas com uma mudança significativa: a orientação para redução da taxa oficial de juros, a SELIC.

Resposta para uma economia que patina: estímulo ao consumo

À medida que os indicadores insistiam em apresentar baixa perspectiva de crescimento do PIB, as novidades anunciadas pelas autoridades foram sendo transformadas em uma espécie de “mesmice”: estímulo ao consumo, e mais consumo e ainda mais consumo. Para viabilizar tal alternativa, o governo tomou decisões pelo lado de estimular a capacidade de demanda e também pelo lado do aumento da oferta de bens e serviços de uma forma generalizada. As informações disponíveis revelam que a queda da taxa de juros do BACEN não foi acompanhada por uma redução da mesma magnitude na outra ponta. Bancos e instituições financeiras continuavam cobrando taxas elevadas dos tomadores de empréstimo, sejam empresas ou consumidores. Com isso, a demanda encontra algumas limitações para aumentar o consumo: a chamada “capacidade de endividamento” das famílias. Tal fenômeno se explica pelo excessivo impacto ainda causado pelas dívidas assumidas, apesar do efetivo crescimento dos rendimentos da população de baixa renda, tal como verificado ao longo da última década.

Pelo lado da oferta, o governo não cansou de apresentar medidas de redução de tributos de diversos tipos. Em primeiro lugar, estímulos para aumentar a produção de bens baseados na isenção de tributos federais, em especial o Imposto de Produtos Industrializados (IPI). Veículos profissionais e automóveis de uso particular, produtos da linha branca (geladeiras, fogões e máquinas de lavar), atividades vinculadas à construção civil, entre outros, foram o carro chefe da tentativa de evitar a queda da atividade econômica nacional.

Isenção tributária: apenas estímulo às empresas e ao consumismo
Além disso, o governo cedeu a pressões antigas e pesadas do empresariado, retirando a contribuição devida sobre salários - uma das bases de sustentação das receitas do Regime Geral da Previdência Social (RGPS). A chamada “desoneração da folha de pagamentos” teve início como uma experiência localizada em alguns poucos setores, mas rapidamente se alastrou para mais de 40 setores de atividade. Esse seria também um mecanismo para aliviar os custos das empresas e estimular o aumento das operações da economia. Além de colocar em risco o equilíbrio do modelo previdenciário no longo prazo, a medida não tem implicado em redução de preços na ponta para os consumidores, Na verdade, em termos agregados, vai apenas propiciar a elevação da taxa de retorno das empresas, aumentando sua lucratividade privada às custas do rateio social. O impacto de menor receita orçamentária será coberto com recursos do Tesouro Nacional.

Ocorre que esse tipo de opção baseada apenas no consumo encontra obstáculo na própria estrutura social e econômica de nosso País. Os famílias e os indivíduos não trocam de carro a cada 6 meses – ainda bem! Tampouco compram novos produtos de linha branca com tal assiduidade. Assim, o reflexo positivo do estímulo ao consumo por meio da redução tributária encontra rapidamente seu ponto de saturação.

Investimento: uma necessidade deixada ao esquecimento
E aqui entram em campo analistas com uma avaliação um tanto mais realista a respeito da incapacidade do modelo lastreado apenas no consumismo de curto prazo em dar sustentação de médio e de longo prazos ao crescimento e ao desenvolvimento econômicos. Ao analisar os diferentes elementos componentes do crescimento do PIB, percebe-se que a performance do investimento está muito aquém do necessário para a economia e a sociedade brasileiras.

Apoiar o modelo de crescimento do PIB apenas no estímulo ao consumo revela-se como opção equivocada no curto prazo e inviável no longo prazo.

Essa dinâmica perversa torna-se ainda mais problemática em um contexto em que o modelo se assenta prioritariamente sobre o setor primário exportador. O principal motor de nossa economia ainda são as exportações do agronegócio, da mineração e do petróleo. Isso significa que realizamos um grande esforço nacional para exportar produtos de baixo valor agregado (pouca incorporação de capital, de mão-de-obra qualificada, de conhecimento e de tecnologia). E, ao mesmo tempo, desperdiçamos um volume significativo de recursos orçamentários, financeiros e monetários na importação de produtos manufaturados, de alto valor agregado. Ou seja, fortalecemos economicamente países dos quais importamos produtos industrializados, como a China. O exemplo carregado de simbolismo mais evidente é representado pela empresa Vale, que exporta minério de ferro para a China e que importa trilhos manufaturados para construção de suas ferrovias. Um verdadeiro absurdo como política industrial para o Brasil.

Assim, de acordo com essa visão crítica do atual processo de crescimento do PIB, o que deveria ser realizado é um grande esforço nacional para aumentar a participação dos investimentos no total do Produto. Isso significa reduzir, no curto prazo, esse ímpeto gerado pelo consumismo desenfreado e passar a canalizar recursos e esforços nacionais para a elevação dos investimentos. Tal opção implica alocar maiores recursos para setores como educação, ciência, tecnologia e inovação. Foi essa a estratégia, aliás, adotada pelos países asiáticos que mais apresentam dados positivos de crescimento econômico atualmente.

O novo foco para o crescimento do PIB: recuperar o investimento
A dificuldade, do ponto de vista político imediato, é que a sensação de capacidade de consumo pode ser afetada. Isso porque tudo se passa como se a sociedade realizasse uma opção de adiar o consumo presente para um momento futuro, quando as condições de maturação dos investimentos estivessem dadas. E isso implica uma revisão do modelo baseado no consumismo irresponsável, do ponto de vista de um modelo sustentável.

A confirmação do crescimento pífio do PIB para 2012 apenas vem trazer mais elementos de confirmação de tal avaliação. Daqui a alguns meses os dados do IBGE só farão confirmar o que todos já sabemos: a economia brasileira vai ter crescido pouco mais de 1% ao longo de 2012. Ou seja, revelou-se que apenas o estímulo ao consumo por si só não bastou.

A contradição, por outro lado, é que as expectativas de retomada do investimento não se realizaram. Como o governo assentou toda a estratégia na ilusão de que o capital privado seria o capitaneador dessa nova etapa de acumulação, houve muito pouca preocupação com a importância do investimento público. A crença idealizada na suposta capacidade do setor privado resolver essa equação isoladamente apresenta agora sua fatura. E a realidade acabou demonstrando uma certa passividade do capital privado em ampliar seus horizontes de investimento. Nem mesmo nos generosos modelos de ampliação de concessão de infra-estrutura (privatização de rodovias, ferrovias, aeroporto, portos e outros) o capital aceitou entrar nos empreendimentos com o chamado “espírito animal” que lhe seria característico.

As alternativas de correção de rumo para 2013 devem incorporar a ampliação da parcela de investimentos no PIB. Isso significa que o Estado deve retomar seu papel de vanguarda e de exemplo para que as decisões de ampliar a capacidade instalada sejam efetivas em nosso País. E para tanto, espera-se do governo federal uma postura mais pró-ativa na iniciativa de novos investimentos e não apenas no oferecimento de benesses e bondades ao capital privado, sem nenhuma exigência de contrapartida. A ampliação do investimento oferece, além disso, a vantagem de permitir a internalização da capacidade produtiva e de geração de serviços, reduzido nossa dependência crônica com relação aos demais países do mundo. Esse é o caminho para ampliar nosso grau de soberania, tornando o Brasil menos dependente das inovações científicas e tecnológicas do resto do mundo. Esse é sentido maior de um projeto estratégico para nosso País.

A guerra dos milionários contra Hollande




O ator Gérard Depardieu, que exilou-se na Bélgica para não pagar impostos na França, assumiu a liderança do movimento de rebeldia contra a política fiscal do presidente François Hollande. Ainda que longe do que havia apresentado durante a campanha presidencial, uma vez no poder Hollande aplicou um plano fiscal que reverteu em parte a tendência dos últimos 20 anos marcada por um constante favorecimento fiscal para os ricos. O artigo é de Eduardo Febbro.
Data: 27/12/2012
Paris - Uma melodia patética se eleva sobre o céu da França: são as vozes dos milionários que clamam por “justiça” diante do que consideram um atropelo por parte do governo do presidente François Hollande: ou seja, a política fiscal do governo. A porcentagem de impostos paga pelos ricos voltou a ser um tema central da agenda política, muito mais do que a crise, a pobreza, a insegurança ou o desemprego. O socialismo governante se vê confrontado por um episódio tragicômico, ou melhor, uma comédia de milionário enojado protagonizada pelo ator francês Gérard Depardieu.

O ator assumiu a liderança do movimento de rebeldia contra a política fiscal do presidente François Hollande. Ainda que muito longe do que havia apresentado durante a campanha para as eleições presidenciais, uma vez no poder Hollande aplicou um plano fiscal que reverteu em parte a tendência dos últimos 20 anos marcada por um constante favorecimento fiscal para os ricos.

Enfurecido com a obrigação de deixar parte de seus ganhos para o fisco francês, Gerard Depardieu encarnou um dos papéis mais patéticos, vulgares e estúpidos de sua carreira, só que desta vez na vida real: depois de exilar-se na Bélgica para não pagar impostos na França, Depardieu renunciou a sua nacionalidade francesa e, ato contínuo, publicou uma carta aberta dirigida ao primeiro ministro Jean-Marc Ayrault. Após confessar que seguiria “amando os franceses”, Depardieu anuncia que já não tinha mais anda a fazer na França, acrescentando que estava saindo do país porque os socialistas “consideram que o êxito, a criação, o talento e a diferença devem ser sancionados”.

Daí em diante, o caso Depardieu tornou-se uma esquisita novela de milionários enojados com o poder. Mentiras, cifras falsas, alegações inexatas, insultos e gestos de uma baixeza sem precedentes encheram de tempero o debate sobre a política fiscal do governo. Os ricos fizeram de Depardieu seu emblema, o porta-bandeira da causa liberal contra o injusto governo socialista que os obriga a dar ao Estado alguns milhões a mais dos muitos milhões de que dispõem.

De fato, o ator francês – 170 filmes – seguiu os mesmos passos que outros milionários assustados com a doutrina fiscal do Executivo: foi se exilar em Néchin, na Bélgica. Situada há um quilômetro da fronteira francesa, Néchin, conta, entre sua população, com 28% de franceses, em sua grande maioria, exilados fiscais.

O primeiro ministro francês, Jean-Marc Ayrault, considerou “desprezível” o passo dado pela glória do cinema francês. Este respondeu-lhe dizendo que não estava preocupado em ser ou não francês e que o presidente Vladimir Putin havia oferecido a ele um passaporte russo. Depardieu tem agora mais amigos do que nunca e não precisamente entre a classe popular da qual era uma espécie de herói depois de ter interpretado no cinema o papel de Obelix. Mas este Obelix real resultou numa dor de cabeça para o governo, sobretudo porque longe de se limitar à figura de Depardieu e a de outros adeptos da evasão fiscal, o exílio dourado do ator deu lugar a um enfrentamento múltiplo entre atores, políticos, jornalistas e esses moralistas da moda que sempre aproveitam a onda para depositar seus ovos envenenados.

Em defesa do ator saiu a atriz Brigitte Bardot e, em um texto furioso, a atriz Catherine Deneuve. Brigitte Bardot fez uma pausa em sua já reconhecida militância em defesa dos direitos dos animais para defender agora um ser humano e acusar o governo de se livrar de um “ensinamento extremamente injusto” com o ator. Catherine Deneuve somou sua voz contra aqueles que saíram a atacar Depardieu.

Toda esta querela não é mais que uma artimanha política contra o anúncio feito pelo presidente François Hollande durante a campanha para sua eleição. Hollande disse que criaria um imposto de 75% para os ganhos superiores a um milhão de euros. Por enquanto, a medida não foi aprovada, mas o governo subiu os impostos para os mais ricos e também eliminou muitas isenções fiscais que favoreciam as grandes fortunas. Na verdade, há meio século, os regimes fiscais têm sido muito favoráveis aos ricos. Em 1985, a taxa de impostos era de 65% contra 41% em 2011. Tanto os governos de esquerda como os de direita aplicaram políticas fiscais muito favoráveis aos mais ricos.

Thomas Chalumeau, membro do think tank de esquerda Terra Nova, lembra que “os 20 bilhões de euros em baixa de impostos anuais beneficiaram os contribuintes mais abastados”. Um informe oficial do INSEE francês destaca que os ricos, graças a uma série de astúcias e medidas específicas, pagam 20% de imposto sobre seus ganhos quando deveriam pagar 41%. O mesmo especialista constata que “quanto mais dinheiro se têm, menos impostos se pagam”.

O escândalo Depardieu segue a cada dia aportando sua parcela de controvérsias e enfrentamentos. Em meio a uma crise colossal e a um desemprego galopante, Depardieu impôs sua agenda: tenham pena dos riscos! O ator, que acaba de colocar a venda sua casa em Paris pela quantia de 50 milhões de euros, é proprietário de bares, restaurantes, comércios e vinhedos em vários países.

Tradução: Katarina Peixoto

O Mercosul e a Unasul na atual conjuntura




A Unasul não substituirá o Mercosul, pois se trata de projetos de integração com propósitos, instrumentos e tempos diferentes. O que não significa dizer que não possam ser complementares e agentes de um círculo virtuoso na América do Sul, em prol da paz, da democracia e da inclusão social. Para que a integração tenha futuro é preciso envolver as sociedades, torná-las partícipes de um processo de mudança de mentalidade que ajude a enxergar o outro lado da fronteira como um espaço de convivência e de oportunidade. O artigo é de Ruy Carlos Pereira.
Data: 27/12/2012
INTRODUÇÃO

A conjuntura atual é marcada por incertezas, mudanças e crise de valores, em três grandes áreas: (i) na área econômico-comercial, temos o desafio da crise internacional, que se manifesta com a aguda turbulência da moeda única europeia, o euro, e com a profunda crise econômica iniciada nos EUA em 2008; (ii) na área político-estratégica, observa-se movimento de translação do eixo de poder, mesmo que em geometria e tempos variáveis, para a Ásia e para o Sul, e, na América do Sul, o desafio da consolidação da democracia e da garantia dos direitos da cidadania; e (iii) na área social, o quadro é de fome e miséria disseminadas pelo mundo, apesar da riqueza gerada pelo desenvolvimento econômico; há ainda desafios inéditos, como a mudança do clima, e, na região, apesar das conquistas alcançadas na redução da pobreza em muitos de nossos países, persiste em aberto a dívida social que sempre a caracterizou.

O objetivo deste artigo é mostrar que o MERCOSUL e a UNASUL, que constituem mecanismos da integração sul-americana, permitem à região lidar com esses importantes desafios, de diferentes modos, com flexibilidade e complementaridade.

O MERCOSUL é um projeto de inserção internacional plena (econômico-social-político), a expressão de uma forma própria e institucionalizada de integração entre os povos de seus Estados Partes, voltada a garantir o desenvolvimento econômico e social (não apenas o livre comércio) em democracia. O MERCOSUL é, também, vetor de inserção independente no sistema internacional.

A UNASUL é um instrumento para avançar interesses sul-americanos concretos, com base na concertação política, preenche lacuna institucional histórica: a falta de um foro de países sul-americanos para resolver desafios sul-americanos. A UNASUL representa a maturação de um processo que ganhou ímpeto com a Reunião (sem precedentes) de Presidentes da América do Sul, realizada em Brasília, em 2000, na qual os Chefes de Governo “coincidiram na avaliação de que a estabilidade política, o crescimento econômico e a promoção da justiça social, em cada um dos doze países da América do Sul, dependerão em boa medida do alargamento e aprofundamento da cooperação e do sentido de solidariedade existentes no plano regional e do fortalecimento e da expansão da rede de interesses recíprocos” (Declaração de Brasília, 1º/9/2000).

A UNASUL não substituirá o MERCOSUL, pois se trata de dois projetos de integração com propósitos, instrumentos e tempos diferentes. O que não significa dizer que não possam ser complementares e, mais do que isso, agentes de um círculo virtuoso na América do Sul, em prol da paz, da democracia, da prosperidade e da inclusão social.

O MERCOSUL

Muito mais do que um projeto econômico-comercial, o MERCOSUL é um projeto estratégico, político, de longo alcance.

Mercosul econômico-comercial
Na área comercial, os resultados do MERCOSUL são palpáveis: (a) o comércio intra-MERCOSUL foi recorde em 2011, tendo alcançado a marca de US$ 53 bilhões; (b) em 2008, o comércio havia sido de US$ 40 bilhões. Mesmo depois do início da crise internacional, portanto, o intercâmbio continuou crescendo (mais 33%, de 2011 sobre 2008); (c) desde 1991, ano de assinatura do Tratado de Assunção - e, portanto, da “fundação” do bloco -, o valor do comércio intrazona se multiplicou por 10, enquanto o intercâmbio dos países do MERCOSUL em seu conjunto com o mundo cresceu 7 vezes; (d) em 2011, 90% das exportações brasileiras para o MERCOSUL foram bens manufaturados.

Para além dessas cifras, há que ressaltar alguns importantes aspectos qualitativos desse comércio. A natureza do comércio intra-MERCOSUL, especialmente o comércio Brasil-Argentina, é de comércio administrado, seja pelos Estados, seja pelas empresas. O comércio Brasil-Argentina, vale destacar, respondeu por 74% do comércio intra-MERCOSUL em 2011 (US$ 39 bilhões de US$ 53 bilhões).

Dentre os 20 maiores produtos de exportação do Brasil para a Argentina em 2011 (46 % do total das exportações brasileiras para aquele país), somente 6 não foram veículos automotores e suas partes e peças (minérios de ferro aglomerados; minérios de ferro não aglomerados; “fuel oil”; energia elétrica; aviões; e óleo diesel) e, mesmo assim, não são produtos que se encontrem em segmentos de mercado concorrenciais ou semi-concorrenciais. Já dentre os 20 maiores produtos de exportação da Argentina para o Brasil em 2011 (mais de 60 % do total das exportações argentinas para o País), 9 foram veículos automotores e suas partes e peças. Dos outros 11, somente 2 poderiam ser considerados passíveis de transações em mercados concorrenciais (alhos e peras). Os demais 9 escassamente se comercializam em bases não-administradas (trigo; naftas para petroquímica e outras naftas; farinha de trigo; malte; desodorantes; propanos; leite em pó; óleos brutos de petróleo).

A indústria automobilística (considerados veículos e suas partes e peças ) é o segmento produtivo que mais importa e exporta entre o Brasil e a Argentina e responde, sozinho, por 38 % do valor do intercâmbio bilateral.

Esse comércio se faz no quadro de uma política automotiva comum, porém conforme decisões estratégicas corporativas das matrizes estrangeiras das montadoras estabelecidas nos dois países – que resultam, por exemplo, em que o Brasil produza e exporte em geral veículos de baixo preço (média de US$ 10 mil por unidade, sem impostos) e a Argentina veículos de gama e preço mais elevados (média de 18 mil, nas mesmas bases).

Não esqueçamos que o comércio de açúcar e seus produtos derivados tampouco está liberalizado no MERCOSUL.

Portanto, é residual a ideia de que o MERCOSUL é um exercício de livre comércio. É, isto sim, um muito bem sucedido projeto de comércio administrado intrazona.

Mas nem tudo é comércio no MERCOSUL.

Mercosul político e cidadão
A institucionalidade do MERCOSUL é prova de que o processo de integração é influenciado pelos mais diversos setores das sociedades dos Estados Partes, e não apenas pelos Governos.

A título de exemplo, pode-se mencionar o Parlamento do MERCOSUL, órgão que representa os povos do bloco e que deverá congregar representantes eleitos pelo voto direto (a bancada do Paraguai é, até agora, a única eleita dessa forma).

Existem, ademais, várias instâncias que canalizam interesses da sociedade. Desde 2006 ocorrem, por exemplo, as Cúpulas Sociais, as quais, naturalmente, ensejam maior participação da sociedade civil no debate e na construção da institucionalidade do bloco.

Podem-se mencionar também o Instituto de Políticas Públicas de Direitos Humanos e o Instituto Social, além do Alto Representante-Geral do MERCOSUL, que tem por mandato avançar a agenda do bloco (inclusive as agendas de cidadania e social) tendo em conta “o interesse geral do MERCOSUL e o aprofundamento da integração regional”.

No campo da conformação de uma “cidadania MERCOSUL”, foram alcançados importantes compromissos com a consolidação de direitos, no rumo da livre circulação de pessoas, os quais foram plasmados em instrumentos como o Acordo de Residência, o Acordo Multilateral de Seguridade Social e o Estatuto da Cidadania. O Plano de Ação para este último deverá estar implementado em 2021, quando se celebrará o 30º aniversário do MERCOSUL.

No campo da consolidação da democracia, está vigente o Protocolo de Ushuaia, sob cujas regras se deu, recentemente, a suspensão do Paraguai dos órgãos do MERCOSUL e das deliberações, à luz da ruptura da normalidade democrática que significou o impedimento do Presidente Fernando Lugo em condições que não observaram as garantias do devido processo e de possibilidade de ampla defesa do Presidente Constitucional do Paraguai.

Finalmente, no plano político, o MERCOSUL tem mostrado ser um vetor estimulador do avanço da integração regional mediante a ampliação geográfica do bloco. Com o ingresso da Venezuela, o MERCOSUL passa a integrar uma área que se estende da Terra do Fogo ao Caribe. As perspectivas atuais são de que o bloco venha a incorporar também a Bolívia e o Equador (com este já se iniciaram as conversações exploratórias).

Mercosul social/redução de assimetrias
A agenda social do MERCOSUL para o futuro próximo deverá incluir ações ao amparo do Plano Estratégico de Ação Social (PEAS), iniciativa que deverá contemplar dez eixos temáticos: (a) combate à fome e à pobreza; (b) garantia dos direitos humanos; (c) acesso universal à saúde pública; (d) acesso universal à educação; (e) valorização e promoção da diversidade cultural; (f) garantia da inclusão produtiva; (g) acesso ao trabalho decente e aos direitos previdenciários; (h) promoção da sustentabilidade ambiental; (i) promoção do diálogo social; e (j) cooperação regional para implementar e financiar políticas sociais.

No plano institucional, há instâncias de atuação coordenada de autoridades da área social, como o referido Plano Estratégico e a CCMAS (Comissão de Coordenação dos Ministros de Assuntos Sociais).

Redução de assimetrias – O FOCEM
Nesta breve resenha do MERCOSUL, em particular no campo da redução das assimetrias entre os Estados Partes, cabe menção especial ao FOCEM –Fundo para a Convergência Estrutural do MERCOSUL.

O FOCEM é o único mecanismo regional de financiamento com recursos integralmente doados por seus financiadores. Até o momento, foram aprovados 40 projetos, cujos desembolsos deverão exceder a marca de US$ 1 bilhão. Já foram aportados ao FOCEM US$ 875,8 milhões, incluindo contribuição voluntária do Brasil no valor de US$ 300 milhões.

Os principais objetivos dos projetos aprovados pelo Fundo são: (i) promover a convergência estrutural; (ii) desenvolver a competitividade; (iii) promover a coesão social, em particular das economias menores e regiões menos desenvolvidas; e (iv) apoiar o funcionamento da estrutura institucional e o fortalecimento do processo de integração.

A orientação da iniciativa FOCEM no sentido de reduzir assimetrias fica evidente ao se compararem as proporções dos aportes efetuados pelos países com as proporções dos benefícios recebidos, em termos de distribuição de recursos. Pelas regras atuais, a proporção dos aportes é a seguinte (em percentuais dos US$ 100 milhões destinados anualmente ao Fundo): Brasil, 70%; Argentina, 27%; Uruguai, 2%; e Paraguai, 1%.

Já a distribuição dos benefícios, em termos dos percentuais de recursos alocados para os projetos até agora aprovados, é a seguinte: Paraguai, 48%; Uruguai, 32%; Argentina,10%; e Brasil, 10%.

Cabe ressaltar que a transferência de recursos aos projetos que beneficiam o Paraguai não foi interrompida com a recente suspensão do país do MERCOSUL. A Decisão presidencial que determinou a suspensão do Paraguai previu que não se deveriam prejudicar os interesses do povo paraguaio, e garantiu expressamente a continuidade dos projetos relativos ao Paraguai no FOCEM. Tanto é assim que, também em Mendoza, foi aprovado o financiamento FOCEM para apoiar o projeto – no valor total de US$ 59,2 milhões – de construção da avenida “Costanera Norte” de Assunção, que deverá beneficiar parcela importante da população de baixa renda da capital do Paraguai.

A UNASUL

A União de Nações Sul-Americanas (UNASUL) reúne todos os 12 países da América do Sul, com o objetivo de constituir espaço de integração política, econômica, social e cultural entre seus povos. A funcionalidade da UNASUL como foro de composição dos interesses dos países da região é evidenciada, por exemplo, pelo fato de a Secretaria-Geral da União ter sido “compartilhada” por Maria Emma Mejía, da Colômbia (período maio/2011 a junho/2012), e Alí Rodrigues, da Venezuela (em funções até junho de 2013).

Nesta seção, mencionarei brevemente alguns aspectos da institucionalidade da UNASUL; caracterizarei a União como foro em que se realiza a consagração da autonomia regional; e tratarei da UNASUL em sua vertente de promotora da integração física da região. Abordarei, também, o Banco do Sul, o qual, embora esteja formalmente fora da estrutura institucional da UNASUL, pode ser considerado como o braço financeiro da União.

A Unasul institucional
Uma lista dos órgãos que compõem a estrutura institucional da UNASUL, criados a partir da conclusão do Tratado Constitutivo da União, assinado em Brasília, em 2008, poderá dar uma ideia do compromisso político de seus participantes com um processo de integração amplo.

O Tratado Constitutivo estabeleceu o Conselho de Chefes e Chefas de Estado/Governo; o Conselho de Ministros das Relações Exteriores; e a já mencionada Secretaria-Geral. Cabe mencionar que a criação de um Parlamento deverá ser matéria de futuro Protocolo Adicional ao Tratado de Brasília.

Ao amparo do Tratado, foram criados Conselhos Ministeriais nas áreas de Energia; Saúde; Defesa; Infraestrutura e Planejamento (COSIPLAN); Desenvolvimento Social; Problema Mundial das Drogas; Educação, Cultura, Ciência, Tecnologia e Inovação; Economia e Finanças.

A Unasul como consagração da autonomia regional
Na condição de foro de concertação política, a UNASUL presta contribuição fundamental à preservação da estabilidade institucional dos países-membros, a partir de uma perspectiva própria da região, bem como à solução pacífica de controvérsias regionais e ao fortalecimento da democracia na América do Sul, como evidenciam os seguintes exemplos: (a) mediação entre Equador e Colômbia (2010) em razão de ataque colombiano contra as FARC, no território do Equador (2008); (b) mediação entre Colômbia e Venezuela (2010), com vistas à reconstrução do diálogo entre os dois países depois do rompimento de relações diplomáticas; (c) crise institucional no Equador (2010); e, mais recentemente, (d) decisão sobre a situação no Paraguai, após a destituição do Presidente Fernando Lugo, nos seguintes termos: “Expressar sua mais enérgica condenação à ruptura da ordem democrática na República do Paraguai (...)” e “Promover a suspensão da República do Paraguai nos foros e mecanismos de diálogo e concertação política e integração da região, de acordo com seus próprios estatutos e regulamentos.”

A Unasul como foro de integração física
A UNASUL vem exercendo e deverá continuar a exercer importante papel na concretização da integração física e energética da região. O locus institucional para avançar nessa área é o já mencionado Conselho Sul-Americano de Infraestrutura e Planejamento, o COSIPLAN.

O Conselho, que absorveu as competências da IIRSA - Iniciativa de Infraestrutura Regional Sul-Americana -, constitui foro para a concepção e gestão coordenada de projetos em integração física e energética entre os países da América do Sul, segundo os seguintes “Eixos de Integração e Desenvolvimento” (EIDs): Andino; de Capricórnio; da Hidrovia Paraguai-Paraná; do Amazonas; do Escudo guianês; do Sul; Interoceânico central; MERCOSUL-Chile; e Peru-Brasil-Bolívia.

Em 2011, a carteira geral do COSIPLAN continha 531 projetos, no valor estimado de US$ 116 bilhões. 63 projetos (9% da carteira) já foram concluídos e estão operacionais por um valor de US$ 10 bilhões. São exemplos desses projetos a construção da Rodovia Pailón-San José-Puerto Suarez (Bolívia, Brasil, Chile e Peru); a pavimentação e melhoria da Rodovia Iquique-Colchane (Bolívia, Chile); e os estudos sobre a Rodovia Boa Vista-Bonfim-Lethem-Georgetown (Brasil, Guiana).

159 projetos (30% da carteira) estão em execução por um valor estimado de US$ 52 milhões. Outros 157 projetos (30% da carteira) estão em preparação por um valor estimado de US$ 36 bilhões.

Os projetos gerenciados no âmbito do Conselho seguem critérios de prioridade, conforme a Agenda de Projetos de Integração (API), aprovada pela II Reunião Ministerial do COSIPLAN, realizada em Brasília, em novembro de 2011. A Agenda contempla 31 projetos considerados como estruturantes e de alto impacto para a integração física e o desenvolvimento socioeconômico regional, os quais deverão representar dispêndios de US$ 13,7 bilhões em obras de integração regional de 2012 até 2022.

Por fim, cabe mencionar que os Ministros do COSIPLAN estabeleceram três Grupos de Trabalho: (i) Telecomunicações, responsável por avaliar a interligação de estruturas de fibras ópticas e a construção do Anel Óptico Sul-Americano, de maneira a evitar que o tráfego de telecomunicações da região tenha que continuar a passar por servidores localizados fora da região; (ii) Integração Ferroviária, cujos trabalhos deverão se concentrar sobretudo na conexão bioceânica; e (iii) Financiamento e Garantias, para avaliar fontes adicionais de custeio de projetos da carteira do COSIPLAN.

O BANCO DO SUL

O Banco do Sul é uma instituição que está prestes a entrar em operação. Seu Convênio Constitutivo está vigente, desde 3 de abril de 2012, para Argentina, Bolívia, Equador, Uruguai e Venezuela. No Brasil, o Convênio está atualmente sendo examinado no Congresso Nacional, onde tramita em regime de urgência.

O capital inicial do Banco deverá ser de US$ 7 bilhões, para os quais Brasil, Argentina e Venezuela contribuirão com US$ 2 bilhões cada; Equador e Uruguai, com US$ 400 milhões cada; e Bolívia e Paraguai, com US$ 100 milhões cada. Os recursos do Banco poderão ser utilizados para financiar projetos nas áreas de infraestrutura; complementariedade produtiva intrarregional; desenvolvimento de setores sociais (saúde, educação, seguridade social, entre outros); e redução de assimetrias.

O Banco do Sul constitui, assim, uma alternativa verdadeiramente autóctone, regional de financiamento de projetos de interesse dos países sul-americanos.

A estrutura institucional do Banco do Sul compreende um Conselho de Ministros; um Conselho de Administração; um Diretório Executivo; e um Conselho de Auditoria. No atual estágio – período entre a vigência do Convênio Constitutivo e a primeira operação do Banco -, as atividades consistem essencialmente em deliberações sobre a composição dos órgãos mencionados e sobre critérios de política financeira/creditícia que nortearão a atuação da instituição.

CONCLUSÃO

Dessa breve exposição, podem-se perceber algumas características básicas dos processos de integração do MERCOSUL e da UNASUL. O MERCOSUL representa o que poderíamos chamar de integração “dura”, institucionalizada, abrangente. Já a UNASUL é um mecanismo de formato mais leve, flexível, que tem permitido lidar de forma inédita com problemas na região, como as ameaças à paz. Ambos os processos de integração, no entanto, convergem nos valores e princípios que os orientam: desenvolvimento econômico-social, estabilidade democrática e maior integração física na região.

Nesse contexto, uma pergunta que poderia surgir naturalmente é: como ver o MERCOSUL e a UNASUL à luz da recém-criada CELAC – a Comunidade dos Estados da América Latina e do Caribe?

Em resposta, pode-se dizer que, de certa forma, o MERCOSUL está para a UNASUL assim como a UNASUL está para a CELAC. O MERCOSUL tem uma face econômico-comercial bastante desenvolvida, inclusive com vertentes política e cidadã, esta, por assim dizer, em construção. A UNASUL, por sua vez, nasceu de inspiração essencialmente política, e privilegia muito mais a integração física e energética do que a agenda econômico-comercial “clássica”. Já a CELAC é um mecanismo mais fluido, concebido primordialmente como um foro para a concertação política entre os países da América Latina e do Caribe, e não como uma instância voltada para promover a “convergência” de mecanismos regionais e sub-regionais de integração.

Para concluir, cabe enfatizar um aspecto que, do meu ponto de vista, é absolutamente fundamental nessa discussão: para que a integração da região tenha futuro é preciso envolver as sociedades, torná-las partícipes de um processo de mudança de mentalidade que ajude a enxergar o outro lado da fronteira como um espaço de convivência e de oportunidade, e não como uma ameaça ou dificuldade. Iniciativas como o MERCOSUL e a UNASUL só terão sentido e vida longa se as pessoas comuns puderem dizer que vivem melhor, que desfrutam de mais prosperidade e de mais oportunidades porque encontram, por todo lado, mais e melhor integração. Essa legitimidade é chave para que a fragmentação historicamente construída da região dê lugar à efetiva integração, e para que a América do Sul como um todo consolide a maturidade política em um espaço de bem-estar e de democracia, de paz e de prosperidade compartilhada e solidária. Garantirá, assim, o lugar de estabilidade e progresso que lhe cabe na ordem internacional do século XXI, marcada, como já assinalei, pelas incertezas, mudanças e crises de valores dessas duas primeiras décadas.

A América do Sul certamente tem seu lugar na defesa e na vivência da paz e da democracia, na proposta e na prática da inclusão social, nas políticas e investimentos para promover o desenvolvimento econômico e o resgate da enorme dívida da região. A UNASUL certamente será o foro para a definição de grandes linhas e de iniciativas pluriestatais, de caráter estratégico, que abrirão caminho para alcançar esse lugar. E o MERCOSUL certamente continuará a ser o núcleo duro e o vetor, a usina de energia e de vontade política unívoca de seus integrantes para mover a UNASUL e a integração regional em seu conjunto.

(*) Embaixador, Representante Permanente do Brasil junto à ALADI e ao MERCOSUL

Estagnação com pleno emprego

Autor(es): José Luis Oreiro
Valor Econômico - 27/12/2012
 
Os dados divulgados recentemente pelo IBGE a respeito do PIB do terceiro trimestre de 2012 confirmam as análises feitas anteriormente neste espaço de que a economia brasileira encontra-se numa situação de estagnação. Após um crescimento de 2,7% em 2011, a economia brasileira corre o sério risco de crescer menos do que 1% em 2012 e apresentar um crescimento inferior a 3% em 2013.
O comportamento pífio do PIB ocorre, contudo, num contexto em que a média móvel dos últimos 12 meses da taxa de desemprego nas regiões metropolitanas continua sua trajetória de queda, encontrando-se hoje num valor próximo a 5,5% da força de trabalho, menos da metade do valor observado em dezembro de 2003. Curiosamente, a estagnação da economia brasileira se dá num contexto de "pleno emprego" da força de trabalho.
Para economistas de formação puramente keynesiana, o fenômeno da estagnação com pleno-emprego é aparentemente incompreensível. Isso porque a obtenção de um nível de emprego elevado seria um sinal claro de que o nível de demanda efetiva prevalecente na economia é muito alto, o que deveria se refletir positivamente na disposição dos empresários em realizar grandes projetos de investimento. Nesse contexto, haveria uma correlação negativa entre a taxa de desemprego e a taxa de investimento, tornando assim impossível a ocorrência de uma situação de estagnação e pleno emprego.
Medidas de estímulo à demanda são ineficazes porque não atuam para eliminar a perda de competitividade
A compreensão da lógica da estagnação com pleno emprego exige um arcabouço teórico mais abrangente do que a teoria keynesiana "fundamentalista". De fato, a efetiva compreensão desse fenômeno exige a utilização daquilo que podemos denominar de abordagem keynesiano-estruturalista, que consiste na síntese entre a teoria macroeconômica de inspiração keynesiana com a teoria estruturalista do desenvolvimento.
Na teoria estruturalista do desenvolvimento, o crescimento de longo prazo depende da composição setorial da produção, mais especificamente depende da participação da indústria de transformação no PIB. Isso porque a indústria é o motor de crescimento de longo prazo das economias capitalistas uma vez que ela é a fonte ou a principal difusora do progresso técnico para a economia como um todo, é o setor com maiores encadeamentos para frente e para trás na cadeia produtiva, é a fonte das economias estáticas e dinâmicas de escala e o setor cujos produtos possuem a maior elasticidade renda de exportação, permitindo assim o relaxamento da restrição externa ao crescimento. Sendo assim, o crescimento da economia no longo prazo é extremamente dependente do crescimento da produção industrial.
A partir desse referencial teórico, podemos constatar que a estagnação recente da economia brasileira é decorrência da estagnação da produção industrial. Com efeito, a média móvel dos últimos 12 meses da produção física da indústria de transformação ficou estagnada ao longo do ano de 2011, apresentando uma nítida tendência de queda ao longo do ano de 2012. A estagnação/queda da produção industrial foi acompanhada pela estagnação/queda da produtividade do trabalho na indústria (decorrência da lei de Kaldor-Verdoorn). Como a indústria é o setor da economia que utiliza mais intensamente máquinas e equipamentos não é surpresa se verificar que a estagnação/queda da produção industrial tem sido seguida por uma forte contração da formação bruta de capital fixo da economia brasileira a partir do segundo trimestre de 2011.
Qual a razão da estagnação da produção industrial? Essa situação não se deve a uma suposta escassez de demanda agregada, haja vista que as vendas no varejo mantém uma nítida tendência de elevação e, mais importante, o faturamento da indústria também continua aumentando, apesar da estagnação da produção física!!!
A explicação para esses fatos é que a indústria brasileira não está conseguindo ter acesso à demanda doméstica, uma vez que o acesso a essa demanda depende da sua competitividade, a qual vem sendo corroída de forma sistemática pelo crescimento dos salários na frente da produtividade do trabalho e pela apreciação da taxa real de câmbio. De fato, a relação custo unitário do trabalho/taxa real efetiva de câmbio aumentou nada menos do que 60% entre dezembro de 2001 e dezembro de 2011. A perda de competitividade da indústria somada com uma expansão ainda robusta da demanda doméstica, em função dos efeitos combinados do crescimento dos salários e das medidas de estímulo do governo, acaba atuando como elemento catalisador do processo de substituição da produção doméstica por importações, a qual se expressa na brutal elevação do coeficiente de penetração das importações, que passou de 10% em 2003 para 21% em 2012. A substituição da produção doméstica por importações explica o aparente paradoxo do aumento do faturamento da indústria num contexto de estagnação da produção física, uma vez que a indústria brasileira está se transformando crescentemente numa maquiladora.
Por fim, o ritmo robusto de expansão da demanda doméstica atua no sentido de estimular o setor de serviços, o qual é altamente intensivo em mão de obra, razão pela qual a estagnação da produção industrial se faz acompanhar por um elevado nível de emprego.
Daqui se segue que as medidas de estímulo à demanda agregada feitas pelo Ministério da Fazenda e pelo Banco Central são ineficazes para lidar com o problema de estagnação com pleno-emprego porque não atuam no sentido de eliminar a perda de competitividade da indústria brasileira.
José Luis Oreiro é professor do departamento de economia da Universidade de Brasília e vice-presidente da Associação Keynesiana Brasileira

quarta-feira, 26 de dezembro de 2012

O Lucro Brasil


O Lucro Brasil

 

“O Brasil está numa posição muito, muito especial. Eu vou produzir petróleo a US$ 18 (o barril). Pergunta se eu estou preocupado se ele está caindo de US$ 100 para US$ 90. Se cair para US$ 80, tudo bem, who cares (quem se importa, em inglês)? Meu custo de produção de minério de ferro é de US$ 29. O minério chegou a mais de US$ 170 em meio à crise, subiu de preço” (empresário Eike Batista, em entrevista ao jornal O Globo).

.

Recentemente a Confederação Nacional da Indústria (CNI) divulgou uma lista com 101 sugestões visando elevar a competitividade e a produtividade da indústria brasileira, através da redução de custos, da diminuição da burocracia, e principalmente, de mudanças nas leis trabalhistas. O documento, intitulado “Propostas para Modernização Trabalhista”, é bastante abrangente, propõe a substituição do legislado pelo negociado e pede a revogação de Súmulas do Tribunal Superior do Trabalho (TST) que, na visão dos empresários, favorecem aos trabalhadores. Um dos aspectos centrais do referido documento é a flexibilização e redução dos direitos trabalhistas, via mudança constitucional ou na legislação infraconstitucional, através de mudanças na Consolidação das Leis do Trabalho (CLT). Para acabar com as “irracionalidades” da CLT a Confederação sugere 65 projetos de lei, três projetos de lei complementar, cinco projetos de emenda à Constituição (PECs), 13 atos normativos, sete revisões de súmulas do TST, seis decretos, cinco portarias e duas normas de regulamentação (NR) do Ministério do Trabalho na área da saúde e segurança do trabalho. Segundo a CNI a adoção das medidas tornará a indústria brasileira mais competitiva e preparada para enfrentar a concorrência internacional, que tende a aumentar com o prolongamento da crise na Europa.
É importante observar que as medidas foram sugeridas pela CNI, em um momento que o Governo Dilma tem atendido a várias reivindicações históricas do empresariado. Destaco algumas mais importantes:
1)Desoneração da folha de pagamentos, que abrangerá 42 setores (15 já estão sendo desonerados). Somente com esse incentivo, o governo vai deixar de recolher R$ 16 bilhões em 2013. Com essa e as demais desonerações, o governo deixou de arrecadar em 2012 cerca de R$ 45 bilhões, equivalente a 1% do PIB;
2) A pedido do setor industrial o governo tem elevado alíquotas de importação de inúmeros produtos, decisão que afeta principalmente produtos da China e Estados Unidos, dois dos principais concorrentes;
3) Recentemente  o governo divulgou um pacote de medidas que atende reivindicações históricas de redução do custo da energia elétrica para as indústrias. Estima-se que na média, a indústria passe a pagar 20% menos pela energia elétrica, tirando o Brasil do topo do ranking das mais caras energias do mundo;
4) O Brasil pratica atualmente as menores taxas de juros da história (menos de 2% em termos reais), caminhando em direção a uma confluência com as taxas internacionais. No médio prazo isso trará expressivos benefícios para o setor produtivo, que terá custos de obtenção do capital compatíveis. Essa medida, somada às outras medidas de desoneração, permitirá a redução dos preços, combaterá a inflação e contribui para elevar a competitividade da indústria brasileira;
5) Recentemente foi anunciado um ambicioso programa de investimentos em rodovias e ferrovias, com previsão de mais de R$ 130 bilhões em recursos e cuja implantação deve acelerar a partir de 2013;
6) Em 04 de dezembro foram anunciadas uma série de medidas que criam uma robusta linha de crédito e diminuem a cobrança de impostos para incentivar o setor da construção civil. As medidas prevee ainda a desoneração da folha no setor e a criação de uma linha de crédito para fluxo de caixa de micro e pequenas empresas. Os incentivos fiscais para outros setores econômicos, claro, também devem impactar na construção civil e ajudar a crescer;
7) O custo financeiro para investimentos sofreu uma readequação estrutural. Além da mencionada queda da taxa Selic o governo reduziu a taxa de juros do Programa de Sustentação do Investimento (PSI) para 2,5% ao ano no último trimestre de 2012. Este Programa que está sendo renovado para 2013, disponibilizará para as empresas R$ 100 bilhões para investimentos, com taxa média em torno de 3,5% ao ano.
     A lista poderia ser bem mais longa, se houvesse espaço neste artigo. É curioso como o empresariado brasileiro insiste em atribuir o chamado Custo Brasil aos salários e aos direitos trabalhistas, quando se sabe que a margem de lucro no Brasil é uma das mais elevadas do mundo. Veja o caso das montadoras, um dos mais extremos. Há décadas os dirigentes do setor vendem a ideia de que o elevado preço dos carros no Brasil se deve à carga tributária e ao custo Brasil, ou seja, à burocracia, estrutura logística inadequada, taxas de juros exorbitantes, e coisas dessa natureza. Essas dificuldades competitivas explicariam porque o brasileiro desembolsa US$ 37.636 por um Corolla e o norte-americano paga US$ 15.450 pelo mesmo veículo. Enquanto o brasileiro paga R$ 65.000 no Jetta, no México custa R$ 40 mil e R$ 30 mil nos EUA. Recentemente a revista Forbes ridicularizou os preços no Brasil, mostrando que um Jeep Grand Cherokee básico custa US$ 89.500 (R$ 179 mil) aqui, enquanto, por esse valor, em Miami, é possível comprar três unidades do modelo, que custa US$ 28 mil. Os inúmeros exemplos estão estampados na mídia.
     Se realmente o alegado custo Brasil fosse uma razão fundamental para os elevados preços dos veículos, como explicar que, após a crise de 2008, os preços diminuíram significativamente? A crise mostrou que havia margens muito significativas de lucro, que poderiam baixar. Tanto é verdade que enquanto em 2008 e 2009 as montadoras tiveram grandes prejuízos em todo o mundo, no Brasil, entre 2009 até meados de 2012, as montadoras enviaram US$ 14,6 bilhões, à título de remessa de lucros para suas matrizes, localizadas nos países desenvolvidos (o lucro enviado ao exterior é semelhante ao valor das isenções fiscais obtidas pelas empresas no período). Os carros importados da China mostraram o quanto os carros estão caros no país. Muito mais equipados e baratos, os veículos chineses obrigaram as montadoras tradicionais no Brasil a reposicionarem os seu preços e melhorar a qualidade de seus carros para enfrentar a concorrência.
     O assunto é tão importante que a Comissão de Assuntos Econômicos do Senado realizou em novembro de 2012 uma audiência pública para “discutir e esclarecer as razões para os altos preços dos veículos automotores no país e discutir medidas para a solução do problema”. Um Estudo apresentado na audiência pelo SINDIPEÇAS (Sindicato Nacional da Indústria de Componentes para Veículos Automotores) revelou que a margem de lucro das montadoras instaladas no Brasil é três vezes maior que nos EUA: no Brasil é de 10%, nos EUA é 3% e a média mundial é de 5%. Segundo o referido estudo o custo de produção do veículo no Brasil é menor do que em qualquer parte do mundo, equivalendo a 58% do valor final do carro. A média mundial é de 79%, e nos Estados Unidos esse custo sobre para uma faixa entre 88% e 91%.
     Uma das alegações dos empresários para justificar a elevada rentabilidade dos negócios no Brasil são os custos de remuneração do capital, uma das maiores do mundo, em função das históricas taxas de juros elevadas. Neste momento, em que as taxas de juros no Brasil estão confluindo para níveis internacionais, (com grande oposição do setor financeiro, historicamente habituado às mais altas taxas de lucros do mundo) esse discurso vai ficar cada vez mais desmoralizado.
José Álvaro de Lima Cardoso (Economista e supervisor técnico do DIEESE em Santa Catarina).