quinta-feira, 19 de abril de 2012

Sobre a expropriação da YPF: soberania e depois

do site Carta Maior

A recuperação de um recurso estratégico como a energia não se esgota em determinar quem fica com os lucros empresariais gerados neste setor, ou em mudar o estatuto de sua propriedade, de mãos privadas para mãos públicas. Esse é só o ponto de partida. Para começar a construir um outro tipo de soberania, é preciso colocar em questão também a natureza do problema, determinar outro tipo de objetivos, modificando o modo de produção e de consumo. O artigo é de Mario Antonio Santucho.

Buenos Aires - A expropriação de 51% dos ativos que a empresa espanhola Repsol possuía na YPF (Yacimientos Petrolíferos Fiscales), decretada no dia 16 de abril pelo governo de Cristina e enviada ao Congresso para sua aprovação por dois terços dos legisladores, é a medida econômica mais audaciosa em matéria econômica neste início de século XXI em nosso país. O Estado assegura o controle da principal empresa integrada do mercado petroleiro, localizada entre as três maiores companhias do país e entre as 30 mais importantes da América Latina.

O procedimento utilizado reflete à perfeição o manual de estilo kirchnerista: uma urgência financeira cada vez mais aguda obriga o governo a jogar pesado, fazendo uso dos recursos de poder de que dispõe. Cristina mostrou em seu discurso como a YPF havia deixado, em 2011, de garantir o abastecimento local de combustíveis para se converter em um importador (o que implica que a quantidade de combustível importado supera o valor exportado).

Para o ano em curso, calcula-se um gasto de 14 bilhões de dólares só na importação de energia, precisamente a cifra correspondente ao valor dos ativos da YPF antes de sua debacle na bolsa de valores por causa da disputa. Em um país onde o controle de câmbios desde há dois ou três meses tornou-se muito intenso e onde tudo parece indicar que o déficit de divisas se acelera, a equação energética devia ser modificada.

Em uma segunda ordem de importância, mas que imediatamente passa a ser explorada com eficácia pelo aparato comunicacional do governo, encontram-se os motivos ideológicos da decisão. A recuperação da soberania, em temos de discussão sobre o tema Malvinas; a reposição de um papel central para o Estado na economia; o enfrentamento contra os capitais transnacionais europeus; o flerte com uma imagem desenvolvimentista do passado argentino, onde a YPF ocupa um lugar privilegiado; a possibilidade de fazer parte mais ativamente do concerto econômico regional, junto a empresas como Petrobras, PDVSA ou YPFB.

Vale a pena lembrar, porém, que os principais quadros do governo atual foram ativos defensores da privatização da YPF em 1992, quando Néstor Kirchner era governador de uma província patagônica possuidora de recursos energéticos. E que, durante boa parte da gestão iniciada em 2003, inclusive até os últimos meses de 2010, deram mostras públicas de afeto e admiração pelo trabalho realizado pela Repsol a frente da petroleira (cuja compra ocorreu em 1999). Também é importante levar em conta algo que a própria presidenta fez questão de assinalar em seu discurso: que não se trata de uma estatização do petróleo, e que a YPF seguirá sendo uma empresa com vocação essencialmente comercial, orientada para maximizar seus lucros.

A observação não tem como objetivo desmerecer de modo algum o fato, mas somente observar até que ponto a decisão responde a uma consideração absolutamente pragmática e mesmo inevitável, se se leva em conta que o ponto aqui é impedir a paralisia do crescimento econômico. O desafio segue sendo, enquanto isso, abrir ainda mais o horizonte das possibilidades políticas, o que exige uma imaginação ideológica da qual o governo carece.

O ativismo oficial começou há algumas semanas a partir dos sucessivos pronunciamentos de outro ator importante nesta história: os governos provinciais daquelas regiões de onde se extraem os recursos. A disputa referia-se ao descumprimento por parte da YPF dos acordos de investimento em áreas onde foram detectadas a existência de importantes reservas. Como resposta, os mandachuva locais de Chubut, Neuquén, Mendoza, Salta e Santa Cruz reverteram várias licenças de exploração que tinham sido outorgadas.

Na semana passada, anunciou-se uma coletiva de imprensa presidencial onde haveria um importante comunicado relacionado a YPF. Fiel ao estilo hermético do kirchnerismo, várias hipóteses circularam, mas ninguém podia assegurar o que aconteceria. O certo é que o anúncio foi precedido por uma febril sequencia de reuniões entre os funcionários do governo federal e os governadores das províncias, onde se ventilaram diferenças internas entre um setor mais aguerrido que defendia a expropriação (representados pelo vice-ministro da Economia, Axel Kicillof, membro do grupo La Cámpora) e aqueles que recomendavam prudência. Um dia antes do anúncio chegou a Buenos Aires o presidente da Repsol, o empresário espanhol Antonio Brufau, que solicitou uma reunião com a presidenta. Enquanto isso, do outro lado do Atlântico, o governo espanhol pressionava com estridência, sem distinguir minimamente os interesses das multinacionais e os da cooperação entre estados nacionais.

Finalmente, a coletiva de imprensa foi cancelada e a cúpula do governo viajou para Cartagena, para participar da importantíssima cúpula continental, onde o tema “Cuba” se impôs apesar da estupidez de norteamericanos e canadenses. Tudo parecia indicar que o complexo jogo de influências e interesses que cerca a questão energética impunha os marcos debate, circunscrevendo o campo de possibilidades. Falou-se inclusive de um recuo por parte do governo argentino, notícia recebida com satisfação em Madri. Neste contexto, a intervenção de segunda-feira surpreendeu a todos.

O projeto de lei enviado pela presidenta da Naação ao Congresso, com data de 16 de abril de 2012, propõe declarar de “interesse público nacional e como objeto prioritário da República Argentina a conquista da autossuficiência em combustíveis”. Ele classifica como “predatória” a estratégia exercida “por parte da Repsol como controladora da YPF”, ao “aplicar uma lógica mais próxima do mundo financeiro do que do produtivo”. E diagnostica que o saldo comercial deficitário em matéria de combustível “terá um crescimento exponencial caso não se revertam as políticas implementadas atualmente na empresa”. Além disso, o texto dedica um anexo para resenhar a carta enviada pelo presidente da Repsol à mandatária argentina, com data de 2 de abril, definindo-a como uma “proposta descarada”.

Em termos concretos, o projeto propõe expropriar 51% das ações classe D da YPF, pertencentes a Repsol. As ações expropriadas serão distribuídas por sua vez segundo a seguinte proporção: 51% para o Estado Nacional e 49% para as províncias petroleiras, para o que se cria um Conselho Federal de Hidrocarbonetos. Permanecem em poder do grupo empresarial argentino pertencente à família Eskenazi 25% do pacote de ações, outros 7% seguirão nas mãos da Repsol, enquanto os 17% restantes foram vendidos na Bolsa para vários investidores.

Paralelamente, o Poder Executivo ditou um Decreto de Necessidade e Urgência, onde ordena a intervenção imediata na direção da empresa a cargo do ministro de Planificação, Julio De Vido, e do vice-ministro da Economia. Ambos se apresentaram ainda na segunda-feira aos escritórios centrais da YPF, destituíram os diretores da Repsol e tomaram o controle operacional da empresa.

Naquele momento os papeis da YPF na Bolsa de Comércio foram retirados da praça para evitar sua derrubada, como aconteceu em Wall Street, onde caíram 18,6% na segunda-feira. A furiosa reação espanhola não tardou, a União Europeia ameaçou com sanções, a Secretária de Estado norte-americana mostrou sua inconformidade com a medida, enquanto Antonio Brufau anunciou que exigirá uma cifra exorbitante de dólares a título de indenização pelos ativos da Repsol expropriados.

A reação na Argentina foi díspar, baseada em um apoio popular supostamente majoritário. Quase todos os setores políticos apoiam a medida, incluindo a oposição, que, no entanto, questiona a metodologia e suspeita da implementação. “Celebramos a decisão sobre a YPF”, disse Pino Solanas, dirigente de uma esquerda anti-kirchnerista que fez da questão dos recursos seu principal eixo programático. Mas tanto a oposição de direita reunida em torno do partido PRO Argentina como os meios de comunicação empresariais fizeram eco às pressões internacionais, lamentaram a insegurança jurídica, as represálias, o isolamento que o país pode sofrer, enquanto comparam a expropriação da YPF à declaração de default em 2001. Mesmo assim, se prevê uma rápida aprovação do projeto no Congresso.

O que vem aí
Sob o impacto desta novidade política e econômica de grande alcance, é difícil prever o que virá pela frente e delinear o desafio que se abre. Mas não tentar fazer isso equivale a ficar preso ao puro imediatismo conjuntural, sem capacidade de pensamento e elaboração coletiva.

Em termos imediatos, o governo intervém em uma das caixas de recursos monetários mais importantes do país, detendo assim a fuga de lucros para o exterior para garantir a reserva nacional de divisas e tentar manter a taxa de câmbio para evitar a queda do consumo interno. Esta tem sido uma das principais preocupações da gestão econômica durante os últimos meses. Deve-se levar em conta que a Argentina segue praticamente fora dos sistema financeiro global, sem acesso a importantes fluxos de capitais especulativos, o que atenta contra a liquidez, mas obriga o país a encontrar financiamentos mais genuínos. Neste sentido, a estatização dos Fundos de Pensão, em 2008, e a virtual expropriação da YPF constituem alternativas eficazes e intrépidas.

Em segundo lugar, o Estado argentino recupera o controle de uma empresa responsável hoje por apenas 34% da produção local de petróleo e 23% da produção de gás. Deverá então lidar com outros atores de peso para conseguir o difícil objetivo de inverter a deficitária balança energética. Uma questão chave será quem e como se encarregará da exploração das principais áreas. Supõe-se que para desenvolver tais explorações a YPF deverá conseguir importantes investidores. As principais reservas descobertas recentemente no país são de hidrocarbonetos não convencionais, o que torna ainda mais complexo o propósito de elevar a produção nacional. Neste sentido, especula-se com um marco de alianças com uma forte presença da Petrobras e de capitais chineses. Não será simples modificar a decadência do setor estratégico nacional.

Por último aparece uma discussão de maior fôlego, que temo fique relegada a segundo plano pelo economicismo tão em voga. Trata-se da pergunta pela soberania em termos mais profundos. A recuperação de um recurso estratégico como a energia não se esgota em determinar quem fica com os lucros empresariais gerados neste setor. É preciso atacar também as articulações neoliberais que dominam o comércio dos hidrocarbonetos. O extrativismo sem limites, por exemplo, supõe um modelo de consumo que a crise global demonstrou insustentável e que para os países exportadores resulta ecologicamente insustentável. Não há razão, por outro lado, para a soberania energética ser medida em termos puramente nacionais e segundo o parâmetro da balança de pagamentos. Ela deve ser pensada em termos regionais (de um modo complementar no contexto do Cone Sul e com uma atenção prioritária às economias locais sempre deixadas em segundo plano pelas necessidades do mercado mundial).

Recuperar um recurso para a sociedade não significa só mudar o estatuto de sua propriedade, de mãos privadas para mãos públicas. Esse é só o ponto de partida. Para começar a construir um outro tipo de soberania, é preciso colocar em questão também a natureza do problema, determinar outro tipo de objetivos, modificando o modo de produção e de consumo.

(*) Mario Antonio Santucho é editor da revista Crisis

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