quinta-feira, 17 de janeiro de 2013

Um constante recomeçar


Francisco Weffort
Publicado em 14 de janeiro de 2013
Publicado  em Valor, Por Diego Viana | De São Paulo, 12-13 de janeiro de 2013
Weffort saúda a democratização social: “Nada é irreversível na história. O Brasil já mudou muito, já chegamos longe à beça” Inspirado nos grandes intérpretes do Brasil nas décadas de 30 e 40 e motivado por suas andanças através do país, como ministro da Cultura do governo de Fernando Henrique Cardoso (1995-2002), Weffort compõe uma leitura de forças que motivaram a conquista do território brasileiro e a formação de uma sociedade personalista, desigual e escravocrata, mas culturalmente diversa e cujo desenvolvimento histórico aponta para uma crescente democratização social.
O ex-ministro, hoje professor na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) – a maior parte de sua carreira acadêmica foi passada na Universidade de São Paulo (USP) -, recolheu-se, ao longo de sete anos, para escrever o livro, a ponto de não acompanhar, como diz, as discussões sobre a gestão da cultura em Brasília. Afirma desconhecer o assunto e recusa-se a comentar a criação do Vale-Cultura e o projeto do Procultura, que visa alterar procedimentos da lei Rouanet.
Ao longo desse período, Weffort escreveu sobre as origens históricas de uma terra em que o discurso expressa, a cada momento, a impressão de se estar vivendo, de novo, a origem de tudo. O livro é introduzido com essa afirmação instigante: “É frequente em nós a sensação de que estamos no começo dos tempos”. Para sustentar sua interpretação, Weffort cita Joaquim Nabuco, Stefan Zweig e Carlos Fuentes – este último, considerando as referências que faz ao México e aos latino-americanos em geral.
“O Brasil é fruto de um renascimento voltado para a conquista, não para o avanço das artes e das ciências”, diz o cientista político
O autor associa esse mito do recomeço constante à linhagem dos países latino-americanos, descobertos e povoados na esteira da “Reconquista”, em que os exércitos cristãos, ao longo de quase 800 anos, tomaram a Península Ibérica dos árabes. Somos, portanto, “herdeiros da última Idade Média” e “fruto de um dinamismo renascentista ibérico”; esse dinamismo é caracterizado, segundo Weffort, não pelo avanço das artes e das ciências, mas pela conquista do mundo.
“O sentido dos descobrimentos foi fazer irromper um novo mundo. Havia aí a promessa de uma nova civilização”, afirma o autor. “O problema é que não conseguimos ainda divisar um horizonte de modernidade prometido naquele começo.” Como consequência, cada momento de transformação do país é tratado como recomeço por seus agentes principais. “É como se estivéssemos retomando o começo, e dizemos: ‘Não fizemos até agora, mas faremos’”.
Weffort conta que buscou se espelhar em grandes intérpretes clássicos do Brasil, como Sergio Buarque de Holanda, Roberto Simonsen, Gilberto Freyre e Caio Prado Júnior, que escreveram nos anos 30 e 40 do século passado, mas não deixaram herdeiros, propriamente. Ele se queixa do fato de que muito se aprendeu sobre o país desde então, em muitas áreas, mas somente de forma “pontual, setorial, fragmentária”. De lá para cá, jamais foi feita a síntese entre, de um lado, os avanços nos estudos sobre a política, a cultura e a história do Brasil e, de outro, a ambição de realizar uma leitura global dessas dimensões da realidade do país.
O livro é destinado primordialmente a um público de graduação em ciências humanas, cujas principais fontes de estudo estão divididas entre grandes textos interpretativos de oitenta anos atrás e os estudos de escopo mais limitado, ainda que profundo, publicados nas décadas subsequentes. “É por isso que viso o público mais jovem, que está na universidade. Eles têm contato com esta literatura básica, que é fundamental, mas não teve a continuidade que merecia.”
Weffort foi buscar em Sergio Buarque de Holanda e outros intérpretes clássicos da vida brasileira o exemplo de um modo de pensar abrangente, não fragmentário. Ele considera que o abandono da ambição ensaística e generalista dos grandes intérpretes do Brasil foi uma perda considerável. “Deixamos de pensar como eles pensavam, o que não significa que tenhamos vindo a pensar melhor”, afirma. “Houve uma perda em favor da setorização, da especialização, da pesquisa empírica. Isso deveria vir acompanhado de uma tentativa de interpretação geral, que não aconteceu.”
Nesse intervalo, porém, o país como um todo mudou muito, tanto em termos sociais, empíricos, quanto conceituais. Weffort observa um processo de modernização e de democratização social que avança, ainda que a passos lentos e permeado por obstáculos e retrocessos. “Há um ‘cultural lag’, como se diz nas ciências sociais”, diz. “As condições materiais da vida mudam mais rápido do que a cabeça. A cultura e o pensamento mudam mais lentamente.”
Tamanhas transformações dão a impressão de que os estudantes que imergem na leitura desses intérpretes clássicos estão aprendendo sobre um país que já não é mais o país deles. Weffort, porém, não sustenta essa leitura. “Não é o país deles, mas foi. Esses autores nunca ficaram para trás e ainda são indispensáveis para entender o Brasil. Mas defendo que tenhamos a coragem que eles tiveram, para fazer tentativas de interpretação mais geral.”
Ainda que o livro trate de um princípio de formação que inclui genocídios, exclusão e extrativismo, Weffort se declara francamente otimista com os rumos do país. Referindo-se ao processo de democratização social, observa que “nada é irreversível na história, o Brasil já mudou muito. Vindo de onde viemos, já chegamos longe à beça”.
“As condições materiais da vida mudam mais rápido do que a cabeça. A cultura e o pensamento mudam mais lentamente”
Weffort cita as etapas mais recentes: a transição para a democracia no governo de José Sarney, com seu “tudo pelo social”; a racionalização da atuação do Estado, com instrumentos como a Lei de Responsabilidade Fiscal, no governo de que fez parte; o combate direto e efetivo à miséria a partir da gestão de Luiz Inácio Lula da Silva. “Mas isso não é tão recente. Já em Getúlio Vargas encontramos declarações como ‘não estou falando para as elites, estou falando para o povo’. Depois ele se matou…”
Em paralelo com as transformações de fato no país, Weffort identifica mudanças fundamentais na forma de pensar o país, que refletem, aos poucos, o que acontece empiricamente na sociedade. “Houve uma época, na história do pensamento brasileiro, em que não se via o povo. O povo era invisível.” Weffort cita o médico francês Louis Couty, autor de um dos primeiros estudos sociológicos sobre o Brasil, “A Escravidão no Brasil” (1881). Segundo Couty, “o Brasil é um país sem povo”: o brasileiro tinha de si próprio uma imagem limitada à minúscula classe de proprietários rurais.
A descoberta de que o povo brasileiro existia começou, segundo Weffort, com o sucesso de vendas de “Os Sertões”, de Euclides da Cunha, em 1902. Um impulso maior, porém, foi o processo que resultou na ascensão de Getúlio Vargas ao poder, em 1930. “A primeira manifestação de massas do povo brasileiro foi a campanha de 1930, quando os operários do Brás [em São Paulo] se juntaram à classe média e subiram a rua Tabatinguera.”
Ao falar de sua experiência como ministro, o próprio Weffort faz uma pergunta: “Por que alguém que, num determinado período, trabalha com a cultura brasileira busca depois pensar a origem dessa cultura?” Ele mesmo responde. “Porque é inevitável fazer esse esforço.”
Natural de Quatá e crescido em Assis, quando essas cidades do Estado de São Paulo eram “a boca do sertão”, Weffort declara sua surpresa com a diversidade das manifestações culturais no Brasil, seja a presença de passistas de samba no interior de Mato Grosso, seja a influência peruana na festa do boi de Parintins.
“Por mais que eu soubesse disso por leituras, é preciso ver pessoalmente. Chega um ponto em que os livros não dão mais conta dessa diversidade”, afirma. É possível verificar, então, que a imensidão do território e a diversidade cultural não impediram que o país mantivesse uma verdadeira unidade cultural e social. “Só para dar um exemplo, mesmo que o catolicismo não seja mais a religião plenamente dominante, uma certa forma de pensar de origem católica está disseminada por todo o Brasil. E o idioma é o português. Parece pouco, mas não é: até o século XVIII, em São Paulo falava-se guarani.”
O olhar ambivalente, cindido entre “o compromisso com a modernidade e o respeito à tradição”, é uma constante na gestão cultural brasileira, segundo o ex-ministro. Com todas as mudanças de regime, persistiu uma atitude cujas origens podem ser encontradas nos esforços musicológicos de Mario de Andrade. “É notável como o governo de Getúlio Vargas foi ao mesmo tempo o governo do desenvolvimentismo e a época do ministro Gustavo Capanema, durante a qual se criou o Iphan [Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional].”.

Nenhum comentário:

Postar um comentário