quarta-feira, 19 de dezembro de 2012

"Austeridade no Brasil, para quê?"

Luiz Gonzaga Belluzzo
Publicado em 12-Dez-2012
 “Austeridade no Brasil, para quê?”

Um dos mais respeitados economistas do país, o professor Luiz Gonzaga Belluzzo aponta a falácia dos que bradam por uma política de austeridade aqui no Brasil. “Austeridade? O Brasil precisa que o setor público e o privado gastem. O setor público em infraestrutura e o privado idem. É disso que o Brasil está precisando”, afirmou, durante conversa com o nosso blog em seu apartamento em São Paulo.

Nesta entrevista, o professor faz uma reflexão sobre o papel da academia e do jornalismo econômico hoje. “No mercado de opiniões, hoje, o que prevalece é a opinião das consultorias e do mercado financeiro, isso é uma distorção”, aponta. “No jornalismo econômico, por exemplo, as editorias de economia estão muito empenhadas em reafirmar o pensamento mais conservador e mais ortodoxo.”

Belluzzo nos traz, também, uma verdadeira aula sobre a crise financeira internacional. Uma análise precisa sobre a Europa, em especial a resistência da Alemanha em romper com a política de austeridade europeia. Ele avalia, ainda, a economia dos Estados Unidos e detalha o surgimento da crise e seus efeitos no Brasil.

O professor explica o papel da China na mudança da ordem econômica mundial. E avalia, obviamente, a posição do Brasil neste novo contexto, ressaltando o papel das políticas adotadas recentemente pelo governo e quais as oportunidades que temos daqui para frente. Acompanhem a entrevista:


[ Zé Dirceu ] Para começar, vamos falar da crise europeia. Para onde ela está rumando?

[ Belluzzo ] Os europeus continuam presos na armadilha da austeridade. Não só a zona do Euro, mas também a Inglaterra. Semana passada, o chanceler do Tesouro britânico, George Osborne, reiterou a disposição do governo inglês de manter a austeridade a despeito dos péssimos resultados no país. Na Europa do euro, há medidas muito tímidas. Eles deram maior condição para a capitalização dos bancos espanhóis e flexibilizaram um pouco a aquisição do mercado secundário de títulos, mas o Banco Central Europeu (BCE) continua bastante tímido em razão da resistência alemã. Os alemães não toleram nenhuma ação mais incisiva como, por exemplo, está fazendo o Banco Central americano - Federal Reserve (FED).

O Banco Central americano foi muito além daquilo que seria recomendado por uma política monetária convencional. Com a facilitação quantitativa, eles impediram uma deterioração ainda maior do sistema bancário e tentaram por meio de ações do próprio FED reestimular a economia. O [Ben] Bernank, presidente do FED, declarou que faria isso até o ponto necessário para recuperar o emprego. Os últimos dados mostram que ele não tem sido muito feliz. Até porque você tem aquilo que o Keynes chama de “armadilhas da liquidez”: falta disposição e confiança nos bancos para emprestar; e condições para que as famílias possam  tomar o crédito. Veja que, no trimestre, a expansão do consumo nos Estados Unidos foi muito modesta. O crescimento da economia norte-americana foi mais um fato estatístico, por conta do cálculo do PIB que eles fazem (com a queda das importações, o PIB aumenta).

Estão todos aguardando a discussão entre o governo Obama e os republicanos sobre o abismo fiscal, como vão fazer. Ainda que ocorram avanços, na minha visão, o acordo não será suficiente para desencadear uma política fiscal mais agressiva, de modo a absorver pelo menos uma parte dos empregos que se foram no auge da crise. Todos estão esperando muito desta negociação, talvez haja uma flexibilização entre o presidente Obama e os republicanos, mas não acredito que isso seja suficiente para permitir a adoção de um programa mais agressivo.

“Muito barulho por nada”

O Shakespeare diria que seria muito barulho por nada. Você faz muito barulho, tem muita reunião, mas na prática se avança muito pouco na solução dos problemas. Todos dizem que nós precisamos dar mais força para o Banco de Investimentos Europeu – na Inglaterra há a proposta de um banco de desenvolvimento parecido com o nosso BNDES – para poder contornar essa situação de paralisia do setor público por causa da dívida. O que eu vejo, porém, é uma continuidade, o mais do mesmo tanto na Europa quanto nos Estados.

Nos Estados Unidos, com menos adesão às posições mais conservadoras; mas há essa questão fiscal, embora eles façam uma política monetária mais agressiva do que Europa, onde a situação é mais grave. O que está previsto neste ano é uma recessão na zona do Euro e na Inglaterra. A Alemanha já vai sofrer nos próximos meses efeito da queda de atividade nos outros países.

Não vou falar do caso da Grécia, porque lá é um fenômeno de crueldade econômica. As condições de vida são péssimas, há um aumento brutal da pobreza, falta absoluta de condições para que o governo grego se mova em alguma direção. Agora, a Grécia acabou de receber um socorro, mas não vejo como ela vai suportar a obrigação de continuar a redução do déficit, mesmo porque este não se reduz – quando cai o nível de atividade, cai a receita e aumenta o déficit.

[ Zé Dirceu ] Qual a saída possível?

[ Belluzzo ] É preciso uma coordenação dentro do Euro que compreenda diversas estratégias. Uma delas seria uma maior agressividade nas ações de liquidez ou de compra de papéis – não tem como não fazer; ou permitir uma ação mais agressiva do BCE, que não é uma resistência do Mário Draghi (presidente do BCE), mas uma resistência dos alemães. Não preciso dizer que a sede do BCE fica em Frankfurt. Isso não é uma coincidência geopolítica. É lá porque os alemães querem que o BCE funcione como teria funcionado o Bundesbunk.

Você teria de combinar isso com uma unificação fiscal e um papel mais anticíclico da Alemanha. Na realidade, as posições teriam de ser invertidas. Ou seja, a Alemanha faria um déficit externo para irrigar as economias vizinhas. Na situação do período do Euro, antes da crise, os países mais fracos faziam um déficit e abasteciam a demanda da Alemanha de manufaturados. As bolhas que ocorreram na Europa, sobretudo a espanhola, mas também a portuguesa, a irlandesa, funcionaram como um elemento de estímulo à economia alemã. Os bancos alemães financiavam esses países, pagavam suas bolhas imobiliárias, pagavam seus déficits externos e estes abasteciam a Alemanha. Seria preciso inverter isso e que a Alemanha tivesse disposição de funcionar como um país residual – aquele que absorve o choque.

Indústria exportadora move economia alemã

[ Zé Dirceu ] O que acontece com a Alemanha?

[ Belluzzo ] A Alemanha, desde a Segunda Guerra, quando adotou a chamada economia social de mercado, transformou-se em uma economia exportadora. Ela tem um grau de abertura muito alto, as exportações representam 40% do PIB alemão. Fazer essa inversão significaria à Alemanha dar mais peso para sua economia interna. Ela é dependente de energia e, também, do ponto de vista agrícola. A dinâmica da economia alemã é, quase exclusivamente, a grande competitividade da sua indústria. É ela que move a economia alemã, uma indústria exportadora com muita qualidade tecnológica, eles não só exportam para a Europa - o principal mercado deles, 70% - mas para o Brasil, EUA, China. São abastecedores de máquinas e ferramentas, equipamentos elétricos, ótica, farmacêutica etc. Seria, portanto, do ponto de vista da organização da economia, alemã muito difícil, uma mudança muito drástica.

 Veja que, durante o nazismo, a economia alemã se fechou muito e articulou um sistema de comércio exterior em que fazia acordos bilaterais com seus vizinhos – sobretudo os do Leste -, mas inclusive com o Brasil. Fez um acordo de comércio bilateral e depois deste quase sufocamento do nazismo, da adoção de uma economia autárquica, a Alemanha procurou adotar um outro modelo no pós-guerra. Ela foi muito ajudada pelos EUA, que de maneira benevolente abriram o seu mercado.

A Alemanha vem, portanto, de alguns traumas. Primeiro, o da hiperinflação, que impede que o Banco Central seja mais ousado. Eles não permitem que o BCE faça o papel que o FED está fazendo. O presidente do Bundesbunk, banco central alemão, disse que este é o destino do Fausto, a quem Mefistófeles prometeu riqueza. Criar riqueza emitindo dinheiro não lhes parece uma coisa benfazeja, nem promissora, porque eles têm a experiência da hiperinflação em 1923. Durante a Guerra, quando eles fecharam, houve a abertura da economia autárquica – uma economia interpretada (confundida) como a exigência de um grau de autoritarismo e de coerção estatal muito grande. Tanto que a estrutura institucional deles é muito cautelosa em relação a isso. A Corte institucional às vezes é obrigada a se pronunciar sobre questões econômicas.

No caso da Europa, há uma situação muito difícil, porque o país que poderia funcionar como país residual na absorção do choque tem bloqueios históricos e ideológicos. O povo alemão está convencido da sua capacidade de renúncia, de fazer sacrifícios e suportar; e não está disposto a sacrificar os seus princípios em nome do que concebem como um bando de europeus do Sul que são gastadores, nada cuidadosos com sua economia e com o seu endividamento. Nós temos aí um bloqueio sério.

Vai-não-vai da França

[ Zé Dirceu ] E a França?

[ Belluzzo ] A França está em um vai-não-vai. O François Hollande (presidente da França), no fundo, resolveu levantar a bandeira da competitividade. Uma coisa que quer dizer tudo e não quer dizer nada porque adotar políticas de competitividade e austeridade neste momento significa sacrificar ainda mais a população. A competitividade vista como enxugamento das empresas, do Estado, na redução dos custos salariais. Este é o problema. Corte do setor privado e do setor público é uma outra questão. Essa ideia de que todos os países precisam melhorar sua competitividade, na prática, em uma economia capitalista significa que você tem de introduzir tecnologias que reduzam ao máximo o emprego da mão de obra. Isso, na verdade, não seria tão danoso se ao mesmo tempo você não fizesse o enxugamento do Estado. Portanto, você está prejudicando a função que o Estado tem de compensar os ganhos de produtividade e competitividade do setor privado, do ponto de vista macroeconômico.

Muitas vezes as pessoas pensam só do ponto de vista microeconômico essa questão da competitividade. A empresa que se torna mais competitiva ganha em relação aos outros, mas os requerimentos de mão de obra e de capital por unidade de produto se reduzem. Isso é bom microeconomicamente, mas, se isso generaliza para o conjunto da sociedade, é importante que exista algum agente que suporte essa destruição de empregos etc.

Claro que se supõe que, com o aumento da produtividade e da competitividade, os salários aumentem e os ganhos sobre outras economias idem. O problema é que essa recomendação é feita para todos. E isso não funciona. Se todo mundo faz, claro que não vai funcionar. Um problema de falácia de composição aí. A organização da economia internacional passa por outras questões como a da coordenação, por uma regulação mais adequada do comércio que não vai ser satisfeita pelas regras da Organização Mundial do Comércio (OMC).

Provavelmente, com o avanço da crise e na medida em que ela se prolonga e você não encontra solução, o mundo vai assistir ao recrudescimento do protecionismo porque as sociedades não vão aguentar esse jogo que é de soma zero. Você precisa de alguém que faça o papel de mediador. Essa era a ideia original de Bretton Woods (1944), você criar um Fundo Monetário, o Banco Mundial e a Organização Mundial do Comércio, que demorou, ficou como GATT (Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio). A ideia era usar essas instituições para absorver o choque e ordenar a economia. Keynes propunha um banco internacional que fizesse a liquidação das posições devedoras e credoras dos países, claro que com regras, mas para impedir essa situação de jogar o desemprego sempre para o vizinho.

Keynes tinha muita clareza, qual o jogo do capitalismo internacional deixado à própria sorte? Ele viu as relações competitivas, o protecionismo dos anos 30, e disse que a única maneira de solucionar isso é ter uma coordenação por uma ordenação institucional internacional capaz de dar conta das questões que surgem no desenvolvimento destas economias. Não deixar que os déficits externos se aprofundem, ter um mecanismo de provimento de liquidez para os países que estão deficitários, exigir dos superavitários que eles se conformem com a obrigação de financiar os deficitários para manter o nível de atividade. No fundo, Keynes estava dizendo “nós estamos vendo quais foram os resultados da competição internacional”. Ele estava vendo do ponto de vista da Inglaterra.

Reordenação da economia mundial

A Inglaterra foi a grande perdedora do final do século XIX para o XX, com o crescimento da Alemanha e o surgimento dos Estados Unidos. Já nas últimas três décadas do XIX, entre as potências industriais, a Inglaterra era a terceira, atrás desses países e em qualquer critério de avaliação, produção de aço, de locomotivas etc. Isso acontece acentuadamente a partir de 1880, o período conhecido como a Grande Depressão do século XIX, quando acontece o fenômeno da queda dos preços, tanto os agrícolas quanto os industriais. Por que eles caíram? Porque entraram competidores muito poderosos - vejam que isso é muito parecido com o que acontece hoje com a China.

 Além disso, entraram em operação as áreas periféricas provedoras de matérias-primas e de alimentos. Foi nessa época que foram incorporados ao comércio mundial o Brasil (monoprodutor de café), a Argentina (carnes, trigo, alimentos), a Austrália, a Nova Zelândia. Houve uma tendência secular à queda de preços, intitulada a Grande Depressão. Na realidade não houve depressão nenhuma porque o nível de atividade, pelo avanço das economias que estavam competindo com a Inglaterra, estava aumentando. Existiam crises financeiras, sim, sempre houve, mas que logo eram superadas. E você entra no século XX com esta situação em que a economia internacional foi reordenada, no começo do século XX ela já não era a mesma de meados do XIX, quando a Inglaterra era potência hegemônica.

A Inglaterra já havia perdido essa condição, o seu mercado financeiro continuava como o mais líquido e importante do mundo, mas ela já tinha uma certa concorrência da França (Paris) e de Wall Street, que sempre teve ligações próximas com a Inglaterra, mas a economia financeira norte-americana estava se transformando em uma outra coisa, uma economia muito mais moderna em que as estruturações financeiras, a conglomeração, ou seja, a concentração de capital e a ligação banco-indústria era muito diferente. Na Inglaterra, os bancos nunca se interessaram pela sua indústria. A indústria inglesa ficou sempre órfã de seus bancos, o que nunca foi o caso dos EUA, nem da Alemanha.

Nós estamos vivendo algo parecido com a China hoje. A transformação que estamos observando na economia mundial com a presença da China tem muita semelhança com esta ocorrida no final do século XIX e que levou às instabilidades dos anos 20. A Primeira Guerra não foi só um fenômeno puramente econômico, claro, com as decorrências políticas, obrigação das reparações pelos alemães. O Keynes escreveu sobre as consequências da paz dizendo “olha, isso não vai dar certo, vocês estão exigindo uma coisa que a Alemanha não pode cumprir”. Eles exigiam que a Alemanha fizesse as transferências e ao mesmo tempo começaram a impor restrições às exportações alemãs, típico da miopia de certos momentos. Keynes dizia “isso vai terminar mal” como terminou mal, logo depois da Grande Depressão, com o nazismo.

A Alemanha teve a hiperinflação em 1923, Na Grande Depressão, foi um dos países mais atingidos. E os alemães, sempre muito obedientes como diz o Weber, resolveram dar um sinal ao mercado de que estavam dispostos a fazer a austeridade. Em 1933, a taxa de desemprego aberto na Alemanha chegou a 43%, uma coisa devastadora. Não espanta que isso tivesse dado origem ao nazismo. A República de Weimar não foi capaz de solucionar essas questões, ela esteve sempre muito ameaçada e o desfecho foi lamentavelmente aquele.

Ação coletiva é o que acaba determinando

Nós temos muita semelhança entre a crise que acaba estourando nos anos 30 e na Segunda Guerra e a crise que estamos vivendo agora: uma reordenação da economia mundial. Naquela época a Inglaterra, como dizia o Keynes, regia a orquestra. Com o surgimento da Alemanha e dos EUA, a perda de importância comercial e industrial, essa regência começou a degringolar. Mas a visão de que a orquestra não funcionava demorou muitos anos, precisou da depressão dos anos 30 e da Guerra para os EUA em entrarem na condição de liderança já. Até porque o território deles permaneceu praticamente intocável pela Guerra, eles preservaram toda a estrutura industrial, ao passo que a destruição na Europa e no Japão foi assustadora. Os EUA emergiram da II Guerra com a disposição de reorganizar, claro, segundo os interesses dele. Essa reorganização também foi benéfica para a reconstrução europeia, para os projetos de desenvolvimento na Ásia e na América Latina – depois, claro, os conflitos começaram a surgir.

Claro que não há uma determinação na história. É a ação coletiva humana que acaba determinando. Acredito que o encaminhamento desta crise atual vai exigir, por exemplo, a negociação acerca do dólar como uma moeda reserva. Não é compatível com a situação atual, com essa presença grande da China, que o dólar seja substituído. Sempre ouvimos falar que o dólar será substituído, necessariamente tem de ser assim. Agora, enquanto o dólar continuar muito forte, não é possível que ocorra o ajustamento desejável para as economias. É preciso mudar o papel do dólar ou juntá-lo com outras moedas, um pool de moedas, de modo a criar uma administração conjunta para impedir esses movimentos de taxas de câmbio entregues simplesmente ao mercado. Mais do que nunca é necessário uma coordenação. Podemos fazer uma cesta com o euro, o dólar e o yuan, embora os chineses sejam muito resistentes a permitir que o yuan seja utilizado como moeda reserva. Eles usam a moeda deles como instrumento de desenvolvimento e de industrialização; mas é possível que, no andar da carruagem, eles relaxem nessa restrição. Veja que o problema da coordenação monetária está posto. É uma questão central.

[ Zé Dirceu ] Como o Brasil é afetado pela crise?

[ Belluzzo ] O Brasil tem uma situação peculiar nesta crise. Quando nós fizemos a estabilização em julho de 1994, com o Real, o mundo estava saindo de uma crise muito mais suave, a crise de 90-91. Não foi uma grande crise, mas preparou, de alguma forma, a estabilização brasileira. Eu vou simplificar, alguns vão dizer que é uma imprecisão e de fato é, mas na crise de 1991, logo depois da crise americana, da financeira japonesa, sobrou muito capital no mundo e o Brasil estava com os ativos muito desvalorizados por causa inflação alta, da desvalorização cambial permanente. Nesse movimento, o Armínio Fraga era o presidente do Banco Central, foi logo depois do impeachment do Collor, o dinheiro começou a vazar para cá porque nós tínhamos o programa de privatização, ativos baratos – públicos e privados.

Muita gente pergunta: mas como pode – nós tínhamos feito Plano Collor, aquele negócio do sequestro da poupança – vir tanto capital prá cá?. De fato veio. Como o Collor abriu para a privatização, entrou muito dinheiro. Nós fizemos a estabilização com US$ 40 bi de reservas. Se você olhasse em 1988, nós estávamos às secas. Quem fez a moratória de 87, fomos eu e o Paulo Nogueira Batista, mas o Mailson (da Nóbrega) parou de pagar depois de ter transferido US$ 19 bi para fora, não tinha mais como, ele parou de pagar. E a despeito de tudo isso, entrou dinheiro.

E nós fizemos a estabilização com US$ 40 bi de reserva. Não fosse essa a conjuntura... Porque ela mudou completamente a trajetória de escassez de divisas, indexação e hiperinflação, desvalorização do câmbio etc, que o Brasil vinha atravessando. Muitas vezes, isso não é tão infrequente assim, os policemakers costumam atribuir a si mesmos essas grandes vitórias. Mas, não é bem assim. Não é exatamente como eles acham, a situação internacional favoreceu muito a adoção. Sem as grandes reservas, não faríamos muito.

[ Zé Dirceu ] O Plano Real jamais daria certo em 1984, dez anos antes, por exemplo?

[ Belluzzo ] Jamais. Em 1986, nós tentamos o Plano Cruzado e, ao invés de fazer a ancoragem no dólar (o Real nós ancoramos no dólar), nós tivemos de fazer o congelamento. Por que ele foi feito? Congelar preços é uma coisa terrível, você imobiliza completamente a economia e perde toda a flexibilidade. É preciso deixar que o sistema de preços funcione normalmente e isso depende muito da confiança que os agentes têm na estabilidade monetária. Uma coisa é consequência e ao mesmo tempo suposto da outra, um típico movimento dialético mesmo.

 É interessante esta questão da confiança, não é de formação de preços. O fundamental é sempre a confiança na moeda. O que o Plano Real fez foi reestabelecer a confiança na estabilidade monetária, com consequências etc. Então, o Brasil ali já teve o primeiro choque positivo que nasceu de uma situação internacional sobre a qual ele não tinha controle. Para que vocês tenham uma ideia do quanto era importante a forma como o Brasil estava colocado, durante toda a década de 90, inclusive até o término do segundo mandato FHC, o mundo viveu uma sucessão de crises – crise mexicana (1994/95), crise asiática (97/98), crise do LCTM da Rússia (1998), crise brasileira (1999) quando tivemos de desvalorizar o câmbio, crise argentina (2001), crise da bolha tecnológica (2001).

“Mude o transatlântico devagar”

Quando o Lula foi eleito, ele entrou com esse estigma das crises, fora a questão da suposição – bancos e setor financeiro – de que ele faria algo parecido com a Argentina, que já tinha feito curralito etc. E não tinha nada a ver, porque o Brasil tinha dívida dolarizada, mas não tinha dívida em dólar. Exatamente neste momento, o Banco Central americano joga a taxa de juros lá embaixo para digerir a crise da bolha financeira (2000-01), a crise argentina termina em uma moratória da dívida, Lula toma posse e a partir de 2001-03, a presença da China se torna muito clara. Quando o Lula tomou posse o dólar chegou a R$ 4.  Mas, o que o Lula fez? Ele foi cauteloso, o Palocci usou uma frase que eu disse: “Mude o transatlântico devagar”. Nada de foguetórios.

E não foi só o fato de ter mudado devagar, mas nós começamos a ter um afluxo de divisas brutal. Nós terminamos o governo do FHC com aproximadamente US$ 39 bi de reservas em 2002; dez anos depois nós temos US$ 380 bi, porque o movimento da economia internacional favoreceu muito a estabilização depois de um período de turbulência em 1999, 2000 e um pouco mais para frente. No Brasil, sempre que você dá uma folga no balanço de pagamentos, como nós tivemos por conta da demanda chinesa, ela foi de uma violência e os preços mudaram muito. Em geral, essas violências não são boas porque, quando sobem os preços das comodities, nós sofremos o choque inflacionário. Nós tivemos esse movimento muito melhorado porque nós começamos a nos beneficiar das mudanças de preços relativos e do avanço das importações chinesas de manufaturados. Porque, com a presença da China, os ganhos de produtividade lá, os preços de manufaturados capotaram, caíram muito os preços relativos.

[ Zé Dirceu ] No mundo inteiro...

[ Belluzzo ] Sim, no mundo inteiro, não só aqui. Boa parte dos ganhos nas taxas de inflação, da redução da inflação, se deve à presença da China. Os governos acham que isso decorreu das políticas de metas de inflação, não é verdade. Decorreu dessa mudança de preços relativos, da queda brutal do preço dos manufaturados. Isso teve um efeito importante em toda parte, no Brasil inclusive. Passamos a importar insumos, componentes etc muito baratos da China, o que barateava os custos locais aqui.

O mesmo é verdade para os EUA, sobretudo, para mitigar um pouco a situação de desigualdade que havia sido criada lá ao longo de 30 anos, a partir do Reagan. Salários e rendimentos da classe média e dos debaixo estagnaram, mas a queda dos preços e o endividamento permitiram que eles mantivessem o padrão de consumo. Com esse momento, o fenômeno que já tinha ocorrido fez com que os EUA se tornassem os maiores receptores de capitais, sobretudo, capitais de portfólio (compras de ações e títulos, dívidas empresas americanas e privadas). Então, cai a inflação e entram capitais nos EUA, o que joga as taxas de juros longas para baixo – taxas formadas no mercado, de dez anos -, elas caem rapidamente.

E os bancos – esse é o fenômeno que vamos assistir aqui – procuraram novas formas de rentabilizar suas atividades. Eles começaram a inventar coisas, o que acabou na criação do processo originar e distribuir; você começa a capturar porque precisa aumentar o volume rapidamente de crédito para compensar a perda dos spreads. Você pega o cara lá do Alabama que não tem um tostão furado – o subprime –, dá um crédito para ele, pega esse crédito e junta com outros, empacota. Em cima deles você emite um ativo chamado CDO e esse ativo você vende com uma percentagem.

Criou-se essa bolha que se alimenta por outro lado pela valorização dos imóveis. Quanto mais se valorizam os imóveis, mais as famílias se endividam. A taxa de endividamento das famílias cresceu de 85% para 135% da renda disponível e chegou a 100% do PIB rapidamente. Criou-se um processo de mútua alimentação entre o setor financeiro e o setor imobiliário, com o enriquecimento “falso” das famílias – não é falso, é um enriquecimento decorrente da valorização das casas. Esta valorização gerava mais tomada de empréstimos e aí alavancou. As instituições financeiras também começaram a se alavancar mais. Com pouco capital, elas tomavam dívidas entre elas para poder carregar esses papeis, para ganhar dinheiro.

Brasil reagiu à crise com sabedoria

O Brasil, como era um produtor de commodities e estava apontando uma situação boa superavitária de transações correntes, inflação cadente, administração fiscal bastante prudente, atraiu o capital. Isso abriu e flexibilizou a economia para que o Lula pudesse ampliar as políticas sociais. Permitiu, é muito claro, que as políticas sociais puxassem para cima esse contingente enorme de pessoas que foram beneficiadas pela política de salário mínimo – o Bolsa Família menos, mas ele é importante para a pobreza absoluta. O salário mínimo foi importante para a economia urbano-industrial que o Brasil é. E mais do que isso, o crédito consignado: foi muito importante o acesso dado ao crédito para que essas pessoas subissem. Isso tudo é antes da crise de 2008, no período de 2004 quando a economia estava acelerando.

Na crise (2008-09), o Brasil não tinha nada a ver com aquilo, foi um choque exógeno, mas houve um contágio. Os consumidores cortaram os gastos, os empresários reduziram o investimento e vimos aquela queda do PIB em 2009. Na verdade, o Brasil reagiu com grande sabedoria na crise. Poucas vezes um governo brasileiro reagiu a uma crise com tanta sagacidade. Viu que o problema estava no crédito, que era uma crise de confiança e rapidamente tomou medidas para reestimular o crédito.

Surgiu o problema com o mercado de carros usados, e a compra de carteiras foi muito eficiente. Depois, o Meirelles colocou em operação a seguradora de crédito para dar garantia aos bancos, os estímulos fiscais (redução de IPI etc), e isso favoreceu a retomada. Nós crescemos 7,5% em 2010 e não apenas por causa do consumo, mas porque o investimento decorrente, com o perdão da má palavra, o efeito acelerador, ou seja, o estímulo que começou a dar este investimento, e ele também cresceu. E a economia teve um ótimo desempenho. Mas os efeitos começaram a ficar mais fracos a partir de 2011 e de 2012.

O Brasil agora está vivendo essa transição. É por isso que a presidenta Dilma botou a ênfase nos investimentos, com uma série de medidas para aliviar o custo da folha em cima das empresas; concedeu a depreciação acelerada que é importante e precisava estender isso, não pode deixar num prazo curto; e agora anunciou os projetos de concessão de infraestrutura, depois das estradas e dos portos. O que precisa agora é deslanchar isso rapidinho.

PIB: forma de calcular está errada

A desaceleração de 2011 para 2012 não foi tão intensa. Há um problema aí de contabilidade nacional que o pessoal está começando a se dar conta. O setor financeiro deu uma contribuição negativa para o PIB: caiu, segundo o IBGE, 1,2%. O problema é como o cálculo é feito – o Chico Lopes chamou a atenção para isso e o Bráulio da LCA voltou ao assunto. Como caiu o spread bancário, uma espécie de proxe do valor agregado do setor, você pega o spread bancário em cima de um volume de crédito que cresceu (estava crescendo menos) e de um crescimento negativo do setor bancário – o que jogou para baixo a taxa de crescimento. Ou seja, você precisa estudar economia para não ser enganado pelos economistas.

Eles fazem um barulhão, mas é preciso que isso seja revisto. No fundo é uma imputação porque você faz um cálculo indireto quando na verdade o cálculo pelo lado da oferta não deveria mostrar essa queda. Essa forma de calcular está errada. Seria bom que o IBGE discutisse com os economistas esse tipo de cálculo. Porque isso tem consequências Imagine o sujeito que está decidindo investimentos. Ele fala “não, está crescendo só 0,6%, não vou investir”. A informação econômica tem consequências.

[ Zé Dirceu ] Deslanchar  essas infraestruturas é suficiente para a gente criar um arcabouço?

 [ Belluzzo ] A gente vai crescer e talvez consiga avançar para 3,5%. Foi importante também a mudança no regime cambial. A valorização do câmbio foi muito negativa para a indústria brasileira. O governo tinha o objetivo de chegar a R$ 2,10. Depois negou que tivesse esse objetivo e o dólar se desvalorizou um pouco frente ao real. Você não pode dar ao mercado o sinal que você está operando em determinada direção porque eles se juntam contra você. É importante dar um susto no mercado. Mas o governo está certo. A presidenta se preocupa muito com a questão cambial, ela vai produzir efeitos sim em breve.

E o Brasil não pode, de maneira nenhuma, sem tomar uma medida de reação, aceitar a invasão chinesa. Gostamos muito deles, mas não podemos aceitar. No trimestre passado, 100% da demanda de manufaturados foi atendida por importações. Isso é gravíssimo. O câmbio é um instrumento fundamental de defesa da indústria.

Além dele, temos a política de compras governamentais, que é importante, o pessoal já começa a dizer que a Petrobras está sendo politizada. A Petrobras é uma grande empresa brasileira que tem um projeto de investimentos para os próximos 20 anos, muito importante. Enquanto uma empresa estatal, ela não pode desconsiderar os efeitos que tem sobre a economia, de jeito nenhum. É preciso sempre ter um equilíbrio entre eficiência econômica e o papel dela como empresa brasileira, como instrumento de política econômica do governo.

Se não tivesse sido assim, nós não teríamos chegado ao pré-sal. O pré-sal aconteceu porque o povo brasileiro deu à Petrobras as condições de pesquisa e crescimento que permitiram com que ela se tornasse uma das empresas de petróleo mais importantes do mundo. Ao mesmo tempo, isso é um perigo, como disse a professora Conceição, “A Petrobras é uma nação amiga”. Ou seja, a gente precisa equilibrar as coisas e eu acho que a presidenta Dilma e a Graça Foster farão isso muito bem.

A inflação não vai subir

[ Zé Dirceu ] Como você essas sugestões para que o Brasil adote medidas de austeridade?

[ Belluzzo ] O Brasil tem superávit primário, coisa que nenhum país hoje desenvolvido tem. Nós temos um sistema financeiro ultrarregulado que não se meteu nesta farra e está se adaptando à queda da taxa de juros, porque com a taxa de juros alta, se você olhasse o volume de operações compromissadas – aquelas de curto prazo, o mercado monetário –, era uma massa enorme. Eles vão ter de ajustar.

Austeridade? O Brasil precisa que o setor público e o privado gastem. O setor público em infraestrutura e o privado idem. É disso que o Brasil está precisando. Austeridade, para quê? Eles estão dizendo que a inflação vai subir. A inflação não vai subir, já está mostrando taxas cadentes, aliás, porque passou o efeito do choque da seca americana. Austeridade só se for masoquismo. Eu tenho o nome, Luiz Gonzaga, de um santo que praticava o dia inteiro austeridade, ele se chicoteava. Tenho grande admiração por ele, mas... (risos)

Homogeneidade impede o debate

[ Zé Dirceu ] Como você avalia a produção acadêmica e o jornalismo econômico hoje, Belluzzo?

[ Belluzzo ] A Academia já teve um papel importante no debate econômico. Hoje, ela está um pouco retraída, na sombra. No mercado de opiniões, hoje, o que prevalece é a opinião das consultorias e do mercado financeiro, isso é uma distorção. A forma como a informação é dada, sua natureza, é importante para a decisão. No jornalismo econômico, por exemplo, as editorias de economia estão muito empenhadas em reafirmar o pensamento mais conservador e mais ortodoxo. Eles não conseguem se livrar disso e eu não sei se é uma opção intelectual, política. Não importa, o fato é que temos uma certa homogeneidade que não é boa porque ela impede o debate.

Então, não temos um debate econômico aqui, um debate, por exemplo, sobre as questões de longo prazo. Está tudo muito concentrado nas políticas de curto prazo, conjuntural. Por exemplo, há uma concordância impressionante de que o governo precisa aumentar o investimento público. Melhorou um pouco o tema, porque antigamente era discutir qual seria a inflação projetada pelo Boletim Focus. Alguns recalcitrantes... Isso empobrece muito o debate porque você não situa os problemas brasileiros diante da crise mundial, não coloca as questões pertinentes, das restrições e das possibilidades que o nosso país tem.

 Agora qual é o tema? É o de que há uma espécie de “perda de confiança no Brasil”, porque tem muito intervencionismo, muita atuação do governo um pouco descoordenada. O governo tem de dar uma resposta a isso conversando com o setor privado para mostrar que, na realidade, não se trata de nada disso. Se não fizer isso, você deixa esta opinião tomar conta do pedaço. Nós temos um bom desempenho do investimento direto estrangeiro, o que  caiu foi o investimento de portfólio e caiu por conta da redução dos juros – não há dúvida. E da relativa estabilidade do câmbio. Como dizia o Delfim, tiraram da mesa o último peru disponível na praça para eles. Eles estão começando por meio de várias formas a reagir...

Como eles querem a moeda brasileira? Querem a moeda brasileira como objeto de arbitragem para a especulação, o resto não interessa. Como eles ainda estão soltos – e soltos nos dois sentidos, porque os caras que fazem isso não foram presos e estão soltos no sentido de que estão deixados a si mesmos –, ficam fazendo esse lobby fora.

Havia uma matéria muito tendenciosa da Folha que dizia que o Brasil estava mal visto. Aí embaixo estava escrito que os investimentos diretos iriam atingir níveis elevados. Havia entrevistas com vários gestores de fundo na América Latina e eles ficam reclamando. A Economist também é porta-voz disso, presta a esse tipo de serviço. Basta ler a matéria publicada recentemente (saiba mais).

[ Zé Dirceu ] Como você está vendo essa questão das teles e das elétricas?

[ Belluzzo ] A questão das teles (medidas cobrando mais eficiência) foi muito bem recebida pela população usuária, sem dúvida. É uma coisa inacreditável o serviço. Quando eu vou daqui para Campinas, em metade da viagem eu não consigo falar. O serviço é péssimo. Não sei se a Anatel conseguiu melhorar isso, porque é um descuido. Se você for recorrer ao atendimento deles, você fica louco. E todos os serviços desta natureza.

Já no caso das elétricas, obviamente, o governo tem toda razão (em relação às novas normas e à redução da tarifa) porque boa parte do capital deles já está depreciada. O governo ainda vai dar uma recompensa – R$ 20 bi. Agora, isso tem a ver como foi feita a privatização. Eles montaram na grana e fizeram o diabo ali. Eu disse para eles: “Vocês vão precisar abrir os olhos, porque se o governo fizer uma campanha inteligente contra vocês, vocês estão perdidos”. Isso pesa muito no orçamento. A FIESP já começou, daqui a pouco começam os consumidores.

[ Zé Dirceu ] Quando vencerem as concessões, essas empresas que dizem que não é viável, podem ser as favoritas para ganhar com as novas regras.

[ Belluzzo ]  É uma questão de outra natureza aí. Está muito claro.

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