sábado, 11 de fevereiro de 2012

A energia da sambista

A reportagem da Revista do Brasil foi encontrar Beth Carvalho em um seminário no Rio de Janeiro promovido por quatro fundações voltadas à pesquisa – ligadas ao PT, PCdoB, PDT e PSB. Ali se discutiam desdobramentos da crise do capitalismo. Isso, por si só, já diz muito da artista. Nesta entrevista, ela mesma diz mais. Passar algumas horas ao seu lado é tomar um banho de carioquismo e brasileirismo.
É uma mulher perspicaz, crítica, de posições francas. Ao mesmo tempo, dona de alegria e energia contagiantes. No estacionamento, nos restaurantes ou no próprio ambiente do seminário, é assediada e estimulada: “Continue firme, guerreira” é o que mais ouve. Vai a todo lugar do Rio, na zona sul ou na zona norte, dirigindo seu carro e sem medo das madrugadas. “O povo me protege”, diz.
Após um longo período de recuperação de delicada cirurgia, Beth sacode a poeira e dá a volta por cima. Dá uma atenção aguda às coisas da política, hoje especialmente à instalação das Unidades de Polícia Pacificadora nas favelas cariocas. Lamenta muito que os programas sociais dos governos de Leonel Brizola (1983-1987 e 1991-1995) tenham sido interrompidos e crê que seu Rio de Janeiro seria muito diferente hoje se tivessem continuado.
Do samba e do povo brasileiro, “trabalhador e talentoso”, fala apaixonadamente. Seu novo disco traz 15 canções inéditas de compositores da nova geração e também Nelson Cavaquinho e Chico Buarque. “Nelson e Cartola são geniais, mas tem gente renovando o samba”, avisa. O CD Nosso Samba Tá na Rua é dedicado a dona Ivone Lara, que aos 94 anos continua compondo e cantando, lembrando que ela cantou nos corais de Villa-Lobos, criados na era Vargas. O álbum tem o sabor da mistura. E irradia a felicidade que Beth vive agora, ao voltar aos palcos e às ruas. “Todos os meus discos são um discurso pelo samba”, proclama.

Quando Beth Carvalho olha pra trás, qual é a primeira lembrança de ter botado o pé na carreira musical?
O ambiente em casa sempre foi muito musical. Minha vó tocava violão e bandolim. Meu pai adorava cantar, era um homem moderno, me deu discos de João Gilberto e Dorival Caymmi. Minha mãe adorava ópera e cantava músicas do Orlando Silva. Minha irmã Vânia Carvalho também canta muito bem, até gravou um disco de samba. Eu cheguei a estudar piano, dava aulas de violão, frequentei as rodas da turma da bossa nova. Tanto a música como a política vêm do berço. Meu pai era de esquerda, foi perseguido pela ditadura, era varguista, brizolista, janguista e também admirava muito o (Luiz Carlos) Prestes. Minha mãe sempre estava do lado dos pobres. Esse era o ambiente em casa, boa música e política de esquerda.
Quando você desponta com Andança no 3º Festival Internacional da Canção, em 1968, abriu-se uma cortina na sua vida?
Ficamos em terceiro lugar com Andança. Mas ficar atrás do Tom (Jobim) e do Chico (Buarque), com Sabiá, e do (Geraldo) Vandré, com Caminhando, era como vencer. Éramos novatos, só ficamos atrás de monstros sagrados, e portanto radiantes. Andança colou no coração do povo. Uma toada moderna, mas é uma toada.
O novo disco Nosso Samba Tá na Rua traz um leque de compositores, de Nelson Cavaquinho a uma novíssima geração de sambistas. Como é sua relação com esses compositores?
É total. Acyr Marques, autor de Coisa de Pele, poeta genial, era motorista de ônibus. Zeca Pagodinho era feirante e foi apontador do bicho. Almir Guineto era lixeiro da Comlurb. Marquinhos PQD, paraquedista. Essa gente está criando brilhantemente, tudo gente do povo, tem o proletariado na veia, sua visão do mundo. Minha relação com os compositores é profunda, não sei me relacionar superficialmente com ninguém. Talvez eu seja a intérprete que mais teve relações profundas com os compositores. E eles me amam também porque me consideram a intérprete deles. Quanto eu interpreto, interpreto o compositor, sou fidelíssima ao que ele faz. Claro que tem o meu eu, em algumas músicas me identifico com aquela história. Outras não têm a ver comigo, mas eu interpreto o autor. Eles ficam muito felizes porque se sentem representados, eu não deturpo o que fazem.
Beth Carvalho (Foto: Rodrigo Queiroz)
Beth Carvalho (Foto: Rodrigo Queiroz)
O samba está se renovando, tem uma nova geração surgindo?
Em casa o ambiente sempre foi muito musical. Minha avó tocava violão e bandolim. Meu pai adorava cantar e era um homem moderno e de esquerda. Minha mãe curtia ópera e cantava Orlando Silva
Está se renovando completamente. Eu defendo à beça essa gente nova, porque há uma turma que só dá valor a Nelson Cavaquinho e Cartola, que são geniais, e fica aí. E assim como Cartola, que era pedreiro, e o Nelson, que era soldado da PM, esses mais novos têm origem proletária. Precisamos valorizar também os que estão aí criando, renovando o samba.
Você é carioca, da Gamboa (bairro da região central), e aqui nasceram dois estilos que dialogam muito entre si, o samba e o choro.
O choro é uma grande escola, deu Pixinguinha, Chiquinha Gonzaga, uma desbravadora, revolucionária, que enfrentou preconceitos da elite e o próprio marido para fazer música e vincular-se aos músicos negros e de origem humilde. Só que eu acho que alguns têm preconceito em relação à percussão. Fico chateada, pois ela é a alma do negócio, no samba, no forró, no baião. E olhe que eu sou de harmonia, toco violão e cavaquinho, dou o maior valor à harmonia, mas a percussão, principalmente no samba, é o que enriquece profundamente.
Esse clima de felicidade do novo CD expressa a superação de um momento difícil, de problemas de saúde? O Zeca Pagodinho até lhe deu um rosário verde e rosa...
Também, e principalmente. Mas eu já tenho esse espírito naturalmente. Sou uma pessoa pra cima, não tenho tendência a ficar deprimida, não é meu temperamento. Realmente, o que passei foi bastante doloroso, muito sério, mas tive tanto amor das pessoas por mim, dos meus amigos, meus parentes, dos compositores, do meio artístico... Durante esses dois anos que passei de cama, não fiquei um dia sequer sem receber visita! Quando saí dali tava de alma lavada, o resultado da operação deu certo, pois existia o risco de eu não mais voltar a andar. Havia essa possibilidade. Então, botei o bloco na rua mesmo, Nosso Samba Tá na Rua! E gravei um samba lindíssimo, que acho que é o meu estado de espírito agora, chamado Tô Feliz Demais, do Edinho do Samba, compositor da nova geração, que tem uma frase que acho fantástica: “Desta vez a felicidade exagerou comigo”.
Qual é a marca principal do novo CD?
É a valorização do povo brasileiro, sempre. O compositor de samba é, em sua maioria, seu representante legítimo, com raras exceções. E eu sempre valorizei muito as qualidades do povo brasileiro. Trabalhador, talentoso, criativo. Uma capacidade de improvisação enorme, um talento enorme. Veja o repente nordestino, é uma maravilha! Uma vez ouvi uma frase tão bonita: “O povo não decora a sua casa, enfeita”. Lindo! Desde criança eu tenho essa coisa com os mais pobres, os menos favorecidos. Não sei se foi a criação que recebi em casa, minha família sempre favoreceu os pobres, sem demagogia. Esse CD é mais uma vez uma homenagem e uma declaração de amor pelo povo, por meio do samba.
Como pintou esse nome?
É como se fosse uma passeata que estou fazendo com o samba, colocando o samba na rua com vários temas. O CD tem o tema da negritude, tem sambas carnavalescos, de bloco, os clássicos como Nelson Cavaquinho e Chico Buarque, tem o tema feminino e a presença da Mangueira, que é a minha escola. E é uma passeata. Alegre, com energia, com a marca do povo. Cada disco que faço é um discurso pelo samba. A música Nosso Samba Tá na Rua é uma obra-prima. Genial quando diz “vem de Deus esse som que a gente faz, nosso samba tá na rua” ou “de presente o moleque pede ao pai um cavaco, um pandeiro e ele sai, nosso samba tá na rua”. Então, é um discurso pelo samba. E com vários estilos, samba de bloco, partido-alto, samba-canção. Além disso, eu sempre procuro abordar vários temas, e isso depende muito do compositor, mas nesse disco a gente conseguiu.
Uma música começa com o coral cantando “Mandela”. Qual o significado da escolha?
É minha enorme admiração pelo (Nelson) Mandela, uma exaltação à negritude. E descreve de uma maneira muito original as coisas da cultura africana, da cultura negra, da culinária etc., fala de camarão com chuchu. Fala também “olha que negro é lua africana, é o sol que vem de Havana, é o fim da minha dor” (cantarola). Quando eu gravo essas coisas é também pra bater de frente com o racismo que existe.
Como você analisa a política de cultura?
No geral, percebo que há um esforço bem-intencionado. Mas a herança é tão pesada que precisamos fortalecer e apoiar muito mais a cultura brasileira, os criadores, a arte popular. Há um esmagamento do nosso cinema, os filmes norte-americanos controlam mais de 90% da exibição. Nosso povo não se vê nas telas. Há uma reação, mas falta muito. Há poucas bibliotecas, são mal equipadas, nossa taxa de leitura é baixíssima. Nosso povo, que é praticamente proibido da leitura de jornal. Faz falta um jornal popular, nacional e democrático no Brasil, como foi o Última Hora, criado pelo Vargas, que também nacionalizou a Rádio Nacional, criou a Rádio Mauá, que tinha, inclusive, a participação dos sindicatos de trabalhadores. Também foi o Vargas quem criou o Instituto Nacional de Cinema Educativo, sob a direção de Roquete Pinto e Humberto Mauro, e o Instituto Nacional de Música, chamando o Villa-Lobos para dirigir. Aliás, a dona Ivone Lara, a quem dedico o novo CD, cantou nos corais do Villa-Lobos. Ela é dona dos “laraiás” mais bonitos do Brasil...
Beth Carvalho (Foto: Rodrigo Queiroz)
Beth Carvalho (Foto: Rodrigo Queiroz)
Seu pai era varguista. O que achou de Lula ter retificado sua opinião sobre Vargas, elogiando-o como um grande presidente?

Uma questão de justiça. É por isso que eu gosto do Lula. Afinal, eu gravei um disco inteiro, com o João Nogueira, com músicas da era Vargas, que tentaram destruir (O Grande Presidente, de 1989, durante a campanha do Brizola). Em boa medida, muita coisa está sendo retomada, como a indústria naval, que já foi a segunda do mundo com o Vargas e agora está criando empregos, soberania.
Menino pobre ia para o Ciep e era tratado com dignidade. Tinha educação, dentista, música, esporte, piscina, tomava banho, comia bem. Considero um crime o que fizeram contra os Cieps
Foi ou não na era Vargas que nasceram a Petrobras, a Vale do Rio Doce, a Siderúrgica de Volta Redonda, os direitos trabalhistas, o direito de voto para a mulher, a licença-maternidade, o Teatro Experimental do Negro, quando os negros entraram pela primeira vez no Teatro Municipal do Rio? Acho que o Lula está corretíssimo. Eu fico triste porque percebo que estão tentando acabar com a Voz do Brasil, que leva informação aos brasileiros que não podem ler jornal e que vivem nos grotões. Isso também foi o Vargas quem criou.
Você teve uma profunda amizade política com Leonel Brizola (1922-2004), que faria 90 anos em janeiro. Como você avalia a política sem sua presença?
Lamento demais, até hoje, a perda do Brizola. É como se fosse um pai para mim. É como a perda de Getúlio Vargas. Eu tinha 10 anos quando o Vargas morreu e eu chorava copiosamente. Meu pai até me chamou: “Minha filha, peraí...” Eu sentia a dor do povo. E a perda do Brizola foi mais dura, porque convivi com ele. A nação perdeu um grande líder. Um homem preocupado com o povo brasileiro, amava o povo, honesto, preocupado com as crianças, com a educação, que é o caminho mais importante do país – sem educação a gente não vai para lugar algum. Se tivessem continuado os Cieps (Centros Integrados de Educação Pública, com jornada integral e diversidade de atividades, ideia de Darcy Ribeiro introduzida nas gestões de Brizola, no Rio), não teríamos hoje uma geração de crack, teríamos uma geração de Cieps. É muito difícil surgir outro Brizola.
Você se relacionou e se relaciona com homens como Fidel, Chávez, Brizola, Lula e na música com Nelson Cavaquinho, Cartola, Tom Jobim, e destaca que homens assim só nascem um a cada século. Qual é sua reflexão sobre isso?
Há os gigantes na política e na cultura, lutadores de toda uma época, que transformam a realidade do seu povo, como o Fidel, o Chávez, o Vargas, o Brizola, o Lula. Mas líderes como esses são uma raridade. Na música também. Um Tom não nasce a qualquer momento. Veja a qualidade musical do Nelson Cavaquinho. E era pobre. Cantava, às vezes, por um prato de comida. E quando tinha dinheiro dividia com amigos necessitados. Durante a Jovem Guarda, Nelson passou muita privação. Cartola também, um gênio daquele trabalhando como pedreiro, lavador de carro, servindo cafezinho. E doando ao povo pedras preciosas musicais. É por isso que eu valorizo muito projetos como o Ciep. O menino pobre, que morava na favela, ia para o Ciep e era tratado com dignidade. Tinha educação, dentista, música, esporte, capoeira, piscina, tomava banho, comia decentemente. Em casa tem de comer em pé ou sentado no chão. Lugar para estudar também não tem, são obrigados a viver amontoados, num cômodo só. O Brizola enxergou isso porque amava o povo. A continuidade desse projeto faria nascer uma nova consciência, favoreceria o nascimento de novos líderes. Considero um crime o que fizeram contra os Cieps.
Qual é a ideia que fica quando se percebe que o imperialismo continua fazendo ameaças aos povos, inclusive uma cobiça recente sobre as riquezas do Brasil, o pré-sal?
Eu fico muito assustada porque sei que eles são capazes de tudo. Até de uma intervenção militar. São capazes disso. Fizeram isso com outros países, por que não fariam com o nosso? Eu admiro profundamente esses líderes porque são homens que lutam pelo seu país, defendem seu povo com unhas e dentes, são patriotas. É uma luta muito difícil porque o imperialismo não é brincadeira, não. A direita milita 24 horas por dia. Acho engraçado quando eles falam da militância da esquerda. A militância da direita é 24 horas por dia. Mas eu tenho esperança no futuro, no socialismo.
Como você avalia a nova América Latina e o projeto de integração do continente?
Beleza! A integração, porém, não deve se limitar ao lado econômico e comercial. É preciso avançar também no campo cultural. Acho a missão da Telesur importantíssima, pois a mídia imperial sempre tenta nos separar, trabalha para dificultar a comunicação entre os povos, leva ao desconhecimento de nossa história comum. Já a Telesur promove o conhecimento de nossos heróis, de Zumbi dos Palmares, Tiradentes, Abreu e Lima a José Martí, Bolívar, Pancho Villa, com saci-pererê, com negrinho do pastoreio. Estou trabalhando num projeto para gravar as canções revolucionárias de cada país, em forma de samba.
Carioca, sambista e brizolista, qual é sua análise sobre as UPPs nas favelas do Rio?
Creio que é necessário levar o poder público a todo o país, ao contrário da linha do neoliberalismo, que reduziu a presença do Estado, dos serviços públicos. O resultado nós conhecemos. Mas não basta a intervenção militar, muito menos se não for sistemática, agir eventualmente não adianta. Tem de levar escola, saúde, criar trabalho, melhorar a urbanização, o abastecimento de água, a coleta de lixo, as moradias, e também fazer a titulação dos lotes. Acho ainda que o movimento estudantil tinha de estar lá no morro junto do povo, desenvolvendo programas, levando a universidade para perto do povo, servindo ao povo. O Brizola foi injustamente criticado. Ele fez os Cieps, instalou os elevadores em vários morros. Agora o Lula e a Dilma instalaram os teleféricos no Morro do Alemão. Isso é positivo, é um sinal de respeito. O poder público tem de estar permanentemente lá. Se os estudantes subissem com programas, numa aliança com o povo, ajudaria.
Beto Almeida é diretor da Telesur – www.telesur.net –, correspondente da Rádio de Las Madres Plaza de Mayo de Buenos Aires, presidente da TV Cidade Livre de Brasília e âncora da TV Senado

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