domingo, 23 de setembro de 2012

Mais desoneração e o risco para a Previdência Social


DEBATE ABERTO

O governo Dilma acabou incorporando essa reivindicação dos representantes
do capital e comprando até mesmo o discurso enganoso a respeito dos
efeitos positivos da desoneração da folha. Os empresários deixam de
contribuir com os atuais 20% e apenas os assalariados pagam os 11%. E como
fica a diferença da receita previdenciária, então?
Paulo Kliass

A Presidenta Dilma parece ter gostado do último figurino que alguns ramos
do conservadorismo lhe encomendaram. Praticamente a cada semana sua equipe
tem anunciado um novo pacote de benesses destinado aos detentores do
capital. Aparentemente iludida com a contradição artificial que setores da
grande imprensa tentam criar entre os governos de Lula e o seu próprio,
ela tenta acrescentar à sua conhecida fama de gerentona a imagem de uma
mui generosa governanta para o setor privado.

Apesar das sistemáticas negativas em elevar os gastos orçamentários com as
demandas de matérias oriundas da área social, quando se trata de afagar o
capital privado o comportamento de Dilma muda radicalmente.

Quando as entidades ligadas à área da educação solicitam os 10% do PIB
para esse setor, o Ministro Mantega proclama o alarmismo irresponsável:
com tal medida, o País quebraria! (sic) Quando as organizações ligadas ao
movimento social da te rra alertam para os baixíssimos números relativos
ao atraso na implementação da Reforma Agrária, o governo diz que não há
recursos disponíveis. Quando os funcionários públicos reivindicam
melhorias salariais e em suas condições de trabalho, o discurso se repete
a respeito da necessidade do cumprimento rigoroso da “política fiscal
responsável” e o governo ameaça com a criminalização do movimento. Quando
as associações vinculadas ao movimento da saúde pública propõem o
fortalecimento do SUS por meio de maiores verbas para a área, tampouco o
governo se mostra disposto a assumir compromissos efetivos. Quando as
entidades sindicais e as representações dos aposentados exigem o fim do
famigerado fator previdenciário, as lideranças do governo dizem que não há
como acabar com essa fonte de injustiça criada pelo governo tucano e
mantida pelo PT desde 2003. Enfim, a lista das negativas é extensa.

Para benesses ao capital, surgem os recursos “inexistentes”
No entanto, quando se trata de favorecer os interesses dos empresários, aí
parece que tudo muda de figura. As portas dos palácios se abrem
solenemente para encontros e reuniões. As cerimônias cheias de pompa
anunciam as medidas destinadas a beneficiar o capital, sob a falsa
argumentação de banalidades como o aumento da competitividade, a geração
de empregos, a redução do custo Brasil e por aí vai.

A esse respeito, a frase do mega empresário Eike Batista é precisa na
definição da opção da Presidenta: ao receber a notícia de um dos pacotes
de privatização de serviços públicos, resumiu-o como um verdadeiro “kit
felicidade” oferecido pelo governo. Era um sorriso só! No entanto, o que é
pouco noticiado pelos grandes órgãos de imprensa, a cada novo ato dessa
natureza, são os custos associados às medidas. Na verdade, trata-se de
expressivas despesas orçamentárias da União que passarão a ser e fetuadas,
quando até o dia anterior o “rigor fiscal” afirmava não haver recursos
disponíveis para nada. Como assim, então? Ora, tudo se resolve por uma
vontade política e a opção por determinadas diretrizes de governo revela
quais são as suas verdadeiras prioridades. Ou seja, quais são os setores
da sociedade - aliás, chamemos aqui por seu verdadeiro nome: as tão
famosas classes sociais - que estão sendo atendidos de fato.

Em 2010, ainda quando era pré-candidata à sucessão de Lula, Dilma fez um
famoso discurso aos prefeitos em Brasília, quando afirmava que não iria
fazer “bondade com chapéu alheio”. Agora, quando anuncia sua disposição em
ampliar ainda mais o espectro de ramos empresariais a serem benef iciados
pela desoneração da folha de pagamentos, não faz mais do que contradizer
aquela promessa. Sim, pois está fazendo uma tremenda bondade dirigida ao
capital, usando para tanto exatamente o chapéu de aposentados,
pensionistas, trabalhadores e integrantes das futuras gerações de
brasileiros.

Fim da contribuição patronal: caminho para a privatização
Essa reivindicação dos empresários é antiga. Ela sempre esteve na pauta
dos encontros de suas associações classistas, desde ainda os tempos da
ditadura. Surfando via de regra na onda geral da demagógica proposta de
redução da “carga tributária excessiva”, outras vezes o discurso pende
mais para a necessidade de reduzir os “elevados custos da força de
trabalho” em nossa terra. Quase que obcecados pela radicalização
ideológica do raciocínio, os proponentes dessa versão do “menos Estado”
não pensam em uma alternativa efetiva para o financiamento da seguridade
social, tal como previsto em nossa Constituição. Ao inviabilizar o modelo
de previdência pública e universal por meio de redução de suas receitas,
abre-se o caminho para a sua privatização. Maquiavelismo ou não, o fato é
que a rota traçada não oferece outra alternativa. E o mais impressionante
é que o Partido dos Trabalhadores corre o sério risco de passar para a
História como sendo o responsável pela implementação de tal estratégia.
Uma loucura!

A palavra mágica é a seguinte: desoneração da folha de pagamentos. Um
mantra que, de tão repetido, chega a transmitir ares de unanimidade
inescapável. Mas a coisa é bem mais complexa do que parece. O modelo de
financiamento de nossa previdência social prevê duas fontes de
contribuição para manter o sistema em operação: o assalariado recolhe 11%
sobre seu salário a cada mês, enquanto a empresa recolhe o equivalente a
20% sobre a mesma base salarial. Com tais alíquotas e com as atuais reg
ras de aposentadoria, a previdência vai bem, obrigado. A despeito das
enganosas interpretações a respeito do suposto “déficit estrutural”, o
fato é que o sistema ainda é superavitário – os números oficiais do
Ministério da Previdência Social demonstram isso. É claro que serão
necessários ajustes em razão das mudanças na dinâmica demográfica, pois o
futuro aponta para menor universo de jovens ingressando no mercado de
trabalho em relação ao maior número de aposentados e de maior longevidade,
em razão de alta na expectativa média de vida de nossa população. Mas essa
é uma discussão completamente diferente da atual.

O governo de Dilma acabou incorporando essa reivindicação dos
representantes do capital e comprando até mesmo o discurso enganoso a
respeito dos efeitos positivos da desoneração da folha. Os empresários
deixam de contribuir com os atuais 20% e apenas os assalariados pagam os
11%. E como fica a diferença da receita previdenciária, então? Bom, aí as
fórmulas mágicas começaram a sair da cartola – tinha para todos os gostos.
O governo optou por uma alíquota a incidir sobre o faturamento das
empresas. Ou seja, mudou-se subitamente uma forma de financiamento que,
apesar das dificuldades, vinha operando bem por mais de meio século. A
opção pode ser caracterizada como um salto no escuro, pois não há nenhuma
garantia de bom funcionamento da nova forma de financiamento. Foi uma
evidente tentativa desesperada de agradar aos representantes do patronato.
Uma verdadeira irresponsabilidade para com o País!

O que era uma experiência localizada, começa se generalizar
No início, o discurso oficial dizia que se tratava apenas de uma
experiência de laboratório, apenas 5 setores para verificar se o novo
sistema seria viável ou não. Mas o tempo pass a rápido e a primeira Medida
Provisória (MP) virou a Lei n° 12.546, de dezembro de 2011. Os
especialistas alertávamos para os riscos de tal estratégia, pois da forma
que estava encaminhada a questão, dificilmente haveria espaço para voltar
atrás. Logo depois, o número de setores aumentou para 15, pois os que
estavam de fora do banquete generoso clamaram contra a discriminação –
afinal, todos querem o mesmo direito de mamar de forma isonômica nas tetas
do Estado. E depois o governo encaminhou ainda outras mudanças nas regras,
ampliando o número de setores para 40 e reduzindo a alíquota que incide
sobre o faturamento das empresas. A MP 563/12 já foi convertida na Lei n°
12.715 e a Presidenta sancionou a matéria.

O assunto foi tratado pelo governo com tanto “carinho, seriedade e
preocupação” para com o futuro da previdência social, que a MP tratava num
único texto de assuntos tão díspares, a ponto do complexo e sensível tema
da desonera ção da folha ser apenas um item a mais (art. 55), em meio a um
verdadeiro cipoal de alterações legislativas em outras áreas. Oferecer um
texto dessa forma para ser analisado pelos congressistas é uma estratégia
ainda mais arriscada, como demonstra a longa lista constante da própria
ementa da matéria:

“Altera a alíquota das contribuições previdenciárias sobre a folha de
salários devidas pelas empresas que especifica, institui o Programa de
Incentivo à Inovação Tecnológica e Adensamento da Cadeia Produtiva de
Veículos Automotores, o Regime Especial de Tributação do Programa Nacional
de Banda Larga para Implantação de Redes de Telecomunicações, o Regime
Especial de Incentivo a Computadores para Uso Educacional, o Programa
Nacional de Apoio à Atenção Oncológica, o Programa Nacional de Apoio à
Atenção da Saúde da Pessoa com Deficiência, restabelece o Programa Um
Computador por Aluno, altera o Programa de Apoio ao Desenvolvimento
Tecnológico da Indústria de Semicondutores (...) e dá outras
providências.”

O problema está criado! Os valores a serem recolhidos sob a forma da
alíquota de faturamento são insuficientes para cobrir as despesas do
Regime Geral da Previdência Social (RGPS). Mas o governo já anunciou sua
intenção em cobrir esse rombo com recursos do Tesouro Nacional. Ou seja,
vai assegurar mais vários bilhões de reais anuais de subsídio ao setor
privado. Mas até quando ocorrerá tal disposição? Daqui a pouco começarão
os recorrentes clamores quanto aos gastos exagerados com a Previdência e
os conhecidos estudos “demonstrando” seu déficit estrutural crescente. A
continuidade dessa forma de financiamento da Previdência Social tende a
levar o sistema a uma asfixia em suas fontes de receita, abrindo mais
espaço para as proposta de corte de benefícios e mesmo de privatização.

Preservar a Previdência Social é voltar com a contribu ição sobre a folha
O cansativo e repetitivo discurso de nossas elites a respeito do custo da
mão-de-obra não encontra respaldo na realidade. Há 15 anos atrás, quando
PT propunha simbolicamente que o salário mínimo fosse o equivalente a US$
100, os que hoje clamam pela desoneração diziam que o Brasil não
suportaria tal “irresponsabilidade populista”. Hoje, a remuneração mínima
vale mais de US$ 300 e o mercado de trabalho funciona a todo o vapor. Ora,
parece evidente que não são esses 20% de contribuição sobre a folha que
trazem dificuldades para a estrutura de custos das empresas. E o governo
que se prepare, pois a lista da flexibilização dos encargos trabalhistas
considera necessário também eliminar conquistas históricas como 13°
salário, FGTS, licença maternidade – tudo em nome da redução do custo
Brasil.

Ao movimento sindical e às associações de aposentados não existe outra
alternativa que não seja exigir do g overno o abandono dessa aventura
irresponsável e o retorno à contribuição patronal na base de 20% sobre a
folha de pagamentos. O que está em jogo é o futuro da Previdência Social
pública e universal.



Paulo Kliass é Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental,
carreira do governo federal e doutor em Economia pela Universidade de
Paris 10.



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