sexta-feira, 30 de novembro de 2012

Palestina conquista o reconhecimento na Organização das Nações Unidas


Adital
A Assembleia Geral das Nações Unidas aprovou por 138 votos a favor, 9 contra e 41 abstenções a resolução que muda o status da Autoridade Nacional Palestina, que até hoje era uma "entidade observadora”. Milhares de palestinos saíram às ruas para comemorar antecipadamente na Cisjordânia, já que o presidente do país, Mahmoud Abbas, havia anunciado o compromisso dos países necessários para aprovar a iniciativa.
A resolução aprovada "reafirma o direito do povo palestino à autodeterminação e independência em um Estado de Palestina a partir das fronteiras de 1967” e eleva o status da ANP de "entidade observadora” a "Estado observador não membro”.
Como Estado observador, status que compartilha com o Vaticano, a Palestina pode trabalhar em comissões e tem direito a voz, ainda que não seja membro do organismo nem tenha direito a voto.
Em seu discurso diante da Assembleia antes da votação, Abbas chamou a comunidade internacional a assumir "essa responsabilidade histórica” para que não demore mais a retomada do processo de paz com Israel e para corrigir a "injustiça sem precedentes” da ocupação israelita de Gaza e Cisjordânia.
"A Palestina vem hoje diante da Assembleia Geral porque acredita na paz e porque seu povo, como provou nos últimos dias, a necessita desesperadamente”, disse o mandatário e enfatizou que "a Palestina se apresenta na ONU porque acredita que está em um momento decisivo, diante da última oportunidade para chegar a solução dos Estados”, expressou.
"Chegou a hora de o mundo dizer não a ocupação da Palestina”, manifestou Abbas em seu discurso. "A ocupação deve terminar. Não necessitamos de mais guerras para compreender a importância da paz”, pontuou.
Fonte: www.pagina12.com.ar

"O veneno está na mesa"


“O veneno está na mesa” e o uso de agrotóxicos está na pauta
Em meio a manchetes de jornais que apontam que a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) contrariou regras internas e permitiu a venda de agrotóxicos mais prejudiciais à saúde, o documentário "O veneno está na mesa", de Silvio Tendler, exibido na 7ª Mostra Cinema e Direitos Humanos na América do Sul, que ocorrem em São Paulo, vem mostrar a sua duradoura atualidade.
Data: 29/11/2012
São Paulo - Em meio a manchetes de jornais que apontam que a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) contrariou regras internas e permitiu a venda de agrotóxicos mais prejudiciais à saúde, o documentário O veneno está na mesa, exibido na 7ª Mostra Cinema e Direitos Humanos na América do Sul vem mostrar a sua duradoura atualidade.

O filme de 50 minutos segue linguagem direta, com opinião explícita sobre o assunto, como já é marca do diretor Silvio Tendler. É produto de uma campanha contra o uso de agrotóxicos no Brasil que conta com apoio direto do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), de uma série de entidades e movimentos sociais.

Os dados colocados de maneira pedagógica no documentário – como o de que os brasileiros consomem em média 5,2 litros de veneno por ano – impactam não só em decorrência da desinformação geral sobre a quantidade de agrotóxicos contida nos mais variados alimentos disponíveis nas prateleiras de supermercados, como também pela ausência de divulgação dos verdadeiros impactos desses produtos à saúde humana.

Justamente por ser parte de uma campanha, com posicionamento indiscutível contra o uso de agrotóxicos, o filme surpreende pela quantidade e qualidade das entrevistas conduzidas por Aline Sasahara.

São 70 no total, sendo elas majoritariamente de agricultores – de variados municípios do país -, o que também demonstra uma opção de ouvir aqueles que lidam diretamente com a terra, que entendem dos perigos dos agrotóxicos e também sofrem diretamente seus efeitos.

Sasahara conta que foi impactante ver durante a coleta de depoimentos que “as pessoas têm consciência de quanto estão se expondo, que estão multiplicando esses produtos e que estão envenenando outros consumidores”. Mas a angústia é não conseguir vencer esta lógica devido à pressão do agronegócio.

“Nós fomos pra região do fumo, por exemplo, onde a realidade é absolutamente devastadora, que merecia um outro filme” diz Sasahara, explicando que não é somente sobre os produtos comestíveis que este problema versa. Como a produção do fumo também é uma atividade tradicional, de cultivo que envolve o conjunto das famílias incluindo crianças, o tema gera inclusive discórdia entre seus membros sobre como enfrentar as empresas que impõem a compra de um pacote de produtos químicos para viabilizar a produção. “É uma situação de escravidão e as pessoas não conseguem sair”, conclui.

Intercalado com imagens de defensores do uso de agrotóxico, como a senadora Kátia Abreu (PSD), o documentário coloca em confronto aberto os distintos projetos de desenvolvimento da agricultura no país. De um lado os porta-vozes do agronegócio, de outro os movimentos sociais, pequenos agricultores, intelectuais progressistas e pesquisadores do assunto.

“Desde 2008, o Brasil é o maior consumidor de agrotóxicos”, diz a abertura do filme. E já se sabe que eles causam câncer, má formação do feto, depressão, problemas hormonais, neurológicos, reprodutivos, no rim, doenças de pele, diarréia, vômitos, desmaio, dor de cabeça e contaminação do leite materno. É sob este estigma que toda uma geração cobaia, em nome do “sucesso da agricultura”, viverá caso as políticas entorno do agrotóxico não sejam revistas. E o filme contribui para que o país tenha melhor noção sobre a dimensão desses perigos, não só aos seres humanos diretamente, mas também ao meio ambiente.

A programação completa da Mostra pode ser vista em: http://www.cinedireitoshumanos.org.br

"O que Israel está fazendo com os palestinos é muito pior do que o apartheid sul-africano”.




Para Ronnie Kasrils, Israel só vai parar com o expansionismo e com a opressão de fora para dentro. “Um movimento de solidariedade internacional aos palestinos tem um papel muito importante. Foi assim que nós derrubamos o apartheid. Nós tínhamos razão. Levou tempo, mas Leclerc teve de libertar Mandela e dizer ‘vamos conversar’, que era o que nós dizíamos que tinha de ser feito. "Eu acredito que este é o aspecto mais importante da luta em solidariedade ao povo palestino. É preciso denunciar os assentamentos, mas é preciso boicotar, também. É preciso constrange-los materialmente, economicamente”, defendeu.
Data: 28/11/2012
Ele tem 73 anos e nasceu numa comunidade judaica de Joanesburgo, formada por fugitivos do extermínio em Vilna e em Riga, na Lituânia, no início do século XX. Aos 9 anos, numa sessão de cine-notícias entre filmes, viu as imagens que começavam a circular, no mundo, dos campos de concentração nazistas. Voltou para casa e perguntou a sua mãe, a quem diz dever a sua consciência frente à opressão e à intolerância, se o que acontecia na sua vizinhança e no seu país, com a população negra, era a mesma coisa. Se a pobreza, a humilhação e a segregação a que estavam condenados pelos brancos era a mesma coisa que, no cine-notícia que acabara de ver, chamaram de antissemitismo. “A minha mãe, que não era uma intelectual, cuja família tinha uma delicatessen, mas que frequentou a escola até os 16 anos, disse que não, que não era a mesma coisa. Mas que aquilo que eu tinha visto e que tinha acabado de acontecer com o nosso povo na Europa tinha começado dessa mesma maneira que eu descrevera, ali (na África do Sul)”. Esse é o tipo de coisa que Ronnie Kasrils começa a contar, assim que senta na mesa e pede que nos apresentemos, para uma conversa com alguns dos mais proeminentes participantes do Fórum Social Mundial Palestina Livre, que começa nesta quinta (29) e vai até domingo, em Porto Alegre.

Ronnie, ou “Ronaldo”, como ele gosta de se chamar, aqui, é um homem extraordinário e um sujeito adorável. Parece muito mais jovem, talvez pela exuberância, talvez pela natureza de seu compromisso moral com o mundo. É muito raro, quando se trata da questão palestina, que algum militante abra sorrisos tão largos e demonstre tamanho otimismo, como o faz Kasrils, um escritor, ativista, ex-ministro de estado da África do Sul pós-apartheid e membro do Tribunal Russell para a Palestina. Ele começou a falar de sua vida, de suas trajetórias e de suas escolhas. É difícil de acreditar, mas Kasrils, aos dez anos, fez parte do Betar, o movimento da juventude sionista criado por Ze'ev Jabotinsky, o pai do revisionismo sionista, um movimento de extrema direita, que defende o que chamam de Israel bíblica, algo que hoje implicaria a incorporação da Síria, do Líbano, da Jordânia e do norte do Egito. Ronnie contou esse fato pitoresco rindo, para em seguida deixar claro: “Éramos muito influenciados por um professor, que estimulava um sentimento de violência e de conflito, inclusive entre nós, e mesmo físico, como se isso nos fortalecesse, como um projeto pedagógico. Éramos meninos, tínhamos pouco mais de dez anos, mas entendemos que ele era doente. Era um louco”. O seu engajamento no Betar se desfez com essa descoberta e também com a entrada no ensino médio, num colégio da elite branca, onde conheceu um professor história, Teddy Gordon, também judeu, que lhe ensinou sobre a Revolução Francesa.

É difícil descrever à altura o brilho nos olhos do sul-africano, quando falou de seu professor, a quem atribui a mudança mais definitiva na sua vida. Ronnie Kasrils é um homem poderoso e mundialmente conhecido, pegou em armas com Mandela, foi ministro de estado, mas quem mudou a sua vida, em termos políticos, foi o professor de história que lhe deu aula sobre um acontecimento chamado Revolução Francesa. “Eu era, até então, um péssimo aluno, eu era um atleta, não era da ala dos intelectuais, como Richard Goldstone, que era meu colega. Mas quando esse professor começou a dar aula eu me tornei o melhor aluno, e saí do colégio de maneira promissora”, disse, sorrindo, convincente. Kasrils tem aquela capacidade rara de nos ensinar a mirar a história com ganas de atribuir-lhe sentido e com a confiança em tal coisa. A escolha por nos contar essa história, essa pequena parte dela, era uma operação deliberada e ao mesmo tempo refinada. Era como se ele estivesse nos dizendo: olha aqui, gurizada, eu passei a levar a sério um ponto de vista universalista e é deste ponto de vista que eu estou aqui.

A ligação com a esquerda judaica e a luta contra o apartheid sul-africano

“Mas eu também saí do Betar por uma outra razão”, conta, rindo. “As meninas do Habonim Dror eram muito mais bonitas” e, na época, Kasrils não era exatamente um militante da esquerda judaica socialista, que buscava criar um lar nacional judaico a partir da cultura e da educação e da vida kibutziana.

“O que me tornou de esquerda foi o massacre de Shaperville, de março de 1961, em que 69 militantes pacifistas negros foram mortos e centenas ficaram feridos. Ali eu tomei a decisão de que iria fazer alguma coisa. A minha família nunca foi militante, de esquerda, mas eu tinha um tio na Cidade do Cabo que era advogado e comunista. Eu peguei um ônibus e fui para a casa dele. Cheguei lá e disse: eu quero me juntar a vocês”. Ele nos olha bem sério, encosta-se na cadeira, abre um sorriso e completa: “Então foi assim que eu comecei. Eu tinha de pôr em contato os núcleos da resistência ao apartheid, os membros dos partidos comunistas, da esquerda. E o meu tio estava isolado, noutra cidade. Eu disse que iria fazer isso. E fiz”.

Quando Mandela convocou à luta armada, após os acontecimentos de Shaperville, Kasrils se juntou a ele. Treinou na União Soviética, recebeu formação militar e esteve em vários países africanos, quando se tornou chefe de inteligência militar do movimento Lança de Uma Nação, o braço armado do Congresso Nacional Africano, liderado por Nelson Mandela. Passou cinco anos na cadeia, perdeu o emprego como executivo de uma empresa de telefonia, foi perseguido e banido da comunidade branca sul-africana. E se tornou ministro de estado da África do Sul pós-apartheid. Foi então que se voltou para a questão palestina.

A luta contra o apartheid israelense

Com o fim do apartheid e a primeira eleição democrática da África do Sul, Kasrils se tornou ministro de estado. E, depois do ministério da defesa, foi nomeado ministro para assuntos de água e florestas, de 1999-2004. Nesse período, ocorreu a segunda intifada e o muro de anexação de territórios palestinos, pelo então governo de Ariel Sharon, começou a ser erguido, anexando territórios palestinos para construir assentamentos, esmagando casas e vilas palestinas, segregando bairros, vilas e famílias, dividindo a região e instaurando um sistema identificado pelo sul-africano como muito mais hostil que o apartheid sul-africano. Em 2001 ele redigiu a “Declaração de Consciência de Sul-Africanos Judeus”, contra as políticas israelenses nos territórios palestinos ocupados. Passou a ser acusado de antissemita, pela direita judaica local, e viajou para a Cisjordânia, como ministro para assuntos de água e florestas. Lá conheceu Jamal Juma, que dava início ao movimento de resistência não violenta Stop the Wall.

O que você defende como solução, os dois estados, as fronteiras da linha verde, um só estado para dois povos? Eu perguntei e isso parece não ter ecoado como uma questão a ser respondida. Kasrils olha para mim e diz que Israel só vai mudar, só vai parar com o expansionismo e com a opressão de fora para dentro. “Um movimento de solidariedade internacional aos palestinos tem um papel muito importante. Foi assim que nós derrubamos o apartheid. Nós tínhamos razão. Levou tempo, mas Leclerc teve de libertar Mandela e dizer ‘vamos conversar’, que era o que nós dizíamos que tinha de ser feito. Mas é preciso constranger economicamente, não apenas politicamente. O programa de Desinvestimento e de Boicote significou o começo do fim do apartheid e nós terminamos vencendo. Eu acredito que este é o aspecto mais importante da luta em solidariedade ao povo palestino. É preciso denunciar os assentamentos, mas é preciso boicotar, também. É preciso constrange-los materialmente, economicamente”, defendeu. Para Kasrils, o fato de que em Israel os cidadãos palestinos são cidadãos de segunda classe, com direitos limitados e sem o grau de liberdade civil dos israelenses configura apartheid. “No regime do apartheid, diante de um mestiço que não se sabia ao certo se era negro ou não, passavam um pente para ver se iria ou não deslizar sobre o cabelo. Caso o pente parasse, a pessoa iria para os setores dos negros”.

Em Israel não é assim, mas não precisa ser, lembrou. Há um muro que consegue separar as sociedades, anexando territórios dos palestinos, mas que afasta completamente os dois povos, promovendo limpeza étnica e criando “coisas como rodovias em que só judeus podem trafegar. Isso é uma violência que nem o apartheid sul-africano cometeu. O que o estado de Israel está fazendo com os palestinos é muito pior do que aquilo que acontecia no apartheid sul-africano”, concluiu.

O Fórum vai de 29 de novembro a 01 de dezembro e tomará conta da Rua dos Andradas, no centro de Porto Alegre. Confira programação aqui: www.wsfpalestine.net

Classe C e Nova Classe Média


Por William Nozaki, publicado originalmente na Carta Maior

Em comparação com os últimos cinquenta anos, o Brasil convive atualmente com uma experiência inédita na transformação de sua estrutura social. As políticas de elevação real do salário mínimo, de expansão da oferta de crédito e de ampliação dos programas de transferência de renda estimularam o crescimento do PIB com base no avanço do mercado interno e originaram um tripé socioeconômico virtuoso caracterizado pelo aumento do mercado formal de trabalho, pela redução da pobreza e pela melhora na distribuição de renda.
Essa combinação de fatores tem como uma de suas principais conseqüências um fenômeno nem sempre analisado com o devido cuidado e rigor: o crescimento daquilo que se chama de modo inapropriado de “classe C” ou “nova classe média”.
Embora o adensamento das camadas intermediárias seja um fenômeno incontestável, a maior parte das pesquisas que captam essa mudança incorre em dois erros:
(i) Há uma associação superficial entre renda individual e classe social. O fato, por exemplo, de um trabalhador industrial qualificado e um professor universitário auferirem a mesma renda pode ser encarado como um indicador macroeconômico de redução da desigualdade. Mas, sociologicamente, diz muito pouco, ou quase nada, sobre seus estilos de vida distintos e seus hábitos de consumo diferentes. Tais ganhos, certamente, serão utilizados a partir de referências culturais e entre redes sociais que não garantem nenhum laço de pertencimento de classe, pelo contrário: o mais provável é que a realização do consumo revele status sociais ainda muito desiguais. Nesse sentido, há muitas diferenças entre o estilo de vida da classe média estabelecida e da chamada “nova classe média” que estão longe de ser transpostas.
(ii) Há uma relação inadequada entre renda média e estrato médio. Na maior parte das vezes, os estudos que abordam o assunto referem-se à média em seu sentido algébrico, ou seja: média é a posição matemática daquilo que está igualmente distante dos pontos extremos. Como a distribuição de renda no país é historicamente severa e como há uma distância muito grande entre os muito ricos e os extremamente pobres, o agrupamento intermediário orbita numa vasta faixa de rendimentos que vai, aproximadamente, de R$ 1000 a R$ 5000. Essa zona de estratificação dilatada impede análises mais criteriosas. Sendo assim, as denominações “classe C” e “nova classe média” são infelizes, posto que transmitem a impressão de que o Brasil está se tornando aquilo que não é: um país em que os remediados são a maioria e no qual a pobreza vai tornando-se um problema residual.
Para compreender essas mudanças em sua inteireza é preciso empreender uma análise que incorpore outras variáveis como estrutura ocupacional, acesso a mercadorias privadas e a serviços públicos, padrões de consumo, entre outros.
Perfil e preferências econômicas
Sob essa perspectiva o que se evidencia é que o mais adequado é denominar o estrato que ascendeu socialmente e economicamente nos últimos anos de nova classe trabalhadora urbana. Do ponto de vista ocupacional, trata-se de vendedores, balconistas, motoristas, motoboys, profissionais de telemarketing, os diversos tipos de auxiliares que atuam em empresas e comércios, recepcionistas, cabeleireiros, garçons e uma heterogeneidade de trabalhadores qualificados.
Do ponto de vista da educação, seus integrantes, na maioria, são aqueles que utilizam as escolas públicas ou escolas particulares com mensalidades mais baixas; e do ponto de vista da saúde, são aqueles que necessitam dos hospitais públicos ou de planos de saúde mais baratos. Esse balanceio instável entre os serviços públicos e as possibilidades privadas mais “em conta” se reproduz em outras esferas: habitação, transporte, segurança, alimentação, cultura, lazer, entretenimento etc.
Por esses motivos, ao contrário da classe média estabelecida que se queixa dos impostos inadvertidamente, a nova classe trabalhadora percebe com contrariedade o aumento de impostos, taxas e tarifas pois sua elevação lhe afeta mais diretamente o poder de compra, mas ela também reconhece a importância e a necessidade dos serviços públicos pois depende deles mais frequentemente.
Essa nova classe trabalhadora, em grande medida, trabalha de 10 a 14 horas por dia, tem dois ou mais empregos, trabalha de dia enquanto estuda a noite, e nas grandes cidades enfrenta horas de transporte público enquanto se desloca entre a casa e o trabalho. Também por esses motivos, ao contrário da classe média tradicional que tudo atribui ao mérito individual, a nova classe trabalhadora percebe sua ascensão como fruto do esforço individual e de privações, mas sabe que precisa contar frequentemente com alguma rede de solidariedade e laços fraternos entre os amigos e os vizinhos.
Mais do que outros estratos, esse grupo se beneficia da expansão do crédito ao consumidor e está satisfeito com a possibilidade de adquirir novos bens considerados indispensáveis para o conforto doméstico e para a melhora na qualidade de vida na cidade, esse grupo está disposto a encontrar sua sociabilidade pelos caminhos do consumo.
Idéias e preferências políticas
Esse conjunto de ambiguidades leva a crer que a nova classe trabalhadora não necessariamente tem uma consciência conservadora. Pelo contrário, esse setor está potencialmente disponível e aberto a visões mais progressistas, seus valores e seu voto podem ser conquistados pela esquerda.
Para compreender a relação entre as preferências econômicas e políticas dessa nova classe trabalhadora é fundamental considerar que o aumento do poder de compra possibilitou o acesso a novos canais de formação e informação, mais do que isso: tais canais têm sido ocupados, sobretudo, por um número significativo de jovens e é a partir desse grupo que se irradiam certas opiniões políticas e eleitorais.
A progressiva ampliação do acesso à educação e à internet tem promovido uma importante mudança em suas exigências e interesses políticos. No atual contexto, o eixo da formação de opinião se deslocou dos pais ou de velhas lideranças locais (representantes comunitários, padres e pastores) para os filhos.
A maior parte desses jovens tem níveis de escolaridade mais elevados do que os dos pais, estão conquistando uma melhor inserção profissional e seguem atentos para as mudanças tecnológicas, por isso eles são ouvidos com maior atenção dentro das suas famílias e comunidades, atuando como referências prioritárias para a formação de opinião, de forma mais incisiva do que as propagandas e a própria televisão.
Os pais dessa nova geração enxergavam o mundo pela ótica da carência que marca a periferia, observavam os políticos considerando aquilo que não havia sido feito e permaneciam mais suscetíveis a promessas de campanhas eleitorais. Já essa nova geração - ao circular por novos espaços como a universidade e as redes sociais - enxerga o mundo por uma ótica mais ampla, dispõe de um maior número de referências para operar comparações, avalia os políticos e os partidos considerando aquilo que deveria ter sido feito e nutre maior desconfiança com relação a promessas de campanhas eleitorais. Vale ainda notar que, se por um lado, eles não desejam o estilo de vida da elite, por outro, eles desejam continuar ascendendo socialmente.
Essa disposição para a mudança, entretanto, passa por marcos ambivalentes: esses jovens acreditam na política, mas não crêem em partidos; reconhecem a importância da coletividade, mas almejam crescer individualmente; buscam transformações, mas são pouco afeitos a rupturas; anseiam por novas ideias, mas são também pragmáticos. Em suma, esse novo caldo cultural exigirá renovações tanto na forma como se realiza a política partidária quanto no conteúdo das políticas públicas que se implementam.
A mistura entre valores do liberalismo, do individualismo, da ascensão pelo trabalho e do sucesso pelo mérito, com valores mais solidários e coletivistas relacionadas à atuação do Estado, à universalização de direitos, à ampliação da inclusão social, permeiam a visão de mundo e o imaginário dessa nova classe trabalhadora.
A nova classe trabalhadora entendida como um novo sujeito político pode fazer toda a diferença nos embates sociais, políticos, ideológicos e eleitorais que serão travados de agora em diante.
(*) William Nozaki é Sociólogo e Economista, professor da Universidade Mackenzie e doutorando em desenvolvimento econômico (IE/Unicamp).

O envelhecimento acima da média da população brasileira


Por Assis Ribeiro
Do Valor
Por Alessandra Saraiva e Diogo Martins | Do Rio
O ritmo de envelhecimento da população brasileira está acima da média mundial. É o que mostra a Síntese de Indicadores Sociais, análise do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) sobre as condições de vida da população brasileira 2012, divulgada ontem.
A conclusão tem como base o índice de envelhecimento do país, calculado por meio da relação entre o número de pessoas de 60 anos ou mais de idade para cada cem pessoas de menos de 15 anos de idade. Segundo o instituto, o índice no Brasil foi de 51,8 em 2011, em comparação com resultado de 48,2 para o indicador de envelhecimento mundial, referente ao mesmo ano. Isso, na prática, significa que havia, no país, no ano passado, aproximadamente uma pessoa de 60 anos ou mais de idade para cada duas pessoas de menos de 15 anos de idade.
Em números absolutos, o crescimento no número de idosos no país foi considerado "marcante" pelo IBGE: passou de 15,5 milhões de pessoas, em 2001, para 23,5 milhões em 2011. A fatia de pessoas nessa faixa etária, dentro da população brasileira, passou de 9% para 12,1% no período.
O estudo também mostra que os idosos têm uma situação de renda melhor do que os jovens. De acordo com o levantamento, 53,6% das pessoas com menos de 25 anos estão concentrados nas duas menores faixas de renda per capita familiar pesquisada pelo instituto (menos de um quarto do salário mínimo; e de um quarto a metade de um salário mínimo), ou seja, na base da pirâmide.
Apenas 17,9% dos idosos de 60 anos ou mais de idade se encaixam nas duas faixas de renda, de acordo com a pesquisa - fruto de políticas sociais e previdenciárias que garantem benefícios mínimos de um salário mínimo para idosos carentes do país, de acordo com o estudo do IBGE.
Em 2011, o grupo com até 24 anos na população brasileira era de 78,5 milhões de pessoas, em torno de 40,2% do total. Essa faixa etária está perdendo peso na população brasileira. Em 2001, pessoas nessa faixa de idade correspondiam a quase metade dos brasileiros (48,2%).
Segundo o IBGE, o envelhecimento da população é influenciado pelo recuo das taxas de fecundidade. Pelo Censo Demográfico 2010, a taxa era de 1,90 filho por mulher, a menor da última década. Outro fator a ser considerado, de acordo com o instituto, é o recuo no contingente de pessoas em faixas de idade mais jovem. De 2001 a 2011, diminuiu de 45,9 para 36 o número de pessoas até 14 anos de idade para cada 100 pessoas de 15 a 59 anos, segundo o levantamento.
O estudo mostra ainda que a proporção de mulheres sem filhos difere de acordo com a escolaridade. Entre mulheres com até sete anos de estudo de 15 a 19 anos, 18,3% tinham filhos, sendo que do total de mulheres com oito anos ou mais de estudo, na mesma faixa etária, apenas cerca de 7% tinham filhos.
Ainda de acordo com o documento divulgado ontem pelo IBGE, a renda média do trabalho principal de pessoas com 16 anos ou mais de idade subiu 16,5% entre 2001 e 2011. As categorias que tiveram os maiores ganhos reais no período, respectivamente de 22,3% e de 21,2%, foram mulheres e trabalhadores informais. Segundo o instituto, no caso das mulheres, o maior avanço de renda foi apurado na região Nordeste. Entre os trabalhadores informais, a região Centro-Oeste foi a maior responsável pelo avanço na renda.
O instituto captou ainda disparidades na renda de acordo com a cor dos trabalhadores. O rendimento médio das pessoas ocupadas pretas ou pardas com mais de 16 anos de idade equivale a 60% da renda média do trabalho da população branca, na mesma faixa etária.

O SUS cercado pelo mercado


Por Marco Antonio L.
Da Carta Capital
Por Rodrigo Martins e Samantha Maia
No início de outubro, o gigante americano United Health Group (UHG) anunciou a compra da operadora de planos de saúde Amil, um negócio que pode alcançar a vultosa cifra de 9,9 bilhões de ­reais. ­Coincidentemente, a ruidosa aquisição foi fechada na mesma semana em que a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) impôs uma severa restrição a 38 operadoras de seguro saúde, ora proibidas de comercializar novos planos por três meses. A decisão, anunciada pelo ministro da Saúde, Alexandre Padilha, foi provocada pelo descumprimento de prazos máximos para a marcação de consultas, exames e cirurgias.
Os episódios são emblemáticos. De um lado, revela o forte crescimento e a tendência de concentração das empresas do setor, que movimentou 84,1 bilhões de reais no ano passado, valor 11,5% superior ao de 2010. De outro, as operadoras sofrem cobranças cada vez maiores por conta da baixa qualidade dos serviços ofertados, com mais de 10 mil reclamações de usuários de julho a setembro, segundo a ANS. Ainda assim, o País mostra-se dependente do setor, responsável pela assistência médica a 48 milhões de brasileiros, um quarto da população.
Diagnóstico. A rede privada se beneficia com renúncias fiscais, e o SUS padece de pires na mão. Foto: Raul Spinassé / Ag. A Tarde / AE
Apesar de desafogar a rede pública, o economista Carlos Octávio Ocké-Reis, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), sustenta que, da forma como estão organizados hoje, “os planos de saúde mais prejudicam do que contribuem com o Sistema Único de Saúde, a começar pelo fato de o Estado subsidiar o setor privado com renúncias fiscais e abrir mão de mais de 19 bilhões de reais que poderiam ser investidos na rede pública”. Autor do livro SUS: O desafio de ser único, recém-lançado pela Editora Fiocruz, o especialista, com pós-doutorado pela Yale School of Management (EUA), defende uma nova regulamentação da saúde suplementar, de forma que a assistência médica passe a ser organizada a partir do modelo de concessão, como ocorre no setor elétrico. E propõe que o governo crie um seguro público para competir com os planos privados, nos moldes do Plan Public Option, que o presidente Barack Obama tentou, sem sucesso, implantar nos EUA.

Ocké-Reis elenca um
 extenso rol de distorções causadas pelo sistema paralelo, público e privado. Um deles é a forma arbitrária como os preços dos planos de saúde são estabelecidos. Os idosos ou doentes crônicos, por exemplo, são praticamente expulsos do mercado quando mais precisam, em razão das elevadas mensalidades cobradas a esse público. São empurrados para a rede pública, que sofre com o subfinanciamento e assume os custos dos procedimentos médicos mais caros e complexos, normalmente não cobertos pelos planos de saúde. A legislação permite que o SUS peça o ressarcimento pelos serviços prestados aos clientes da rede privada, mas as operadoras boicotam a cobrança. Os prestadores de serviços médicos também são estimulados a trabalhar para o mercado privado, mais lucrativo. Sem falar da dupla porta de entrada em hospitais de referência, que atendem pacientes do SUS, mas oferecem atendimento diferenciado aos usuários de planos de saúde.
“Ao criar um seguro público, haverá uma salutar competição com os planos privados. E o governo terá condições de induzir mudanças para fortalecer o SUS, assim como os bancos estatais ajudaram a reduzir os juros cobrados pelo sistema financeiro”, aposta Ocké-Reis. “Os incentivos fiscais também devem ser repensados, pois acabam por favorecer os mais ricos.”
O economista Carlos Ocké-Reis propõe a criação de um seguro saúde público para competir com as operadoras privadas, nos moldes do plano de Obama nos EUA. Foto: Adriana Lorete
Em 2006, o governo abriu mão de 7,5 bilhões de reais da arrecadação de Imposto de Renda de pessoas físicas e jurídicas para compensar os gastos dos contribuintes com a saúde privada, em especial com os planos. Se incluir os descontos para medicamentos e hospitais filantrópicos, o gasto tributário em saúde ultrapassa a marca de 12,5 bilhões, proporcional a 30% dos dispêndios do Ministério da Saúde. O livro não traz dados mais recentes sobre o subsídio estatal ao setor privado, mas não é difícil projetar o impacto. Uma vez mantido esse porcentual de renúncia fiscal (o que parece improvável, tendo em vista o elevado crescimento do mercado de planos), o governo deixou de arrecadar, aproximadamente, 19 bilhões de reais em 2010. As isenções beneficiam pouco mais de 10% da população.
“O nó a ser desatado é o fato de o SUS não ter condições, hoje, de substituir o setor privado na cobertura do núcleo mais dinâmico da economia e do Estado”, diz o especialista. Isso porque o Estado, historicamente, contribuiu para a formação e o fortalecimento dos planos privados. O movimento começou nos anos 1960, quando o governo financiou a juros negativos a construção de instalações hospitalares e equipamentos médicos, beneficiando, sobretudo, as empresas de medicina de grupo. A partir dos anos 1990, o governo permite a consolidação dos planos de saúde por meio de sua política de renúncia fiscal. Ocorre então a chamada “universalização excludente”.
“Milhões de pobres e trabalhadores informais passaram a ter acesso à saúde pública, antes restrita a quem contribuía para o Instituto Nacional de Previdência Social (INPS)”, afirma. “Houve, contudo, uma ‘exclusão por cima’, na medida em que milhões de trabalhadores formais, em busca de atendimento diferenciado, migraram do seguro social para o mercado de planos de saúde. Em vez de ser um sistema único, para todos os brasileiros, o SUS ficou relegado aos mais pobres.”
A crítica ao sistema híbrido encontra eco na academia. “A ideia era de que o sistema privado fosse suplementar, a oferecer serviços a mais que o SUS. Na realidade, as duas atividades se sobrepõem”, critica João Fernando Moura Viana, especialista em regulação econômica com doutorado pela Unicamp. “De 2000 a 2011, os planos de saúde foram reajustados em 151%, e esse aumento não tem fim. A mudança do perfil demográfico, com a população com mais de 60 anos passando de 10%, em 2010, para 19%, em 2030, agrava esse cenário.”
Difícil será convencer os usuários de planos e os prestadores de serviços médicos a confiar na opção preferencial pelo SUS ou num seguro saúde público. “Hoje, o País conta com uma rede de 6 mil hospitais, dos quais um terço é público, um terço é privado lucrativo e outro um terço é filantrópico, que atende tanto os planos de saúde quanto o SUS”, comenta Francisco Balestrin, presidente da Associação Nacional dos Hospitais Particulares. “Só que o SUS é mal pagador, e muitas instituições diminuem o número de leitos do SUS para atender os pacientes privados.”
Para Luiz Augusto Carneiro, superintendente-executivo do Instituto de Estudos de Saúde Suplementar (IESS), é impossível desatar o nó da saúde no Brasil sem a contribuição da rede privada. “Com base em dados do próprio governo, nos próximos 18 anos a saúde pública não dará conta da demanda. O ­porcentual de gasto público com saúde em relação ao PIB entre 2000 e 2010 subiu de 2,9% para 3,8%. A previsão é de que alcance 3,96%, e ainda assim será muito inferior ao dos países desenvolvidos.”

A morte de Joelmir Beting


Autor:  Luis Nassif
Havia muitos Joelmir Betting em um só: o amigo doce, o jornalista célebre e o palestrante imbatível.

Joelmir foi o primeiro jornalista brasileiro a explorar em sua plenitude a comunicação de massa. Transitou pelo jornal – durante anos, com a coluna na Folha -, pela rádio e pela televisão. Tornou-se palestrante requisitadíssimo. Levou o jornalismo econômico dos gabinetes para as donas de casa.

Para se ter ideia de seu alcance, a primeira pessoa que me chamou a atenção para Joelmir foi minha mãe, lá pelos fins dos anos 60, encantada com seu estilo.

Depois de uma carreira rápida na Folha, como repórter e, depois editor, enveredou pelo colunismo e passou a explorar o estilo radiofônico imbatível, recheado de bordões saborosos.

Como enfatizava a querida Lucila, sua esposa, Joelmir era um cronista da economia. Não chegava a aprofundar nas análises macroeconômicas, como Rolf Kuntz, nem a explicar nas análises setoriais, como Celsão Ming. Seu estilo era o da crônica saborosa.

Na Folha, a coluna de Joelmir tornou-se referência. Mas a aproximação maior com o público se dava através do jornal Gente, da rádio Bandeirantes, no horário campeão da manhã, ao lado dos queridos José Paulo de Andrade e Salomão Esper. Substituí Joelmir no programa, quando ele foi para a Globo, e sei o que era seu tremendo alcance.

Nunca o ditado sobre a grande mulher atrás do grande homem foi tão significativo, quanto nas relações entre Joelmir e a apaixonadíssima Lucila, tão apaixonada que – como ela me contou uma vez – tinha ciúmes até dos tempos em que ainda não conhecia Joelmir. Em torno de ambos sempre circulou uma família encantadora, equilibrada, madura, com filhos que honraram a memória do pai.

O mais significativo de Joelmir é ter-se tornado personagem nacional sem o deslumbramento e o estrelismo falsamente internacionalista de muitos sucessores. Sempre foi o rapaz de Tambaú, afilhado do padre Donizetti. Nunca abdicou de suas origens e de seus modos simples.

Contou-me uma vez que, no Jornal Gente, a maior repercussão era quando falava de receitas caseiras e outros temas do dia-a-dia dos ouvintes.

Havia o Joelmir da imprensa escrita, radiofônica e televisiva. Mas o Joelmir mais brilhante era o palestrante, com sua sucessão de imagens irônicas, o modo fluente de falar, o encadeamento de temas que encantava as plateias.

Ao mesmo tempo, era um ser humano extremamente sensível, que se abalava quando exposto às mudanças de humores das redações. Foi assim quando saiu da Folha e, mais tarde, quando deixou a Globo. Mas sempre tinha, como reforço emocional, a presença permanente de Lucila.

Trabalhamos juntos na consolidação da AJEF (Associação dos Jornalistas de Economia e Finanças) e fizemos parte da mesma chapa que conquistou o Sindicato dos Jornalistas em 1984.

Ao lado de Aloisio Biondi, Joelmir foi parte fundamental na criação do moderno jornalismo econômico do país.

Espero chegar a tempo em São Paulo, para as homenagens a um grande homem.

O povo Guarani-Kaiowá. Da terra sem males à busca do trabalho sem males

29.11.12 - Brasil
Gerardo Iglesias
Adital
Tradução: ADITAL


Acabaram com seu hábitat, que era uma extensão de seus corpos. Em todo o Estado de Mato Grosso do Sul, a selva foi devastada como se tratasse de um inimigo e milhares de indígenas perambulam agora com suas raízes no ar.
Ao que hoje ‘mal vivem’, encurralados na pobreza e na desesperança, engrossam as listas dos trabalhadores das fazendas pecuaristas, das carvoarias vegetais e do imenso canavial onde as denúncias de trabalho escravo são permanentes. Outros vendem sua força de trabalho nos frigoríficos avícolas, lugares de extrema exploração, onde a dignidade é cortada em pedacinhos, como as asinhas dos frangos.
"Reconhecem sua organização social, seus costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, correspondendo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens” (Constituição da República Federativa do Brasil, Art. 231).
A mãe terra, a mãe Dilma…
E o capitalismo parido de um furúnculo

O povo Guarani-Kaiowá soube transitar por séculos boa parte do atual Estado do Mato Grosso do Sul, no Centro Oeste do Brasil, fronteira com o Paraguai e com a Bolívia. Uma terra sem limites, um presente do "Grande Pai Ñande Ru”.
Sua "Casa Grande”, sua "Tekoha”, era um mar de floresta. Lá confluíam muitas das bondades da "terra ideal” que a cultura e a espiritualidade guarani denominam a Terra sem Males.
Em janeiro de 2011, a presidenta Dilma Rousseff recebeu uma carta do povo Guarani-Kaiowá na qual manifestavam: "Que bom que a senhora assumiu a presidência do Brasil. É a primeira mãe que assume essa responsabilidade. Porém, queremos recordar que para nós a primeira mãe é a mãe terra, da qual somos parte e que nos sustenta há milhares de anos.
Presidenta Dilma: nos roubaram nossa mãe; ela foi maltratada; fizeram sangrar suas veias; danificaram sua pele; quebraram seus ossos. Rios, peixes, árvores, animais e aves... tudo foi sacrificado em nome do que chamam progresso. Para nós, é destruição, é matança, é crueldade.
Sem nossa mãe terra sagrada, nós também estamos morrendo pouco a pouco. Por isso, estamos fazendo esse chamado no começo de seu governo. Devolvam nossas condições de vida que são nossos "Tekoha”, nossas terras tradicionais.
Não estamos pedindo nada demais; somente nossos direitos que estão nas leis do Brasil e em âmbito internacional...”
O povo Guarani-Kaiowá, órfão de selva, aguarda todavia a resposta da mãe Dilma.
O primeiro desembarque
Da Casa Grande à Grande Coisa

No século XVI, chegaram os portugueses marchando em franca contravia à cosmovisão desenvolvida pelas populações locais. Desde sua visão eurocêntrica e mercantilista, os conquistadores não viram o Mundo Novo como uma "Casa Grande”, viram, sim, como uma Grande Coisa, com preço, porém, sem valor.
Apenas pisaram na praia e se proclamaram donos dessas terras, um presente da Igreja e dos reis de Portugal e da Espanha. Assim o definiam no Tratado de Tordesilhas e na Bula do Papa Alexandre VI, o mais poderoso escrivão da época.
Com tamanha vênia e bênção, a ação exterminadora dos portugueses e de seus mercenários não conheceu limites. A espada, a cruz e a cobiça –a santa trindade do saqueio- acometerão sem piedade contra os povos originários, violentando sua forma de vida, sua cultura e sua espiritualidade.
Para a Igreja, os indígenas eram selvagens sem alma, e para o nascente capitalismo, eram escravos sem salvação. Coisas suscetíveis de apropriação, de ser exploradas sem misericórdia e sem a ameaça de excomunhão para os exploradores. Coisas que tinha sua história; porém, pouco importa a história das coisas.
O último desembarque
As transnacionais: os novos amos

Em português, Mato Grosso significa "matagal” e vem da palavra guarani kaaguazú (monte grande). Como ressaltam na carta a Mãe Dilma, durante milhares de anos, indígena e natureza foram parte de um mesmo corpo. Agora, não.
O desmatamento em Mato Grosso do Sul tem suas origens no final do século XIX, junto com a exploração intensiva da erva mate. Entre 1920 e 1960, a depredação ambiental foi impulsionada pela indústria madeireira, e de 60 a 70, pela pecuária.
No início dos anos 80, a superfície destinada à cana de açúcar avançou freneticamente; e nos anos 90, irrompeu a soja: a idolatrada deusa do agronegócio e mascarão de proa das transnacionais Monsanto, Bunge e Cargill, que já cobre 2,1 milhões de hectares no MS.
Na mais absoluta impunidade, as grandes fazendas e o monocultivo foram invadindo e devastando as terras dos povos indígenas; enquanto que, um governo após o outro, coincidiram em exibir idêntica capacidade para o descaso ante essa gigantesca usurpação.
No Brasil, habitam 190 milhões de pessoas, 1% tem em seu poder 46% das terras cultiváveis, e vai em busca de mais, invadindo terras, atropelando a selva, e, simultaneamente, atropelando o Parlamento através da bancada ruralista.
Sediciosa, relegada a um canto, a Reforma Agrária sofre de paralisia crônica.
A mãe selva
E o grande irmão do etanol

Se hoje o cenário é dramático para os povos indígenas e para a agricultura camponesa –outra vítima do atropelo da agricultura industrial-, o panorama futuro se apresenta desolador.
A fascinação reinante pelos agrocombustíveis e sua entusiasta promoção realizada pelo ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que converteu esse carburante na ponta de lança de sua política exterior, aprofundarão a situação.
O etanol –o combustível do século, segundo Lula, o biocombustível, como a grande indústria batizou- necessita escala; e no Mato Grosso do Sul, o canavial já ocupa uns 700 mil hectares e ameaça expandir-se ainda mais.
Avança como um tsunami verde que ninguém detém e, como bem diz Iara Tatiana Bonin, nesse cenário, os povos indígenas são um estorvo. São vistos como "ervas daninhas” que devem ser erradicadas do "jardim do latifúndio”, para abrir caminho aos planos dos "jardineiros do progresso”.
O cacique Ládio Verón, filho de Marco Verón, assassinado em 2003, denunciou: "Nossas terras no MS estão passando por um processo de devastação total. Lá, um pé de cana vale mais do que um índio, mais do que uma criança indígena; e uma vaca vale mais do que toda uma comunidade”.
Um verdadeiro (Eco)Genocídio
As duas caras de uma mesma moeda

Em 2004, a soja no Brasil havia provocado o desmatamento de 21 milhões de hectares. Em Mato Grosso do Sul, o monocultivo de soja ocupa 2,1 milhões de hectares.
O avanço desenfreado da superfície destinada ao agronegócio, as terras de pastoreio dos ranchos pecuaristas, mais a desídia do governo federal provocaram a eliminação de 80% do bosque nativo nesse Estado.
No MS, a antiga Terra sem Males, a Terra de todos, 1% da população possui 35% da terra (2004), enquanto que os povos indígenas, sem selva, mal vivem em uma esquina esquecida, entre o monocultivo e a atividade pecuária.
Segundo Egon Heck, coordenador do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), "A invasão incessante de terras indígenas por rancheiros e agricultores está dizimando as comunidades nativas; e isso equivale a um genocídio. Está em jogo a sobrevivência de muitos dos 60 mil indígenas das etnias Guarani-Kaiowá e Terena.
Eles estão sendo levados a um beco sem saída, e a menos que o governo demarque suas terras ancestrais e proíba entrar nelas quem não for indígena, não poderão sobreviver. Como resultado dessa situação, os níveis de violência na região são extremamente altos”, enfatizou o missionário.
Dados do Cimi revelam que desde 2003 foram assassinados 279 indígenas no Mato Grosso do Sul. Em 2011, a cifra chegou a 51 indígenas em todo o Brasil; 32 deles no MS. "Na terra indígena de Dourados, em 2011, o índice de homicídios era de 140 por 100.000 habitantes; ou seja, 14 vezes superior à mortalidade em países em estado de guerra civil, como o Iraque”.
No MS, a terra do agronegócio, as vítimas são sempre culpadas; e uma bala paga seu preço caso acabe com a vida de um indígena.
Da Terra sem Males
À busca do Trabalho sem Males

Despojados de suas terras ancestrais, encurralados pelos pecuaristas e pelo deserto verde do agronegócio, os Guarani-Kaiowá e os Terena entraram em um processo de proletarização e são explorados como mão de obra barata.
Agora, milhares de indígenas trabalham em carvoarias, nos canaviais ou em algum frigorífico onde frangos e trabalhadores são triturados ao mesmo tempo. O MS está em 4º lugar no ranking nacional elaborado pelo Ministério do Trabalho, que registra trabalhadores em situação análoga à escravidão.
No canavial, "como o pagamento é feito pela produção, trabalha-se para cumprir a quota que cresce com a mecanização. Diversos cortadores de cana informam que a meta atual no MS é de 9 toneladas de cana cortada por dia. Os que cortam menos não têm emprego”.
Marcos Antonio Pedro, um indígena Terena, conseguiu empregar-se no frigorífico avícola da Cargill, em Sidrolândia. Morreu triturado por uma máquina em um lamentável acidente, no dia 28 de março de 2008.
A transnacional informou que Marcos havia cometido suicídio. Naquele ano, a cada 66 segundos eram desossadas seis peças de frango entre pernas e músculos. Uns 100 trabalhadores por mês pediam demissão ou, quando já não serviam, eram demitidos.
Os Guarani-Kaiowá e os Terena continuam sua busca da Terra sem Males. Porém, agora, constituem 20% dos quadros das avícolas do Mato Grosso do Sul, e lutam por um Trabalho sem Males, onde as pessoas não adoeçam ou morram.

A venda bilionária da Amil

http://www.cartamaior.com.br/templates/colunaMostrar.cfm?coluna_id=5881

quinta-feira, 29 de novembro de 2012

Acreditarmos no país

"Quem ainda não sabe que o Brasil é useiro e vezeiro em acertar por equívoco, não sabe da missa a metade. Se estivermos certos no fundamental - ou seja, se acreditarmos no país - iremos corrigindo os erros currente calamo" (Ignácio Rangel, Economia brasileira contemporânea).

DIEESE divulga balanço das greves em 2010 e 2011

http://www.dieese.org.br/esp/estPesq63balGreves2010_2011.pdf

Concentração de renda caiu no Brasil nos últimos dez anos, aponta pesquisa do IBGE



28/11/2011

A diferença, no Brasil, entre os 20% mais ricos e os 20% mais pobres ainda é grande, mas tem apresentado uma queda considerável nos últimos dez anos. Entre 2001 e 2011 o rendimento familiar per capita da fatia mais rica caiu de 63,7% do total da riqueza nacional para 57,7%. No mesmo período, os 20% mais pobres apresentaram crescimento na renda familiar per capita, passando de 2,6% do total de riquezas do país em 2001 para 3,5% em 2011.

Os dados fazem parte da pesquisa Síntese de Indicadores Sociais 2012, divulgada hoje (28) pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Para Leonardo Athias, pesquisador da Divisão de Indicadores Sociais do instituto, a redução da desigualdade no período deve ser atribuída às políticas de redistribuição de renda no país, com valorização do salário mínimo, expansão do Bolsa Família e ganhos educacionais, que permitem ao trabalhador almejar postos mais altos.

“Nós tivemos um duplo fenômeno. Uma diminuição da desigualdade, por um lado alavancada pelas políticas de renda, valorização do salário mínimo e programas sociais, direcionados à base da pirâmide de rendimentos, além de ganhos educacionais, tornando a população um pouco mais homogênea e ela pode almejar postos mais altos.”

O pesquisador também destacou o crescimento econômico ao longo da década passada como indutor das melhorias sociais. Outro fator importante foi o controle da inflação, iniciado na década de 90 e mantido após 2000, responsável por preservar o salário das classes mais pobres, que não tinham proteção via aplicações no sistema financeiro.

Outro índice mostrado na pesquisa do IBGE que demonstra a redução da desigualdade no país é o coeficiente de Gini, que vem apresentando uma redução constante a cada ano, desde a década de 90, quando atingiu o nível mais alto, de 0,602, chegando a 2011 com 0,508. Quanto menor o número, menos desigual é o país. Os extremos do coeficiente para o ano de 2011, segundo o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud), foram de 0,586 para Angola e 0,250 para a Suécia.

(Fonte: Vladimir Platonow - Agência Brasil)

Agressões levam de mais de 5 mil mulheres ao SUS em 2011


   A violência contra mulheres no Brasil causou aos cofres públicos, em 2011, um gasto de R$ 5,3 milhões somente com internações, segundo levantamento realizado pelo Ministério da Saúde. Foram 5.496 mulheres internadas no SUS (Sistema Único de Saúde), no ano passado, em decorrência de agressões. Além das vítimas internadas, 37,8 mil mulheres, entre 20 e 59 anos, precisaram de atendimento no SUS por terem sido vítimas de algum tipo de violência. O número é quase 2,5 vezes maior do que o de homens na mesma faixa etária que foram atendidos por esse motivo, conforme dados do Sinan (Sistema de Informações de Agravos de Notificação), do Ministério da Saúde. 
   A socióloga Wânia Pasinato, pesquisadora do Núcleo de Estudos da Violência da USP (Universidade de São Paulo), destaca que além dos custos financeiros, há "enormes prejuízos sociais" gerados pela violência contra a mulher. Ela citou estudos que indicam, por exemplo, que homens que presenciaram cenas de violência doméstica durante a infância tendem a reproduzir, com mais frequência, características de dominação e agressividade em suas relações afetuosas.
   "Os danos para a sociedade são enormes, com perdas em diversas esferas. Além de impactar a forma como os filhos dessas relações vão constituir suas próprias relações no futuro, as mulheres vítimas de violência deixam de produzir e de se desenvolver como poderiam no mercado de trabalho", explicou, acrescentando que também é comum que as vítimas incorporem a violência e a agressividade em seus relacionamentos e nas formas de comunicação.
   A diretora executiva do Instituto Patrícia Galvão, organização não governamental que atua em projetos de defesa dos direitos da mulher, Jacira Vieira de Melo, destacou que os números confirmam que, apesar de a Lei Maria da Penha, criada há seis anos, ser uma referência nacional e conhecida pela maioria da população, a violência contra a mulher ainda é um grave problema social. Ela defende que para enfrentar a questão é preciso fortalecimento das políticas públicas e incremento orçamentário.
   "Pesquisas de opinião indicam que mais de 95% da população já ouviram falar na lei, que prevê punições severas para os agressores. Ela tem contribuído para que a violência contra a mulher cada vez mais seja vista como violação de direito fundamental, como crime, mas as estatísticas mostram que a questão continua sendo um grave problema social", disse, lembrando que a violência é a maior causa de assassinatos de mulheres no Brasil.
   Dados do Mapa da Violência 2012, estudo feito pelo sociólogo Julio Jacobo, atualizado em agosto deste ano, revelam que ,de 1980 a 2010, foram assassinadas no país quase 91 mil mulheres, das quais 43,5 mil somente na última década. De 1996 a 2010 as taxas ficaram estabilizadas em torno de 4,5 homicídios para cada 100 mil mulheres.
Fonte: Boletim Eletrônico da FETESSESC.

quarta-feira, 28 de novembro de 2012

Entrevista com João Pedro Stédile - parte II

Entrevista com João Pedro Stedile - parte I

http://noticias.r7.com/jornal-da-record-news/videos/?idmedia=50b555d7b61caa9cb01fe680

Mulher e recursos públicos


          As mulheres são as que mais sofrem os efeitos da pobreza e da desigualdade social e são as mais atingidas pela vulnerabilidade social e pela carência de políticas públicas efetivas de combate a desigualdade
          Segundo dados divulgados por ocasião do lançamento do Plano Brasil sem Miséria, em junho de 2011, dos 16,2 milhões de pobres extremos detectados no Brasil, 40% têm até 14 anos, 71% são negros e 47% vivem no campo
          Os dados do IBGE não são precisos, mas, possivelmente, a maioria sejam mulheres.
          Se o país melhora a condição da mulher, toca exatamente no segmento mais pobre da população
          Que está mais habituado a “fazer mais com menos recursos” e que, em regra, cuida das crianças e dos idosos
          Portanto, o recurso público aplicado na mulher tende a ser multiplicado em melhoria de vida de crianças e idosos 

José Álvaro de Lima Cardoso. 

O capitalismo feliz


Opinião - 
Valor Econômico - 28/11/2012
http://www.fazenda.gov.br/resenhaeletronica/imagens/vazio.gif

José Luís Fiori
http://www.fazenda.gov.br/resenhaeletronica/imagens/vazio.gif

http://www.fazenda.gov.br/resenhaeletronica/imagens/vazio.gif

A história do desenvolvimento capitalista dos séculos XIX e XX registra a existência de alguns países com altos níveis de desenvolvimento, riqueza e qualidade de vida, e com baixa propensão nacional expansiva ou imperialista. Como é o caso das ex-colônias britânicas, Canadá, Austrália e Nova Zelândia, e dos países nórdicos, Suécia, Dinamarca, Noruega e Finlândia.

Todos apresentam taxas de crescimento alta, constante e convergente, desde 1870, só inferior à da Argentina, até a Primeira Guerra Mundial. Hoje são economias industrializadas, especializadas e sofisticadas. A Noruega tem a 3ª maior renda per capita, e o maior índice IDH (0,943), do mundo; a Austrália tem a 5ª renda per capita, e o 2º melhor IDH do mundo (0, 929); e quase todos têm uma renda média per capita entre US$ 50 mil e US$ 60 mil anuais. A Noruega é considerada hoje o país mais rico do mundo, em "reservas per capita", e foi considerada pela ONU, em 2009, como "o melhor país do mundo para se viver". A Dinamarca já foi classificada, entre 2006 e 2008, como "o lugar mais feliz do mundo", e o segundo país mais pacífico da terra, depois da Nova Zelândia, e ao lado da Noruega.

Canadá, Austrália e Nova Zelândia foram colônias de povoamento da Inglaterra, durante o século XIX, e depois se transformaram em domínios da coroa Britânica, até depois da Segunda Guerra Mundial. Mas até hoje são nações ou reinos independentes que fazem parte do Commonwealth e mantêm o monarca inglês como seu chefe de Estado. Como colônias e domínios funcionaram sempre como periferia da economia inglesa, mesmo depois de iniciado seu processo de industrialização, mantendo-se - em média - a participação do capital inglês, em até 2/3 da formação bruta de capital desses três países. E todos eles estabeleceram relações análogas com a economia americana, depois do fim da Segunda Guerra Mundial.

Os países nórdicos se tornaram satélites especializados do sistema de produção e do poder europeu

Neste século e meio de história, o Canadá - como caso exemplar - esteve ao lado da Grã Bretanha e dos EUA na Primeira e Segunda Guerras Mundiais, além de participar Guerra dos Boers e da Guerra da Coreia e de ser um dos membros fundadores da OTAN, em 1949. Participou das guerras do Golfo, do Iraque, do Afeganistão e da Líbia, e participa diretamente do sistema de defesa aeroespacial americano. E o mesmo aconteceu, em quase todos os casos, com a Austrália e a Nova Zelândia.

Por outro lado, os países nórdicos foram expansivos, e a Suécia em particular foi um grande império dominante, dentro da Europa, até o Século XVIII. Mas depois de sua derrota para a Rússia, em 1720, e depois da sua submissão dentro da hierarquia de poder europeia, os estados nórdicos se transformaram em pequenos países, com baixa densidade demográfica e alta dotação de recursos naturais, funcionando como pedaços especializados e cada vez mais sofisticados do sistema produtivo europeu.

A Suécia ficou famosa pelo "sucesso" de sua política econômica anticíclica ou "keynesianas", depois da crise de 1929, mas de fato logrou superar os efeitos da crise graças à suas condição de sócia econômica e fornecedora de aço e equipamentos para a máquina de guerra nazista, que também ocupou a Dinamarca e exerceu grande influencia sobre a região, durante toda a Segunda Guerra Mundial.

Depois da guerra, a Dinamarca e a Noruega se tornaram membros da OTAN, e a Dinamarca segue sendo uma passagem estratégica para o controle do mar Báltico. Por sua vez, a Suécia participou das Guerras do Kosovo e do Afeganistão, e foi fornecedora de armamentos para as forças anglo-saxônicas, na Guerra do Iraque. Por último, a Finlândia, que fez parte da Suécia, até 1808, e da Rússia, até 1917, acabou ocupando um lugar fundamental dentro da Guerra Fria, até 1991, e ainda ocupa uma posição estratégica até hoje, no controle da Baia da Finlândia e da própria Rússia.

Por tudo isto, apesar de esses países terem origens e trajetórias diferentes, é possível identificar algumas coisas que eles têm em comum:

1) São pequenos ou têm uma densidade demográfica muito baixa.

2) Têm excelente dotação de recursos alimentares, minerais ou energéticos.

3) Todos ocupam posições decisivas no tabuleiro geopolítico mundial.

4) E todos se especializaram em serviços ou setores industriais de alta tecnologia, e em alguns casos, dentro da industria militar.

Alguns diriam que se trata de um caso típico de "desenvolvimento a convite", mas isto quer dizer tudo e nada ao mesmo tempo. O fundamental é que o sucesso econômico desses países não se explica por si mesmo, porque desde o século XIX, os "domínios" operaram como fronteiras de expansão do "território econômico" inglês, e como bases militares e navais do Império Britânico. E os países nórdicos, depois que foram submetidos, se transformaram em satélites especializados do sistema de produção e do poder expansivo europeu. E hoje, finalmente, todos esses sete países operam como pequenas "dobradiças felizes" da estrutura militar e do poder global dos Estados Unidos.

José Luís Fiori professor titular de economia política internacional da UFRJ, é autor do livro "O Poder Global", da Editora Boitempo, e coordenador do grupo de pesquisa do CNPQ/UFRJ "O Poder Global e a Geopolítica do Capitalismo". Escreve mensalmente às quartas-feiras.

terça-feira, 27 de novembro de 2012

PCC: organização criminosa que pune desvios com a morte. Entrevista com Thadeu de Sousa Brandão


IHU - Unisinos
Instituto Humanitas Unisinos
Adital
Por Graziela Wolfart
Segunda, 26 de novembro de 2012
"O PCC não quer fazer revolução. Seus membros querem ‘gozar’ das benesses capitalistas e de consumo das quais consideram terem sidos excluídos da sociedade. Nada de socialismo. No máximo, gostariam de gozar do ‘Brazilian way of life’”, descreve o sociólogo
Especialista e pesquisador da violência, o professor Thadeu de Sousa Brandão explica que o Primeiro Comando da Capital (PCC) surge das profundas contradições do sistema carcerário brasileiro. "Sua insalubridade, desrespeito aos direitos humanos, extrema corrupção e um profundo desdém pela própria norma que o regula (a LEP – Lei de Execuções Penais) permitiram o surgimento de organizações que possuem extrema liberdade organizacional dentro de espaços que, em teoria, deveriam privar a liberdade”. Em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line, Brandão considera que "estamos assistindo a uma verdadeira guerra civil que o estado paulista nega e não está sabendo conduzir”. Segundo seu palpite, poderia estar ocorrendo algum canal de diálogo entre o governo de São Paulo e o PCC.
Sobre o número de membros da organização, ele aponta que estariam entre 200 e 300 mil membros. "Efetivo maior do que o do Exército brasileiro. Dentro e fora das prisões”. E dá mais detalhes da organização: "cada membro deve pagar uma quantidade de dinheiro, uma espécie de ‘pedágio’ semanal, para a manutenção do ‘partido’ e de suas ações. Se estiver dentro da prisão, o valor é bem mais baixo. Fora dela é bem maior. Como existe uma certa inflação e uma variação por região, os valores variam de R$ 500,00 a R$ 2.000,00 entre presos e ‘livres’”. E Brandão conclui: "ao ter sido omisso em matéria de educação, renda, saúde e cultura, o Estado brasileiro termina sua incompetência histórica criando prisões que apenas cumprem o papel de amontoar seres humanos (desviantes e criminosos, é claro) em suas paredes”.
Thadeu de Sousa Brandão (foto) é professor no Departamento de Agrotecnologia e Ciências Sociais (DACS) da Universidade Federal Rural do Semiárido – UFERSA, de Mossoró – RN. Sociólogo, com graduação, mestrado e doutorado em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte – UFRN, coordena o Grupo de Estudos Desenvolvimento e Violência – GEDEV, da UFERSA.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – O senhor pode definir o que é o PCC (Primeiro Comando da Capital)? Quem são (e quantos são) seus membros e lideranças? Quais seus valores e regras? Como ele se organiza?
Thadeu de Sousa Brandão – O PCC é uma espécie de organização criminosa voltada para a prática daquilo que nosso sistema jurídico denomina de crimes. Criado em março de 1993, surgiu dentro da Casa de Custódia e Tratamento de Taubaté – denominada pelos próprios detentos de Piranhão –, um presídio de segurança máxima de São Paulo. Durante cerca de três anos, o PCC ficou na clandestinidade, existindo e sobrevivendo atrás das grades e muralhas. Os fundadores deste "Primeiro Comando da Capital” constituíram-se em um grupo de oito detentos, sendo que dois destes eram lideranças efetivas da facção: César Augusto Roriz da Silva, o Cesinha, e José Marcio Felício, o Geleia, Geleião ou simplesmente Gê.
O PCC surge das profundas contradições do sistema carcerário brasileiro. Sua insalubridade, desrespeito aos direitos humanos, extrema corrupção e um profundo desdém pela própria norma que o regula (a LEP – Lei de Execuções Penais) permitiram o surgimento de organizações que possuem extrema liberdade organizacional dentro de espaços que, em teoria, deveriam privar a liberdade. A data de seu surgimento é posterior ao "Massacre do Carandiru” e espelha a visão de alguns apenados acerca da necessidade de organização. Inicialmente, para lutar contra as péssimas condições de encarceramento. Posteriormente, para constituir-se como empresa criminosa, organizada não burocraticamente, mas construindo o que denomino de redes de ilegalidade que constituem o que a mídia erradamente denomina de "facção”.
Não consigo definir exatamente a quantidade de seus membros. Os números mais otimistas estão entre 200 e 300 mil membros. Efetivo maior do que o do Exército brasileiro. Dentro e fora das prisões. Isto porque a mobilidade prisional (cumprimento da pena em si) permite que os membros do PCC estejam, de certa maneira, em "trânsito”. Cada cadeia ou penitenciária possui uma liderança central, que responde às lideranças em São Paulo. Cada membro deve pagar uma quantidade de dinheiro, uma espécie de "pedágio” semanal, para a manutenção do "partido” e de suas ações. Se estiver dentro da prisão, o valor é bem mais baixo. Fora dela é bem maior. Como existe uma certa inflação e uma variação por região, os valores variam de R$ 500,00 a R$ 2.000,00 entre presos e "livres”.
O PCC possui um estatuto com várias variantes. Efetivamente ele tem por objetivo a estrita obediência de seus membros ao "partido” e às suas lideranças legitimamente reconhecidas. Não há sanções administrativas. Estamos falando de uma organização criminosa que pune com a morte os mais variados desvios: desobediência, roubo à organização, delação, etc. O PCC não quer fazer revolução. Como qualquer grupo criminoso ele quer "gozar” das benesses capitalistas e de consumo que, em termos de representações sociais, consideram terem sidos excluídos da sociedade. Nada de socialismo. Seus membros, no máximo, gostariam de gozar do "Brazilian way of life”.
IHU On-Line – Que relação há entre o PCC e o Comando Vermelho?
Thadeu de Sousa Brandão – O PCC surge da própria experiência do Comando Vermelho (CV). Este último foi a organização do gênero pioneira no Brasil. Surgido no início da década de 1980, fruto também da catastrófica gestão penitenciária brasileira, o CV opera basicamente no Rio de Janeiro, em sua geografia específica e em suas centenas de favelas. A experiência organizativa e, de certa forma, seu sucesso foram elementos inspiradores para os presos paulistas. Dividem tarefas e alianças. Seu lema é o mesmo: "Paz, Justiça e Liberdade”.
É interessante frisar que o CV vai encontrar séria oposição no RJ, chegando a rivalizar-se com outras organizações criminosas, o que constitui um pouco do cenário de guerra que a mídia nos mostra, vez por outra, onde esses grupos brigam pelas zonas de tráfico de drogas e outros mercados criminosos.
O PCC, que firma uma certa aliança como o CV desde o fim dos anos 1990, não tem os mesmos problemas que o CV. A geografia paulista e uma certa falta de oposição forte fez com que o PCC crescesse mais e pudesse ter maior êxito em suas ações.
Alguns estudiosos da criminalidade organizada afirmam que as ações ligadas ao tráfico internacional, via Tríplice Fronteira e Colômbia, estão entre as atividades conjuntas de ambas as organizações. Tanto a Polícia Federal como a Inteligência Militar têm trabalhado nessas atividades, mas ainda com pouco resultado. Cortes orçamentários, políticas públicas ineficientes, pouco contingente e uma fronteira gigantesca são elementos que atrapalham bastante esse combate.
IHU On-Line – Quais as principais características de personalidade de Marcos Herbas Camacho, o Marcola?
Thadeu de Sousa Brandão – Pergunta difícil para um sociólogo responder. Vou tentar definir Marcola a partir de seu papel de líder, ou seja, o papel sociopolítico que ele cumpre no PCC. Marcola é uma liderança que galgou o comando do PCC através da força e de sua capacidade de agregar alianças internas. Além disso, sabe mantê-las. Além de paciência (atributo que todo apenado tem de aprender na vida de cadeia), ele tem um excelente senso de ação. Esqueça os mitos de genialidade, que leu milhares de livros, etc. Marcola é um tipo de liderança que patina entre o carisma e a tradição, com algumas doses de racionalidade. Nada de dominação pura e legítima, falando em termos weberianos. Ele comanda pela força, pelo terror e, graças a uma rede criminosa que funciona eficientemente, de forma razoavelmente flexível e com cadeia de comando. Sem nada disso, Marcola não conseguiria se impor como líder. Mas o PCC não é Marcola. Cai Marcola, assumirá outro, adentrando e se imbuindo do mesmo papel.
IHU On-Line – Que leitura pode ser feita do Estado brasileiro se considerarmos a existência e a força de uma organização como o PCC que se dá dentro das prisões?
Thadeu de Sousa Brandão – O Estado brasileiro é e foi extremamente incompetente no que tange à administração penitenciária ao longo de toda a sua história. Primeiramente, prisão no Brasil sempre teve marca, cor e estrato social. E continua tendo. Os dados do Departamento Penitenciário Nacional – DEPEN (cito-os de forma aproximada) mostram que 98% de nossa população carcerária não possui ensino superior; mais de 80% deles mal terminaram o ensino fundamental; ampla maioria é de pobres, pardos e negros, marginália excluída e jogada no crime por um dos mais perversos sistemas sociais deste planeta. Ao ter sido omisso em matéria de educação, renda, saúde e cultura, o Estado brasileiro termina sua incompetência histórica criando prisões que apenas cumprem o papel de amontoar seres humanos (desviantes e criminosos, é claro) em suas paredes. Se o papel da prisão é "vigiar e punir”, lembrando das lições do filósofo Michel Foucault, no Brasil ela ainda suplicia, principalmente os mais pobres. Claro que uma sociedade precisa de ordem e de estatutos jurídicos obedecidos. Mas a função da prisão é cercear a liberdade. Eis a punição. Ao amontoar presos em lugares insípidos e insalubres, sem permitir ao menos o que chamo de "mito da ressocialização”, o Estado tupiniquim permite que fenômenos universais (construção de grupos de solidariedade em prisões) se transformem em graves problemas.
Pior ainda (sim, é possível) é a incapacidade do Estado de lidar com o problema de forma adequada. O PCC, como qualquer organização em rede, só existe porque lhe é facultada uma condição: comunicação. Sem isso não há condições organizacionais. Celas coletivas, pavilhões onde os próprios presos administram o acesso a celulares são imprescindíveis para a força dessas redes. O problema: isolar individualmente presos significa construir prisões caras e em grande quantidade. Construir prisão não dá voto. Muitas vezes tira-os. Em Mossoró, Rio Grande do Norte, onde uma das poucas penitenciárias federais do Brasil funciona, a população, erroneamente, credita a ela o aumento vertiginoso da violência no local. O mesmo ocorre em outros locais.
IHU On-Line – O que marca a nova onda de ataques do PCC? Que reivindicações estão por detrás dos atentados recentes aos órgãos do governo constituído em São Paulo, principalmente às polícias militar e civil?
Thadeu de Sousa Brandão – Ao contrário do CV, que luta efetivamente contra outros grupos ("os alemão” [sic]) na disputa por territórios e mercados de bens ilícitos, o PCC tem como principal inimigo o Estado paulista. A construção de penitenciárias mais eficazes e de isolamento da liderança dos chefes da organização (através da criação do RDD – Regime Disciplinar Diferenciado) foram os estopins dos grandes ataques de 2002 e 2006. 2012 apresenta uma característica mais aprofundada: o combate entre a polícia e a organização deixa um saldo de mortos gigantesco atrás de si. A polícia brasileira é a que, percentualmente, mais mata no mundo. A paulista é a campeã nacional. E estou falando de dados oficiais. Estamos assistindo a uma verdadeira guerra civil que o Estado paulista nega e não está sabendo conduzir. Se as prisões não são efetivas, qual o raciocínio do policial (sem querer defender esse tipo de posição, mas apenas refletindo)? Executar o "inimigo”. Essa lógica de ação militar substitui uma lógica investigativa e de apreensão/prisão do indivíduo. Rompe-se com o Estado de Direito e lança-se numa verdadeira guerra não declarada. Ao mesmo tempo, há uma estratégia por trás dos ataques, principalmente por ocorrerem em anos eleitorais. Nossos políticos (como os de todas as democracias liberais) são sensíveis à opinião pública nesse momento. O PCC sabe disso e escolhe agir sempre nesses momentos. Não é coincidência.
IHU On-Line – Então, em sua concepção os governantes não estão sabendo conduzir essa questão envolvendo o PCC? Qual seria a solução ideal, respeitando os direitos humanos e protegendo os policiais e a população?
Thadeu de Sousa Brandão – Não quero fazer o papel de advogado do diabo, mas não existem soluções simples para problemas estruturais como o apresentado. Uma coisa inicialmente deve ser dita: negar o problema, como foi feito antes, ou minimizá-lo por questões eleitorais é uma prática equivocada dos governos, notadamente o paulista. Lidar com crime não exige apenas armas ou equipamentos, exige informação e inteligência. Sem informação concreta, real e plausível, nem a polícia e nem os cidadãos podem se proteger dos "ataques”.
O que pode e deve, e está sendo feito parcialmente, é o efetivo isolamento das lideranças do PCC. As penitenciárias federais estão aí para isso. São modeladas a partir das supermax estadunidenses e cumprem com rigor o isolamento dos apenados. Seus agentes têm excelente formação; são bem remunerados; existem planos de metas e uma boa gestão de resultados. Tudo o que esperamos de qualquer organização burocrática, pública ou privada. Pena que picuinhas políticas atrapalhem ações mais exitosas. Claro que falo de ações imediatas. A longo prazo, a questão não é penitenciária ou penal. É sociocultural e econômica. Sem delongas.
IHU On-Line – Como o estado paulista está negociando com o PCC? Em sua avaliação, o estado deve ou não negociar com o crime organizado? Por quê? Quais os limites e implicações dessa negociação?
Thadeu de Sousa Brandão – Não sei se posso afirmar publicamente que o estado de São Paulo está negociando com o PCC. Em 2006, posteriormente descobriu-se que houve uma negociação. Atualmente não posso dizer se sim ou não. Mas, e isto é um palpite, acredito que esteja ocorrendo algum canal de diálogo entre o governo e o PCC. Palpite.
Formalmente não deve haver negociação entre o poder constituído e qualquer organização criminosa. Mas, ao mesmo tempo, se existe um grupo de ação coletiva que se impõe e possui voz, legítima ou não, é preciso buscar interlocuções. Se estas virão da Secretaria de Segurança, do Ministério Público ou de alguma ONG dos Direitos Humanos não importa. O que não se pode é negar o problema e jogá-lo para "debaixo do tapete”. É preciso construir um diálogo condizente com as leis e com respeito à ordem e à sociedade, ou seja, ao Estado de Direito.
O significado das negociações ou mesmo suas implicações são várias. Principalmente dependendo do desfecho. Repito: sem o efetivo isolamento das lideranças e da comunicação, a estrutura de rede do PCC manter-se-á incólume. Isso leva tempo, custa caro e necessita de coragem política para um enfrentamento que, prioritariamente, não seja apenas de execuções dos criminosos, mas de cumprimento de nossa Constituição. Sem tudo isso, desculpem o prognóstico maldito, teremos mais do mesmo em 2014 ou 2016.
IHU On-Line – O que o senhor defende na tese "Atrás das grades: Redes sociais, habitus e interação social no sistema carcerário do RN". Qual a importância das redes sociais e da interação social estabelecida nas prisões?
Thadeu de Sousa Brandão – Minha tese mostrou que as organizações criminosas existentes dentro das prisões potiguares (e podemos ampliar: também do Brasil) não funcionam como "facções” ou organizações mafiosas tradicionais, mas como redes sociais da criminalidade. Na verdade, em quase todas as prisões brasileiras impera não um regime de isolamento carcerário, mas de contínua construção de interações sociais e de redes que permitem um constante tráfico de bens e informações com a sociedade circundante.
Assim como muitas das empresas modernas, os presos se organizam em redes que lhes permitem um fluxo contínuo de informações e de trocas as mais variadas. O PCC se expande e funciona (de certa maneira) porque se organiza também dessa forma. Fala-se de "células” do PCC em prisões X ou Y, mas isso é um certo exagero. Existe presença da organização, mas a partir de "nós”, ou seja, indivíduos que cumprem um certo papel de ligar o local com o PCC. No mais, há muita boataria e mitologia na rica diversidade jornalística policialesca brasileira.
IHU On-Line – Como o senhor qualifica o sistema prisional brasileiro de modo geral?
Thadeu de Sousa Brandão – O sistema prisional brasileiro, salvo pouquíssimas exceções, é um atentado brutal a todas as convenções de direitos humanos já assinadas por nossa espécie neste planeta. Desobedece à própria lei que a regula. Não vigia, não disciplina, apenas cria um sistema punitivo reprodutor da delinquência. Reproduz a delinquência de forma ampliada e massiva, transformando pequenos desviantes em grandes criminosos e perpetradores de atrocidades. O Estado brasileiro executa, em sua máxima pena, a privação de liberdade. Isso, segundo nossos valores ocidentais e democráticos, é a maior pena que se pode impor a um sujeito pleno de direitos. Mas, numa nação onde o processo civilizador ainda exclui brutalmente ampla maioria da população (pobre, mestiça e negra, analfabeta e subqualificada) à marginalidade, os desviantes encontram muitas vezes, como única instituição estatal que os ampara, a prisão.
IHU On-Line – Quais os principais desafios que se colocam hoje ao modelo de segurança pública adotado em nosso país?
Thadeu de Sousa Brandão – São vários, mas resumirei em dois: proteger a sociedade ao mesmo tempo em que garante o Estado de direito. Garantir a "Lei e a Ordem”, mas protegendo os direitos dos cidadãos de fato. Acabando de vez com a tradição de considerar parte da população como desprovida de cidadania ou como "subcidadãos”.
Mesmo com a pretensa inclusão social que o Brasil viveu nos últimos 18 anos, o índice de encarceramento aumentou vertiginosamente. E quanto mais presos, mais delinquência, mais violência se constrói. Não há remédios fáceis.
Nossas polícias devem ser tratadas como agências construtoras de cidadania. Tenho pavor da expressão "soldado de polícia”. Gostaria de ouvir "agente de polícia”, para todos. Salários dignos, formação qualificada, "desmilitarização” (sem perder a disciplina), inteligência, integração com a comunidade. São alguns pontos.
O maior legado nefasto do regime militar brasileiro foi aumentar o fosso entre a polícia e o cidadão. Nossos atuais dirigentes policiais, gente jovem com ideias novas e com valores democráticos, serão atores importantes nesse papel. Mas, como disse, polícia e sociedade devem caminhar conjuntas. Como aliados e interlocutores permanentes.
IHU On-Line – Como avalia a declaração dada esta semana por Geraldo Alckmin, governador de São Paulo, que disse que o aumento da violência em São Paulo é momentâneo?
Thadeu de Sousa Brandão – Acredito que o governador tem parcialmente razão. Os ataques do PCC têm motivações específicas e estão ligados às suas reivindicações de transferências, acessos a visitas e outras "regalias" prisionais. Ao mesmo tempo, discordo do governador por um motivo: a diminuição da criminalidade paulista foi movida por uma forte e crescente onda de encarceramento, uma espécie de "política de tolerância zero" paulista. Infelizmente, aumento de encarceramento, em longo prazo, gera aumento de delinquência e criminalidade. O preso, em questão de tempo, retorna à sociedade, mais "perigoso" e com mais qualificação criminosa para agir. Em São Paulo, há mais um agravante: o preso termina se associando ao PCC (na maioria das vezes é obrigado a isso), o que termina fortalecendo a organização. Círculo vicioso e complicado.
IHU On-Line – Gostaria de acrescentar mais algum comentário sobre o tema?
Thadeu de Sousa Brandão – Gostaria de dizer que sou um esperançoso e alguém que acredita nas pessoas. Como diria o grande Darcy Ribeiro, o Brasil é um país que está se fazendo. Acredito neste povo e em seu futuro. Mesmo com tudo o que discutimos, os índices gerais de homicídios e de violência no Brasil, como vem mostrando o Mapa da Violência há alguns anos, vêm decaindo. O processo é lento e nossa sensação de insegurança não diminuiu ainda. Matamos muito. Homicídios e trânsito mataram no Brasil, na última década, quase um milhão de seres humanos. Só perdemos para guerras internacionais de grande porte. Precisamos construir um pacto civilizatório para a paz e para a solidariedade. Para o amor, se assim quiser. Educar nossos filhos para o diálogo, e não para o conflito. Além disso, de forma conjunta, assistir nosso povo de forma efetiva. Chega de engodos populistas e políticas públicas de faz de conta. Precisamos de saúde, educação, moradia e dignidade para nosso povo. A falta disso tudo é a grande geradora da violência e a disseminadora dos problemas de segurança pública catastróficos que vivemos. O processo é lento e longo, mas está se dando.