terça-feira, 19 de fevereiro de 2013

O câmbio que nos convém

Valor Econômico, 19/02/2013 - Artigo
19/02/2013 às 00h00 3
Por Antonio Delfim Netto
Criou-se um injustificado pessimismo sobre a política cambial. Talvez valha a pena
tentar introduzir alguma ordem na discussão.
Começando do começo: o Produto Interno Bruto mede o valor adicionado numa
unidade de tempo da produção de bens e serviços finais, de acordo com as definições da
contabilidade nacional. Nas economias abertas, a demanda nacional total possui cinco
componentes: o consumo, o investimento, os gastos do governo e as exportações,
deduzida das importações, também nos termos da contabilidade nacional.
Cada um desses componentes é "determinado" pelo comportamento de algumas
variáveis:
O câmbio livremente flutuante é só exercício de livro-texto
1) o consumo privado (C) é determinado pelo PIB disponível, isto é, deduzido dos
impostos pagos e das transferências do governo para o setor privado;
2) o investimento (I) é fugidio. É influenciado positivamente pelo nível da renda e pelo
nível do uso da capacidade instalada e, negativamente, pela taxa de juros real. Depende
fundamentalmente das "expectativas" do investidor. As decisões de investir são
frequentemente tomadas pelo "espírito animal" dos empresários, mas elas não se
sustentam, se a sua taxa de retorno real não for superior à taxa de juros real;
3) o gasto do governo (G) é discricionário, mas é limitado pelas condições de
sustentabilidade fiscal no longo prazo, o que significa déficits nominais relativamente
pequenos e dívida pública manejável com relação ao nível de renda global;
4) a exportação (X) é influenciada positivamente pelo nível de renda do resto do mundo
e pela taxa de câmbio real (preço relativo dos bens importados em termos dos bens
nacionais); e
5) a importação (M) depende positivamente do nível de produção do país, e
negativamente da taxa de câmbio real. A diferença entre a exportação e a importação é
chamada de exportação líquida ou saldo em conta corrente (NX).
A taxa de câmbio real tem influência na composição dos dispêndios de consumo (entre
bens transacionáveis nacionais e estrangeiros) e dos dispêndios de investimento
(compra de equipamento nacional ou importado). Não há, entretanto, evidência
empírica de que ela influa no nível do consumo.
O mesmo ocorre, aliás, com os investimentos: a taxa de câmbio real determina a escolha
mais econômica para as empresas na comparação entre bens e serviços nacionais e
estrangeiros, mas tem importância negligível na decisão do nível do investimento
global.
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Obviamente, o equilíbrio do mercado exige que o nível da produção interna (oferta) seja
igual à demanda total interna e externa, o que depende do próprio nível de produção,
das decisões discricionárias de tributação líquida de transferências (T) dos gastos do
governo (G) e de duas variáveis, que são endogenamente determinadas quando se
introduz o mercado financeiro: a taxa real de câmbio e a taxa de juros real.
Duas observações são necessárias. A primeira é que as decisões discricionárias - o nível
de investimentos, que depende da taxa de juro real, e a exportação líquida, isto é, o
saldo em conta corrente, que depende da taxa de câmbio real - estão ligadas por uma
identidade da contabilidade nacional: investimento = poupança privada + poupança do
governo - exportação líquida.
Um saldo positivo na conta corrente mostra que se exporta poupança; um saldo
negativo, que se está importando poupança. Como o investimento depende da taxa de
juro real, e o saldo em conta corrente da taxa de câmbio real, a identidade cria uma
relação entre elas.
A identidade é apenas consequência da coerência imposta pela contabilidade nacional.
Não tem nada a ver com qualquer relação de causalidade. Ela sempre se realiza pela
manobra das variáveis endógenas: as taxas de câmbio e de juro reais.
Ela não autoriza, portanto, a afirmação "que um saldo negativo em conta corrente
produzido pela valorização do câmbio real aumenta, necessariamente, o nível de
investimento", porque é contingente ao comportamento da poupança privada nacional
(renda menos consumo privado) e ao comportamento discricionário das contas públicas
(tributação líquida menos gastos do governo).
A segunda observação é que existe ampla sustentação empírica sugerindo que em
situações normais de pressão e temperatura, isto é, quando se verifica a condição
chamada de Marshall-Lerner entre as elasticidades da exportação e importação com
relação à taxa de câmbio real, sua desvalorização tende a reduzir, depois de algum
tempo, o déficit em conta corrente (a famosa "curva J", claramente visível em alguns
momentos no Brasil).
Uma desvalorização cambial tende a influir tanto na poupança como no investimento
privado, pelo aumento da produção causado pela expansão das exportações e a redução
das importações. O aumento do PIB pode, por sua vez, aumentar a poupança privada e
exercer um papel importante na poupança do governo, se o aumento da receita for
acompanhado por um controle da despesa pública.
Isso sugere que, provavelmente, o ajuste para satisfazer a identidade da contabilidade
nacional em resposta à redução do saldo em conta corrente (produzido pela
desvalorização da taxa de câmbio real) vai fazer-se por um aumento do investimento,
motivado pelo ajuste da taxa de juro real.
Não tenhamos ilusões: o regime de câmbio livremente flutuante é apenas exercício de
livro-texto, como mostraram na semana passada Draghi, François Hollande e Shinzo
Abe! O Brasil precisa de uma taxa de câmbio relativamente desvalorizada, pouco volátil
e imune ao excesso de ativismo que perturba as expectativas dos agentes. Ela não é
tudo, mas é um coadjuvante essencial da atual política econômica que estimula o
desenvolvimento.
Antonio Delfim Netto é professor emérito da FEA-USP, ex-ministro da Fazenda,
Agricultura e Planejamento.

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