sexta-feira, 3 de agosto de 2012

Guerra de mentiras


Do site Carta Maior 
Já se viu no Oriente Médio uma guerra em que impera tamanha hipocrisia? Uma guerra de tamanha covardia, de moral malvada, com tamanha falsa retórica e vergonha pública? Não me refiro às vítimas físicas da tragédia na Síria. Refiro-me às mentiras e à falsidade dos nossos governantes e da nossa opinião pública – tanto no Oriente como no Ocidente –, em ambos os casos dignas de risos: não são senão uma horrível pantomima mais característica de uma sátira de Swift do que de Tolstói ou de Shakespeare. O artigo é de 

Data: 01/08/2012
(*) Publicado originalmente em português no IHU Online.

Enquanto Qatar e Arábia Saudita armam e financiam os rebeldes sírios para derrubar a ditadura alauíta-baazista-xiíta de Bashar al-Assad, Washington não faz nenhuma crítica contra essas nações. O presidente Barack Obama e a sua secretária de Estado, Hillary Clinton, dizem que querem democracia para a Síria, mas o Qatar é uma autocracia, e a Arábia Saudita está entre os mais perniciosos califados ditatoriais do mundo árabe. Os governantes de ambos os Estados herdam o poder de suas famílias, assim como fez Bashar, e a Arábia Saudita é uma aliada dos opositores salafistas waabitas da Síria da mesma forma que foi uma fervorosa defensora do Talibã medieval durante as épocas obscurantistas do Afeganistão.

Certamente, 15 dos 19 sequestradores e assassinos em massa do 11 de setembro de 2001 eram sauditas, razão pela qual, é claro, bombardeamos o Afeganistão. Os sauditas reprimem a sua minoria xiita da mesma forma que hoje desejam destruir a minoria alauíta-xiita da Síria. E assim acreditamos que a Arábia Saudita quer democracia para a Síria?

Depois, temos o Hezbollah xiíta, milícia-partido no Líbano, mão direita xiita do Irã e simpatizante do regime de al-Assad. Durante 30 anos, o Hezbollah defendeu os xiitas oprimidos do sul do Líbano contra as agressões de Israel. Apresentaram-se como defensores dos direitos dos palestinos na Cisjordânia e em Gaza, mas agora que enfrentam o lento colapso do seu inescrupuloso aliado na Síria roubaram a sua língua. Nem eles, nem o seu principesco líder, Sayed Hassan Nasrallah, disseram uma palavra sobre as violações e os assassinatos em massa de sírios pelas mãos dos soldados de Bashar e da milícia shabiha.

Também temos os heróis dos Estados Unidos: Clinton, a secretária de Defesa, Leon Panetta e o próprio Obama. Clinton lançou uma enérgica advertência a Assad. Panetta, o mesmo que mentiu várias vezes para as últimas forças norte-americanas no Iraque sobre a velha história sobre o nexo entre Saddam e o 11 de setembro, anuncia que as coisas se precipitam e estão fora de controle na Síria. Essa foi a situação durante ao menos seis meses. Só agora estão se dando conta? Obama disse na semana passada que, dado o arsenal de armas nucleares que o regime tem, continuaremos deixando claro para Assad que o mundo o está observando.

Pois bem, não foi um jornalzinho chamado A Águia Siberiana que, temeroso do que a Rússia poderia fazer na China, declarou que estava observando o czar da Rússia? Agora chegou a vez de Obama enfatizar a ínfima influência que ele tem sobre os conflitos do mundo. Bashar al-Assad deve estar tremendo de terror dentro de suas botas.

Na realidade, será que o governo norte-americano irá querer abrir os arquivos das atrocidades de al-Assad para vê-los em plena luz do dia? Há poucos anos, o governo Bush enviava muçulmanos a Damasco para que os torturadores de Bashar al-Assad arrancassem as unhas para obter informações, e os mantinha presos a pedido de Washington no mesmo buraco inferno que os rebeldes fizeram voar aos pedaços na semana passada. As embaixadas ocidentais, com muito rigor, enviavam a esses torturadores perguntas para serem feitas nos interrogatórios das vítimas. Assad, vocês sabem, era o nosso bebê.

Também há essa nação vizinha que nos deve tanta gratidão: o Iraque. Na semana passada, perpetraram-se, em um dia, 29 ataques com bomba em 19 cidades, com um saldo de 111 civis mortos e 235 feridos. No mesmo dia, o banho de sangue sírio se consumou com mais ou menos o mesmo número de baixas inocentes. Mas o Iraque já está muito abaixo no plano em que se dá prioridade à Síria. Uma democracia jeffersoniana etc., etc. Então, essa matança ocorrida ao leste da Síria teve pouco impacto, certo? Nada do que fizemos em 2003 tem a ver com o atual sofrimento no Iraque, certo?

E depois estamos nós, os amados progressistas que rapidamente lotamos as ruas de Londres para protestar contra os massacres israelenses de palestinos, com muita razão, é claro. Quando os nossos líderes políticos se comprazem em condenar os árabes pelas suas selvagerias, mas são muito tímidos para dizer uma palavra de crítica morna quando o Exército israelense comete crimes contra a humanidade, ou assiste aos seus aliados fazerem o mesmo no Líbano, as pessoas comuns devem lembrar ao mundo que não são tão covardes quanto os seus políticos. Mas quando a contagem de mortes na Síria alcança 15 mil ou 19 mil, talvez 14 vezes o número de fatalidades decorrentes do feroz ataque de Israel em Gaza em 2008 e 2009, com exceção dos sírios expatriados, apenas um único manifestante sai às ruas para condenar esses crimes contra a humanidade.

Todo esse tempo nos esquecemos da grande verdade: que tudo isso é uma tentativa de esmagar a ditadura síria, não pelo nosso amor aos sírios, nem pelo nosso ódio ao nosso outrora amigo al-Assad, nem pela nossa indignação contra a Rússia, cujo lugar no templo dedicado aos hipócritas está claro quando vemos como ela reage frente a todos os pequenos Stalingrados que existem por toda a Síria.

Não, tudo isso tem a ver com o Irã e o nosso desejo de destruir a república islâmica e os seus infernais planos nucleares – se é que existem –, o que não tem nada a ver com os direitos humanos ou com o direito à vida ou à morte dos bebês sírios. Quelle horreur!

(*) Publicada no jornal Página/12, 31-07-2012. Tradução de Moisés Sbardelotto.

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