terça-feira, 26 de março de 2013

O que quer o Brasil com o ProSavana?

Fátima Mello (*)
FASE, Brasil
Março de 2013


Os governos do Brasil, Japão e Moçambique estão iniciando a execução de um grande
programa no norte de Moçambique, no chamado Corredor de Nacala, região que possui
características físicas e ambientais muito similares ao Cerrado brasileiro. Apesar do
padrão vigente de falta de informação às comunidades que serão afetadas ou, muito pior,
da disseminação de informações distorcidas e contraditórias, o que se diz é que o
ProSavana tem um horizonte de duração de 30 anos, abrangerá uma área estimada em 14,5
milhões de hectares nas províncias de Nampula, Niassa e Zambezia, onde cerca de 5
milhões de camponeses vivem e produzem alimentos para o abastecimento local e regional.
As comunidades camponesas estão concentradas exatamente onde está prevista a chegada dos
investimentos do ProSavana.

Apesar da ABC (Agência Brasileira de Cooperação) insistir na tese de que as críticas em
curso decorrem de falhas de comunicação, o diálogo com organizações e movimentos sociais
parceiros em Moçambique evidencia que o problema é mais grave: o Brasil está exportando
para a savana moçambicana seus históricos conflitos entre o modelo de monoculturas em
larga escala do agronegócio voltadas para exportação e o sistema de produção de
alimentos de base familiar e camponesa. Em recente divulgação de informações sobre o
ProSavana em Maputo os responsáveis pelo programa apresentaram um mapa do Corredor de
Nacala dividido em áreas que serão destinadas a atração de investidores privados para
“culturas de alto valor” e “clusters agrícolas” para a produção de grãos (entre eles a
soja) pela agricultura “empresarial”,  produção familiar de alimentos pela “agricultura
familiar”, grãos e algodão pela “agricultura empresarial de média e grande escalas”,
caju e chá pela “agricultura empresarial média e familiar”, e a “produção integrada de
alimentos e grãos” por todas as categorias. Ou seja, a velha tese da convivência
possível e harmônica entre os sistemas de produção do grande agronegócio e da
agricultura familiar e camponesa, que no Brasil é fonte de intensos conflitos.

Enquanto os governos garantem que o programa trabalhará com a pequena produção camponesa
em Moçambique, em 2011 a ABC ajudou a organizar a viagem de um grupo de 40 empresários
da CNA (Confederação Nacional da Agricultura), da região do Cerrado, estado de Mato
Grosso, para identificarem oportunidades de negócios no Corredor de Nacala. O presidente
da Associação Mato-Grossence dos Produtores de Algodão (Ampa) afirmou que “Moçambique é
um Mato Grosso no meio da África, com terra de graça, sem tanto impedimento ambiental e
frete mais barato para a China” . São inúmeras as notícias de imprensa que falam de uma
reprodução em Moçambique do Prodecer, o desastre socioambiental implantado pela
cooperação japonesa no Cerrado brasileiro, que expulsou populações tradicionais de seus
territórios, abriu um oceano de monoculturas para exportação e inundou a região de
agrotóxicos.

Até agora se diz que o ProSavana terá 3 eixos: um de fortalecimento institucional e
pesquisa; um segundo de montagem de um estudo base para a elaboração do Plano Diretor (a
instituição escolhida para elaborar o estudo é a GV Agro); e um terceiro de extensão e
modelos onde afirma-se que MDA, Emater entre outros atuariam a favor das demandas da
sociedade civil de apoio aos pequenos produtores. Em resposta às demandas de entidades e
redes como UNAC, ORAM, ROSA, Plataforma de Organizações da Sociedade Civil de Nampula,
MUGED, Fórum Terra, União Provincial de Camponeses de Niassa, Justiça Ambiental entre
muitas outras por informações, acesso às versões do Plano Diretor em elaboração e que as
comunidades camponesas sejam consultadas, as autoridades brasileiras afirmam que o Plano
Diretor será divulgado da melhor forma possível quando estiver finalizado.  Ou seja, um
estudo com base na GV Agro está em elaboração sem que as entidades que representam os
milhões de camponeses que vivem na região sejam sequer consultadas. Apenas receberão a
informação quando o Plano Diretor estiver pronto. Eventos de lançamento de versões do
Plano Diretor são realizados, visando transmitir alguma informação, mas não para um
diálogo qualificado nem para colher demandas e propostas das organizações e movimentos
sociais. Conversando com camponeses ao longo do Corredor de Nacala fica claro que
brasileiros e japoneses estão indo às comunidades para avisar que o ProSavana está
chegando. Depois afirmarão que fizeram as chamadas consultas a sociedade civil. Isso que
estão fazendo não é consulta; até agora o que existe é um grave problema de metodologia
na definição dos conteúdos e dos interesses que serão atendidos pelo programa, que estão
sendo definidos de cima para baixo, pelos governos e empresas interessadas.

Percorrendo o Corredor de Nacala fica muito claro o que afirmam as organizações e
movimentos sociais de Moçambique: a região é toda povoada por comunidades camponesas,
que com seus sistemas de produção em pousio cultivam milho (o principal alimento do
país), mandioca, feijão, amendoim. Ali vivem, produzem, realizam suas festas,
desenvolvem em seus territórios relações familiares e comunitárias. Na região vivem
cerca de 5 milhões de camponeses. As entidades e movimentos que os representam
identificam a insegurança alimentar como um grande problema no país, e desejam que a
produção de alimentos realizada pelo sistema da agricultura familiar e camponesa seja
fortalecida. Suas propostas incluem crédito para o fortalecimento de sua produção, apoio
a comercialização e compra da produção por preço justo, apoio às associações de pequenos
produtores e entidades criadas pelas comunidades. Todos querem participar de programas
que apóiem seus sistemas de produção.  Depois de escutar e dialogar com eles ao longo do
Corredor e ver suas esperanças de que o ProSavana poderia ir ao encontro de suas
propostas, quando se chega a Nacala o choque é gritante: uma cidade tomada pela
construção de uma gigantesca infraestrutura de mega armazéns, portos (e um aeroporto
construído pela Odebrecht) para exportar a produção da região.

Muitos problemas precisam ser enfrentados. O direito dos camponeses a terra é o
principal. A Lei de Terras de Moçambique lhes dá o direito de uso da terra, que é
pública. O direito de uso será concedido ás empresas? Como ficará a situação dos
camponeses? Como diz um membro da Plataforma de Organizações da Sociedade Civil de
Nampula, do centro do Corredor até Nampula “não existe área com mais de 10 hectares de
terras desocupada”. Em Niassa as entidades afirmam que a província é toda povoada,
exceto nas montanhas, e que todo o Corredor onde está prevista a chegada do ProSavana é
a área mais habitada.  Os governos admitem que haverá reassentamentos. As entidades
estão vigilantes e mobilizadas para não permitirem mudanças contrárias aos interesses
dos camponeses na Lei de Terras e na legislação sobre sementes que corre o risco de ser
alterada para viabilizar o uso de transgênicos.  Estão preocupados com o modelo de
monocultivos em larga escala e intensivo em uso de agrotóxicos que conheceram quando
visitaram o estado do Mato Grosso e a área do Prodecer. Enquanto isso, realizam ações de
resistência produtiva e de fortalecimento de alternativas, como é o caso do intercâmbio
entre UNAC e MPA/Via Campesina sobre sementes nativas.

Há uma década por orientação do presidente Lula a política externa brasileira começou a
se abrir ao diálogo com organizações e movimentos sociais. Com isso se fortaleceu a
necessária disputa de rumos sobre a presença do Brasil no mundo, pois ela é o espelho da
correlação de forças existente em nossa sociedade. O caso do ProSavana é crucial para
que as conquistas dos movimentos sociais do campo brasileiro a favor da segurança e
soberania alimentar, traduzidas em programas de apoio a produção e comercialização da
produção familiar e camponesa, sejam refletidas na presença brasileira no Corredor de
Nacala. Afinal, é disso que os camponeses e pequenos produtores precisam, no Brasil e em
Moçambique, para se fortalecerem contra as injustiças sociais e ambientais e violações
de direitos cometidas pelo modelo do agronegócio, para garantirem o direito a terra, a
segurança e soberania alimentar da população. Que a presença do Brasil em Moçambique
fortaleça os direitos dos camponeses, e que assim o Brasil seja capaz de demonstrar na
prática que sua crescente presença como ator global visa de fato reduzir as
desigualdades e fazer justiça.


(*) Agradecimentos a UNAC, ORAM e Oxfam Internacional no Brasil e Moçambique.


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