domingo, 21 de outubro de 2012

Lembrancas de Graciliano



œ Por Diego Viana | De Sao Paulo
Valor Economico, 19/10/2012
Graciliano Ramos: relatorios de prestacao de contas quando foi prefeito de Palmeira dos Indios (AL) sao
lemb rados sob retudo por seu valor literario e pelo tom corrosivo
Graciliano Ramos so se encontrou pessoalmente com Getulio Vargas uma unica vez, em
pleno Estado Novo, numa calcada do bairro carioca do Catete, sede do palacio presidencial
ocupado pelo gaucho. Getulio reconheceu o escritor, que vivia em uma pensao proxima, e o
cumprimentou. Mas Graciliano passou sem responder. Entre 1935 e 1936, o escritor estivera
preso pelo regime de Getulio, sem acusacao formal - episodio que seria transformado nos
volumes de "Memorias do Carcere", obra levada ao cinema por Nelson Pereira dos Santos em
1984.
A narracao do encontro e um dos acrescimos que o jornalista e professor da Universidade
Federal Fluminense (UFF) Denis de Moraes fez a reedicao de sua biografia de Graciliano
Ramos ("O Velho Graca", Boitempo, 360 pags., R$ 52,00), em celebracao dos 120 anos do
escritor nascido em 1892 em Quebrangulo (AL). Outras comemoracoes da efemeride estao
programadas. No inicio do mes, o diretor-geral da Festa Literaria Internacional de Paraty
(Flip), Mauro Munhoz, anunciou que o homenageado da edicao 2013 do evento sera
Graciliano. Segundo a organizacao da Flip, "escritor, jornalista e politico, Graciliano Ramos
teve uma vida em que a literatura e a politica se entrelacaram e, nao raro, as conviccoes e
atividades politicas inspiraram suas obras de forte conteudo social".
A versatilidade e o engajamento politico de Graciliano fizeram do autor alagoano "um dos
escritores mais singulares da literatura brasileira", nas palavras de Moraes. O biografo cita as
glorias e os tormentos que seu personagem conheceu. Foi um romancista aclamado pela
critica, mas tambem, por outro lado, preso politico de um regime repressivo e, no ultimo
decenio de vida, militante do Partido Comunista Brasileiro (PCB) durante a Guerra Fria,
"sempre obrigado a ter varios empregos para sobreviver". Um desses empregos foi no
Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP) do governo Vargas, justamente o regime que
Graciliano criticou e o encarcerou.
"Voce esta cortando tanto que esse livro vai acabar saindo em branco!", disse a
mulher do escritor, quando ele revisava "Vidas Secas"
Moraes ressalta, tambem, a figura do autor de "Vidas Secas" e "Angustia" como pessoa
publica. Ele foi prefeito da cidade de Palmeira dos Indios, onde residiu de 1910 a 1930 (com
um breve intervalo no Rio em 1914-1915). Ao renunciar a prefeitura, mudou-se para Maceio,
onde se tornou diretor da Imprensa Oficial de Alagoas, depois diretor da Instrucao Publica do
Estado. Ja no Rio, em 1939, foi nomeado inspetor federal de ensino secundario da entao
capital do pais. As experiencias justificam que seu biografo se refira a Graciliano Ramos como
"um dos mais eloquentes exemplos da corda-bamba em que caminha um intelectual critico
no Brasil". E acrescenta: ainda hoje. O retrato de Graciliano e o de um criador "dividido entre
o binomio criacao-reflexao e a necessidade de buscar alternativas para se sustentar
financeiramente".
A breve experiencia de Graciliano a frente do Poder Executivo de um municipio brasileiro,
como prefeito de Palmeira dos Indios, deixou como legado dois relatorios de prestacao de
contas que, hoje, sao lembrados sobretudo por seu valor literario e o tom corrosivo,
caracteristico de Graciliano. Sobre o antigo contrato de eletricidade do municipio, escreve o
prefeito: "A prefeitura foi intrujada quando, em 1920, aqui se firmou um contrato para o
fornecimento de luz. Apesar de ser o negocio referente a claridade, julgo que assinaram aquilo
as escuras. E um bluff. Pagamos ate a luz que a lua nos da".
Moraes caracteriza Graciliano como "um prefeito revolucionario", que pos fim a corrupcao na
gestao municipal, controlou as financas, fez obras em bairros pobres, abriu estradas e
recuperou escolas. Quando teve de multar o proprio pai, Sebastiao Ramos, porque sua loja
descumpriu normas municipais, Graciliano afirmou: "Prefeito nao tem pai, a lei vale para
todos". Segundo Moraes, foi a repercussao dos relatorios de Graciliano, primeiro em Maceio e,
em seguida, no Rio, que lhe rendeu convites para publicar na entao capital federal os
romances "Caetes" (1933) e "Sao Bernardo" (1934).
Outra passagem acrescentada a biografia diz respeito a carta que o escritor chegou a redigir
em 1938, mas jamais enviou a seu destinatario, o mesmo Getulio Vargas do encontro fortuito
no Catete. "Mesmo nao a tendo enviado, um sinal de sua importancia para Graciliano foi o
fato de te-la guardado, quem sabe ja imaginando uma divulgacao posterior", especula o
biografo. Segundo Moraes, trata-se de "um desabafo intimo sobre as vicissitudes que
enfrentara no periodo da prisao", mas em tom respeitoso, ainda que com estocadas ironicas.
Graciliano comenta, por exemplo, que nao chegou a conhecer o delegado de policia, porque se
esqueceram de interroga-lo. "Depois de onze meses abriram-me as grades, em silencio, e
nunca mais me incomodaram."
Tristao de Athayde, que escreveu o posfacio de "Viventes das Alagoas", de Graciliano, definiu a
obra do autor alagoano como uma sintese entre "o fogo da paixao social que sempre o
empolgou" e a capacidade de alcancar um padrao literario tecnicamente perfeito. E prossegue:
"Homem integro e integral em sua vida domestica, social e intelectual, homem com arestas
apesar de sua participacao efetiva nos movimentos historicos e politicos de sua epoca,
Graciliano Ramos ficara na historia de nossas letras como a imagem do escritor em sua mais
pura expressao".
"O realismo critico nao teria o mesmo vigor sem o compromisso humanista de Graciliano",
acrescenta Moraes. Demonstrando interesse na complexidade da condicao humana, diz,
Graciliano fez da literatura "um meio de desvelar e tentar entender os sentidos da passagem
do homem pela Terra".
A par do olhar agucado sobre a realidade da vida humana, Graciliano foi um escritor que
privilegiou a concisao e a clareza; conta-se dele que se revoltou quando um redator da revista
que editava utilizou o termo "outrossim". Nas palavras do proprio escritor: "Odeio gorduras
desnecessarias e derramamentos insuportaveis". Moraes conta que Heloisa Ramos, mulher de
Graciliano, comentou a forma obsessiva como cortava o texto de "Vidas Secas", considerada
sua obra-prima: "Voce esta cortando tanto que esse livro vai acabar saindo em branco!"
O compromisso com a qualidade do texto literario pos Graciliano em rota de colisao com o
realismo socialista que emanava da Uniao Sovietica stalinista de seu tempo, sob influencia de
Andrei Jdanov, comissario cultural de Stalin. Embora filiado ao PCB, Graciliano deixou claro
seu pensamento sobre as teses esteticas de Jdanov. Entre amigos, segundo Moraes, referia-se
ao comissario como "cavalo".
Tambem na linha das comemoracoes pelos 120 anos de nascimento de Graciliano Ramos, a
editora Record lanca o livro "Garranchos - Achados Ineditos de Graciliano Ramos" (378
pags., R$ 49,90), organizado por Thiago Mio Salla. O livro contem textos os mais diversos, de
cronicas de jornal a anotacoes

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