sábado, 7 de julho de 2012

Guilherme Delgado analisa a política econômica brasileira


Guilherme Delgado é doutor em Economia pela Universidade Estadual de
Campinas – Unicamp. Trabalhou durante 31 anos no Instituto de Pesquisa
Econômica Aplicada – Ipea.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – O Banco Central divulgou que a inadimplência brasileira está
no mais alto patamar desde os anos 2000. Como o senhor interpreta essa
informação e quais os efeitos da inadimplência para a economia brasileira?

Guilherme Delgado – A informação mais relevante é a do grau de
endividamento das famílias, que se elevou nos últimos cinco ou seis anos
em relação ao padrão histórico de endividamento das famílias brasileiras,
que é um padrão baixo. A inadimplência é um efeito colateral do elevado
financiamento no crédito consignado, que foi muito utilizado no sistema de
serviços público e no sistema INSS. Então, esses dois sistemas, que têm
pagamentos atrelados a benefícios previdenciários ou de seguridade social,
sofreram um processo de endividamento além do limite potencial, ainda que
não esteja em uma situação explosiva. Quer dizer, não há bolhas
financeiras em função desse endividamento e dessa inadimplência. Há apenas
uma observação de que o caminho de endividamento das famílias, que foi
percorrido com certo sucesso na crise de 2008, provavelmente não vai ter a
mesma possibilidade de utilização como via de sair da crise de
desaceleração econômica atual.

IHU On-Line – A inadimplência das empresas é menos preocupante? Essa
elevação da inadimplência já era esperada?

Guilherme Delgado – A inadimplência das famílias não era esperada, mas
quando se ultrapassam determinados limites de renda familiar com prestação
de débitos bancários, dado que as famílias não têm sua renda incrementada
de forma autônoma, por salários e lucros, há uma esperada possibilidade de
haver o aumento da inadimplência.

Para avaliar o caso das empresas, eu precisaria ter esse dado desagradado
para ver o que está significando. Mas o que está acontecendo, de modo
geral, é um processo de desaceleração econômica que é muito maior no
segmento industrial do que nos outros segmentos da economia. Então, essa
desaceleração da economia tem a ver com os cenários externos e, no caso
brasileiro, com a reversão da valorização das commodities, que eram a
grande linha de impactação da economia nos últimos sete ou oito anos. A
crise financeira externa e, por via de consequência, a desaceleração do
preço das commodities, têm efeito na desaceleração econômica. As empresas
que já estavam endividadas diante desse cenário têm mais dificuldades para
honrar compromissos financeiros. Mas esse é um fenômeno geral, e não
específico do Brasil.

Macroeconômico

Do ponto de vista macroeconômico, não vejo possibilidade de bolha
financeira, no sentido de que famílias e empresas fortemente inadimplentes
criem uma corrente negativa no sistema financeiro. Até porque o sistema
brasileiro de finanças recebe benefícios públicos muito generosos e altera
com a lucratividade extremamente elevada para padrões internacionais. As
linhas de financiamento utilizadas pelo setor público e privado conferem
ao sistema financeiro um privilégio grande. E por essas distorções, o
sistema financeiro não vai “mal das pernas”. Não se pode dizer a mesma
coisa da economia no seu conjunto, que está em processo de desaceleração
claro. Disso não tenho dúvidas.

IHU On-Line – Então, apesar de o acesso ao crédito ter sido útil para
prevenir a crise em 2008, hoje não é mais possível investir nessa política
econômica para alavancar a economia?

Guilherme Delgado – Sim. Essa é uma linha que foi utilizada amplamente,
mas não teve, na época, prevenções ou avisos dos riscos. Esse crédito
consignado foi contratado por ser um crédito de baixíssimo risco para o
sistema financeiro, mas como o juro brasileiro só baixou agora, esses
burduários do crédito consignado carregam uma dívida muito pesada em
relação aos seus baixos rendimentos de salários e benefícios
previdenciários.

Esse é um problema que na época não foi advertido, porque o governo Lula
não estava preocupado com isso. A preocupação era de que a chamada nova
classe média – que não é classe média propriamente dita, mas representa um
grupo grande de pessoas que entraram nessa faixa de dois ou três salários
mínimos – entrasse no consumo, no sistema de crédito, sem muitas
preocupações com a solvabilidade futura. Hoje este problema está colocado
não como um problema de bolha financeira, mas não dá para insistir nesse
caminho, porque, do contrário, se torna inviável a recuperação desses
créditos numa forma mais organizada, ainda que o crédito consignado, como
o próprio nome diz, seja um crédito obrigatório. Mas ele pode evocar
razões judiciais, porque o crédito consignado só pode abater um percentual
da renda pessoal ou previdenciária das pessoas.

IHU On-Line – Muitos economistas divergem em relação à eficácia do crédito
para economias como a brasileira. Em que circunstâncias ele é positivo e
negativo?

Guilherme Delgado – Numa situação de recessão, o crédito, assim como os
investimentos públicos, e o consumo público, têm um papel importante na
recuperação da economia. Entretanto, esse é um receituário clássico de
economia keynesiana para manter a economia efetiva. O problema é que o
grau de financeirização da economia hoje é tal que se tem de olhar outros
condicionantes do processo de recuperação econômica para não colocar
armadilhas na própria engenharia financeira do processo.

Nesse sentido, o governo está certo ao considerar a existência de uma
crise externa no ar, porque a demanda externa deve cair, e se o governo
não fizer alguma coisa, a demanda interna cai também, e aí se aprofunda a
crise econômica, que não vai ajudar ninguém a pagar as contas, e gerará
uma crise financeira por esse lado.

Qual é a dosagem calibrada para fazer políticas anticíclicas? Nessa
conjuntura atual, os dados demonstram que não se deve investir na mesma
política com que se conteve a crise de 2008. Portanto, o crédito
consignado talvez não seja a opção viável neste momento. Provavelmente, o
investimento público e o gasto social devem se manter como vetores
importantes de recuperação da demanda interna, e substituição das
exportações, que são ou foram, nos últimos dez anos, uma locomotiva muito
forte para puxar a economia para o crescimento.

Tudo indica que agora o Brasil não terá mais tantas vantagens nas
exportações – que foram basicamente primárias, porque as exportações
manufatureiras tiveram uma trajetória bem mais modesta nos últimos três
anos. Já está havendo queda do produto industrial, que deve ser negativo
em 2012, isso porque o setor externo, como via de exportação, está
bloqueado. No sentido primário-exportador, que foi a grande aposta
brasileira, isso está em processo de reversão tanto no caso dos minerais
como das commodities agrícolas, que já apresentam preços em declínio
relativo. Se houver queda mais forte no saldo comercial externo, que é o
que se espera para esse ano, alguma coisa terá de ser feita na política
macroeconômica para ter efeitos compensatórios, e não levar a economia
para o buraco.

IHU On-Line – Como o quê?

Guilherme Delgado – O governo Dilma está agindo corretamente do ponto de
vista conjuntural. Ela tem mexido na política cambial, no sentido de
permitir que haja uma maior desvalorização do real. Ela está concedendo
uma série de benefícios para os setores industriais de mais prejuízo nas
relações internacionais, o que tem gerado algum efeito, embora não seja um
efeito macroeconômico evidente. Também tem dado uma série de benefícios
fiscais para os setores de vestuário, calçados, de produtos automotivos,
para melhorar as condições de competitividade externas. No entanto, não
há, no setor automotivo, evidências de que essa política tenha funcionado
no sentido de reverter o padrão de crescimento anterior. Os ingredientes
ou as formulações de uma política macroeconômica de mais fôlego, no
sentido de aumentar a produtividade da indústria, de melhorar a
competitividade pela via da inovação – que é uma via mais profunda e
demorada –, está pouco visível na engenharia da política econômica, porque
isso requer mais formação e planejamento integrado do conjunto do governo
do que realmente se tem.

IHU On-Line – Entre essas medidas que o senhor citou, está a de redução do
IPI dos produtos para incentivar a indústria interna. Como o senhor vê
essa medida no curto e longo prazo? O que está por trás dessa iniciativa e
quais as implicações dessa medida num contexto em que cresce a
inadimplência?

Guilherme Delgado – A utilização da via tributária como incentivo
econômico para melhorar a competitividade tem limites. Nesse sentido, tem
se usado muito também a folha de pagamento do INSS, com redução da
contribuição patronal para vários setores como via de compensação e de
estimulação, mas isso também tem limites. Quando o sistema tributário e
previdenciário estão desordenados e com baixo crescimento econômico, há
perda de arrecadação. E quando há perda de arrecadação sem perda de
despesa, criam-se tensões do ponto de vista de déficit público ou de
necessidade de financiamento. Numa situação de crise, o governo pode ter
de apelar para a dívida pública, como via de financiar esse processo de
sustentação da demanda. Provavelmente isso vai ter que acontecer de duas
formas: ou reduz o superávit primário, ou aumenta a emissão de títulos de
dívida pública para poder financiar esse arranjo macroeconômico.

Em princípio, o país pode fazer isso porque tem uma relação dívida x PIB
baixa em termos internacionais. É possível investir ainda mais na
engenharia de baixar a taxa de juros brasileira até a aproximá-la das
taxas internacionais. Ou seja, é a engenharia que o governo ainda pode
percorrer no sentido de baixar a taxa de juros, diminuir o superávit
primário, elevar a dívida líquida do setor público. Essas são
possibilidades que podem ser usadas para que o país consiga crescer numa
taxa relativamente baixa, mas não negativa.

Entretanto, não se pode esquecer que o Brasil não ficará indiferente à
situação de crise econômica global e às suas repercussões na Ásia. O país
não será eximido de contaminações, mas elas serão diferentes em função
desse arranjo keynesiano, e das políticas não ortodoxas que o governo tem
procurado adotar, com sucesso relativo. Só o fato de não importar a crise
externa na sua magnitude maior já é positivo.

IHU On-Line – Outra reclamação da política econômica do governo vem das
editoras de livros. Elas dizem que atualmente é mais barato importar
livros e Bíblias de outros países do que produzi-los no Brasil, em função
do alto custo do material, e pelo fato desses produtos terem isenção de
impostos. Como explicar isso?

Guilherme Delgado – O Brasil exporta a pasta de celulose para a China.
Aliás, o Brasil é o grande fornecedor de pasta de celulose, que é a
matéria-prima do papel. Portanto, os chineses conseguem o papel, imprimem
a Bíblia, e a vendem mais barata. Então, têm algumas coisas erradas nessa
cadeia de indústria e comércio exterior que precisam ser revistas. Na
realidade, toda a política de comércio exterior brasileira, nos últimos
dez anos, convergiu para a ideia de que são o setor primário e as cadeias
industriais de comércio de manufatura leve o polo predileto de expansão
externa. Então, expandiu-se a venda de pasta de celulose, de minérios, de
soja etc. Todo esse conjunto de setores industriais montado no país, os
quais deveriam manter a competitividade externa, não recebem um tratamento
equânime.

Não sei exatamente qual é o fator que explica a importação de Bíblias, mas
tem alguma coisa mal calibrada. Todavia, isso não acontece só nesse setor:
trata-se do conjunto da indústria brasileira que  vem declinando de
participação no produto interno e no comércio exterior há vários anos. O
Brasil fez uma aposta primário-exportadora. Não foi uma aposta boa, e
agora está colhendo os frutos da baixa estação. Enquanto estava crescendo
o preço das commodities de exportação, ninguém queria entrar nessa
discussão de desindustrialização. Acharam que isso seria conversa fiada,
mas não era.

IHU On-Line – Como o Brasil pode resolver a desaceleração econômica,
considerando que já não se pode investir nas políticas passadas?

Guilherme Delgado – Do ponto de vista do desenvolvimento – vou falar mais
teoricamente, porque não tenho a experiência concreta de quem está
manejando a política industrial –, o país tem capacidade e competitividade
externa quando a inovação industrial, a inovação técnica é o motor do
processo de acumulação do capital. No caso do pré-sal, por exemplo, ele é
o motor da acumulação do capital não porque houve aumento no preço externo
do petróleo, mas porque o Brasil acumulou tecnologia em águas profundas a
partir das pesquisas que a Petrobras desenvolveu décadas atrás, e com base
nessas inovações ele pode ingressar em novas fronteiras, como a das águas
ultraprofundas. Portanto, quando se inova nesse campo, cria-se uma cadeia
de relações interindustriais para atender à demanda externa. Esse é o
caminho virtuoso do desenvolvimento industrial e da competitividade
externa.

No caso do petróleo, do pré-sal, o Brasil tem essa experiência mais ou
menos desenhada. Entretanto, nos demais setores, que tiveram uma vantagem
comparativa muito grande nas exportações de commodities mas sem inovação
industrial, como no caso da soja, da carne, da pasta de celulose, do
minério etc., isso não aconteceu. Então, o país cresce horizontalmente,
aumenta a exportação, a produção, mas não cria os links, as ligações
interindustriais para a economia dar um salto de qualidade tecnológica.
Esse é o gargalo da questão, ou seja, o Brasil está parado do ponto de
vista da inovação e do progresso técnico, porque o país se restringiu a
mirar o setor primário e as vantagens comparativas naturais do comércio
exterior como tábua de salvação. Mas isso não é tábua de salvação; é pedra
de tropeço, como está sendo demonstrado agora.

Saídas

Como sair dessa situação? O país só sairá dessa situação a partir de uma
crise. Esse modelo primário-exportador ainda não está em crise, e ainda é
visto como tábua de salvação. Na crise se  gestam saídas, mas são saídas
um pouco mais duras, mais difíceis.

O que está em discussão nesses sinais de crise externa é: qual é o rumo
que a economia e a sociedade brasileira precisam perseguir no longo prazo
para que essa economia saia da dependência e da estagnação a que está
subordinada não somente de antes dos anos 2000, mas a partir da inserção
primária e exportadora dos últimos anos? Esse modelo funcionou muito bem
enquanto a locomotiva chinesa importava tudo do Brasil, e o país se
desindustrializava.

A discussão não vai se resolver com políticas pontuais, conjunturais,
embora essas políticas pontuais tenham de ser trabalhadas, porque não se 
pode só discutir teoricamente, sem fazer nada concreto.

IHU On-Line – Teoricamente, há soluções...

Guilherme Delgado – Analisar do ponto teórico é fácil, mas operar em
política industrial, tecnológica e de comércio exterior para tirar a
economia do buraco e encaminhá-la para uma situação de sustentação, é algo
mais complicado. Nesse sentido, o governo Dilma e sua assessoria econômica
estão corretos no diagnóstico de que não podemos aprofundar a crise com
receitas ortodoxas. Essa receita ortodoxa estilo Miriam Leitão, de cortar
e cortar, leva a economia ainda mais para o buraco. De todo modo, não
podemos ignorar os sinais amarelos de inadimplência e de
superendividamento das famílias e, potencialmente, das empresas, se a
economia permanecer estagnada por três anos.

IHU On-Line – Quais são as causas da desaceleração da economia argentina?
Os problemas são de origem interna ou externa?

Guilherme Delgado – A questão das commodities é tão ou mais importante
para a Argentina do que para o Brasil. O grau de participação das
commodities agrícolas, do comércio exterior argentino, e a primarização do
comércio exterior na Argentina é muito anterior ao brasileiro. A
primarização do comércio exterior brasileira é dos anos 2000, e a da
Argentina é de décadas passadas.

Não tenho os dados da desaceleração econômica da Argentina e de seu grau
de magnitude. O que sei é que eles estão impondo restrições muito fortes à
importação, porque o desequilíbrio externo deles é aparentemente muito
pior do que o brasileiro, porque os canais de financiamento internacional
para a Argentina estão muito mais bloqueados do que para o Brasil. O
Brasil tem déficit em conta corrente desde 2008, na faixa dos 50 bilhões
de dólar ao ano, mas nunca deixou de ingressar capital no balanço de
pagamento para financiar esse déficit e gerar alguma reserva
internacional, mesmo em situação de crise externa. O caso da Argentina é
diferente. Caindo o superávit comercial, como tem caído fortemente, eles
encontram muito mais dificuldades para financiar.

Em segundo lugar, o comércio entre Brasil e Argentina é muito importante
para manter as exportações dos dois países em processo de crescimento. E
os dois países estão enfrentando os efeitos da crise externa. Portanto, um
não pode ajudar o outro no sentido de ampliar o comércio exterior.

IHU On-Line – A presidente Cristina Kirchner tem recebido críticas por
conta das restrições da importação. Eles estão no caminho certo?

Guilherme Delgado – Não me parece que a forma burocrático-administrativa
que o governo Kirchner adota, no sentido de impor condições
administrativas cada vez mais rigorosas e demoradas para inibir as
importações, seja um bom caminho, porque impede que setores saudáveis ou
setores completamente competitivos participem do comércio. Esse é o grande
risco. Então, esse componente é danoso à própria possibilidade de a
Argentina se recuperar. Agora, tem de se considerar a escassez de divisas,
ou seja, a Argentina enfrenta um problema parecido com aquele que o Brasil
enfrentou em 1999. Então, se o país entra em uma crise cambial e não tem
uma moeda estrangeira, os pagamentos externos e as importações passam a
racionar de forma administrativa. E aí, provavelmente, essa linha complica
mais ainda do que resolve, porque, quando a Argentina embarga importações
de um país, este país também embarga as importações da Argentina. É um
ciclo que agrava o problema da dependência externa deles. Como a Argentina
tem o Brasil como um parceiro muito importante, e vice-versa, esse caminho
não é bom.

IHU On-Line – A crise argentina poderá afetar a economia brasileira?

Guilherme Delgado – Tem que ver o lugar de cada país no comércio
brasileiro. Mas como as exportações brasileiras estão em processo de
desaceleração, a perda de um parceiro importante como a Argentina, é ruim
tanto para o Brasil como para a Argentina. Boa parte desses problemas
poderiam ser resolvidos. O problema da Argentina é que eles precisam de
moeda estrangeira para poder resolver seus compromissos internacionais. Se
o comércio brasileiro pudesse travar-se com base em moeda comum ou moeda
conveniada real ou peso, isso talvez poderia ser uma via de enfrentamento
dessas dificuldades comerciais. Mas, sinceramente, não quero especular,
porque para essas questões bilaterais é preciso ter um pouco mais de senso
fino da situação para poder dar sugestões.



(Por Patricia Fachin e Luana Nyland)

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