terça-feira, 23 de abril de 2013

Carta à Dilma anuncia o descobrimento de Brasília


Leitura Crítica
pec melhor fotoPor José Ribamar Bessa Freire.
À Dilma Rousseff, Presidenta da República
Senhora,
Posto que os caciques e outros dos nossos não encontraram Vossa Excelência no Palácio do Planalto quando ali foram pessoalmente dar-lhe notícia do achamento desta terra nova, não deixarei eu de contar-lhe como melhor puder, ainda que para o bem contar e falar seja eu o pior de todos indicado. Tome, porém, minha ignorância por boa vontade e creia por certo que, para aformosear ou afear, não escreverei aqui mais do que aquilo que me pareceu e o que vi nos telejornais, na mídia e nas redes sociais.
Senhora, há cinco séculos, o escrivão da frota Pero Vaz de Caminha, em carta ao rei de Portugal, D. Manuel, o Venturoso, noticiou que portugueses, navegando em caravelas, “descobriram” o Brasil em 22 de abril de 1500 e “foram recebidos com muito prazer e festa” pelos habitantes locais, “muitos deles dançando e folgando, uns diante dos outros”. O escrivão descreveu como viviam os nativos, sua aparência física e os adornos que portavam.
Cinco séculos depois, autonomeado que fui escrivão dos povos originários, escrevo na primeira pessoa do plural para informar-lhe que provenientes de diferentes regiões do Brasil, nós, 600 índios de 73 etnias, transportados por ônibus, desembarcamos na Câmara dos Deputados, em 16 de abril de 2013 e “descobrimos” Brasília, uma terra em que se mamando, tudo dá.
Não recebemos, porém, tratamento festivo, embora buscássemos contato pacífico com a tribo local dos deputados, formada exclusivamente por caciques que não caçam, não pescam, não plantam, mas comem em excesso. Glutões, seus hábitos alimentares e sua ociosidade fazem com que acumulem gordura no abdômen. São gordos, roliços e enxundiosos, com barriga flácida e proeminente. Apesar do intenso calor, cobrem suas vergonhas com tecidos quase sempre escuros, usam tira de pano apertada no pescoço e escondem o chulé dentro de mini-canoa de couro, uma em cada pé.
Brado retumbante
Eles acham que tal aparência lhes dá respeitabilidade. Têm a cabeça raspada até por cima das orelhas. Quem não é careca usa nos cabelos tintura castanho-avermelhada de acaju ou tinta preta como as penas do jacamim, o que lhes dá um brilho metálico e, aos nossos olhos, uma aparência decrépita. Acontece que um deles, Francisco Escórcio Lima (PMDB/MA vixe, vixe) registrou nossa chegada não como “descobrimento”, mas como “invasão”. As imagens da TV Câmara gravaram seu brado retumbante:
- “Os índios estão ali forçando para invadir o plenário. É uma situação em que todo mundo está com medo” – gritava da tribuna, ofegante, Chiquinho Escórcio, pálido, encagaçado, se borrando todo, semeando o pânico.
E olhe, Senhora, que a situação devia estar mesmo periquitomena, pois Chiquinho Escórcio, um empresário de 65 anos, ex-PFL e ex-PP (vixe²), é um parlamentar aguerrido que não foge do pau. Ele está acostumado, no pequeno expediente, a fazer discursos eloquentes sobre temas de transcendental importância para os destinos do país, conforme as atas da Câmara, que registram tudo com palavras desenhadas no papel, já que aqueles oradores têm o pensamento cheio de esquecimento.
Consultamos o penúltimo discurso (27/04/2013), quando Chiquinho demonstrou coragem desassombrada e usou sua convincente oratória para anunciar ao Brasil e quiçá ao mundo a presença naquele momento, no plenário, da prefeita do município de Chapadinha (MA), Ducilene Belezinha. Foi um discurso epistemologicamente inesquecível.
Mas não ficou aí. Foi muito mais longe. O site da Câmara reproduz discurso anterior (05/11/2012) no qual, sem medo à represália, Chiquinho demonstra insatisfação com o desempenho do Vasco da Gama no Campeonato Brasileiro de Futebol. Ele, que sempre jogou no campo dos louvaminheiros de qualquer base governista, mostra que é capaz, se preciso for, de uma postura abertamente oposicionista. Copiamos da página dele no site da Câmara um breve trecho da sua fala esclarecedora e patriótica:
“O SR. FRANCISCO ESCÓRCIO (PMDB-MA. Sem revisão do orador): – O que está havendo com o nosso Vasco da Gama, Deputado Onofre? Nós temos que ajeitar isso. Não é possível! Temos que chamar Roberto Dinamite aqui e perguntar: “Roberto, o que está acontecendo?” Depois que lhe fizemos aquela homenagem toda, o Vasco da Gama caiu pelas tabelas. Vamos dar uma ajeitada naquele time, porque é o time de coração de quase todos nós que somos brasileiros”.
Senhora, juramos que não estamos a inventar, queremos ver nossa mãe mortinha no inferno se mentimos. Nem sabemos quem é Onofre, nem Ducilene Belezinha no jogo do bicho. Sabemos que torcedores invejosos do Flamengo são incapazes de avaliar a relevância de tal discurso, assim como não dimensionam o valor de outra peça de oratória de Chiquinho em homenagem ao Dia do Dentista (22/10/2012). A retórica dele mataria de inveja o padre Antônio Vieira.
Vale a pena pagar um salário de deputado ao Chiquinho, um puta orador, cujo verbo inflamado está a serviço das grandes causas. São discursos históricos que deveriam ser impressos em cartilhas e ensinados nas escolas. Por isso, Chiquinho está cheio de comendas: medalhas da Câmara Municipal de Chapadinha, da Ordem dos Timbiras e do Mérito Sarney “for important services rendered to the Brazilian people”, conforme anunciou o The Chapadinha Times, que destaca a contribuição por ele dada ao conceito de heroicidade.
Se gritar pega deputado
Quando nós, índios, entramos no plenário, o discurso de Chiquinho provocou debandada geral, corre-corre, fuga em massa, como quando os apaches, nos filmes americanos, atacam a cavalaria. Bastou gritar “pega deputado”, não ficou um, meu irmão! Foi um Deus-nos-acuda, um pega-pra-capar, um barata-voa, que não foi sequer dificultado pela pança untuosa e obscena dos fugitivos. As imagens da TV Câmara correram mundo e nos foram enviadas por uma amiga equatoriana lá de Quito, sugerindo que escrevêssemos esta carta.
Nós, índios, que descobrimos Brasília, desarmados, portando apenas maracás, queríamos tão somente solicitar ao presidente da Câmara, Henrique Alves (PMDB/RN, vixe vixe) a não instalação da comissão que pretende travar, no Congresso, a demarcação das terras indígenas através da proposta de emenda constitucional. Temos consciência de que não podemos disputar com temas de vital importância como a crise do Vasco da Gama ou o desfile heróico da Ducilene Belezinha.
No entanto, como não existe nenhum índio deputado, nós fomos lá exercer democraticamente um direito de pressão. Com um cocar azul, uma das nossas, Sônia Guajajara, exigiu a revogação da proposta de emenda constitucional:
- “Nós, povos indígenas, não vamos permitir que uma minoria da sociedade brasileira – esses ruralistas e grandes empresários – seja maior do que nossos territórios. Vamos lutar até o fim” – disse Sônia.
Com o auxílio de um tradutor, Raoni Metuktire, líder caiapó, soltou o verbo: “Nunca vou aceitar desmatamento nas terras indígena, nunca vou aceitar a construção de usina na área indígena, nunca vou aceitar mineração dentro de nossas terras”.
Obtivemos êxito momentâneo: a medida foi suspensa por seis meses. Resta perguntar: de quem fugiam os deputados?
- “Na correria, alguns parlamentares tinham mais medo de suas consciências do que dos manifestantes “armados” com penas e maracás” – escreveu a nossa ex-senadora Marina Silva, que presenciou as “cenas cômicas e tristes” e a reação à “invasão” indígena. Depois que os trabalhos foram suspensos, o deputado Alberto Lupion (DEM/PR – vixe²), agropecuarista e empresário, denunciou à TV Câmara:
- Nunca vi um desrespeito à democracia como vi hoje.
Embora tenha 61 anos, o deputado Lupion parece não ter visto o golpe militar de 1964, nem tomado conhecimento das torturas e assassinatos cometidos durante vinte anos no Brasil. Fundador e presidente da UDR no Paraná, em 1987, condecorado pelas Polícias Militares de vários estados como Alagoas, Rio de Janeiro e Brasília, Lupion encara como legítimo o lobby do agronegócio, mas considera “desrespeito à democracia” pressões pacíficas de índios e trabalhadores rurais. Ignora que – a frase não é nossa – “todos brasileiros têm sangue índio. Os pobres, nas veias; os ricos, nas mãos”.
Senhora, posto que a Certidão de Nascimento do Brasil, que foi a carta de Caminha, termina solicitando a transferência do genro do autor da Ilha de São Tomé, queremos reafirmar esse lado sarney do caráter nacional. Assim, comunicamos que um sobrinho nosso conhecido pela alcunha de Pão Molhado trabalha como analista do Seguro Social na Agência da Previdência Social de Maués (AM). O filho dele, de três aninhos, o Biscoitinho Molhado, vive em Manaus, longe do pai, de cuja atenção carece. Peço, portanto, a V. Exa., que desloque o Pão Molhado para Manaus.
E se alonguei essa carta, me perdoe, porque o desejo que tinha de vos dizer tudo, me fez por assim pelo miúdo.
Embora o Governo Dilma tenha sido implacável com os índios, engavetando processos de demarcação para agradar a bancada ruralista, beijamos as mãos de Vossa Excelência na esperança de que elas assinem documentos que garantam o usufruto de nossas terras como manda a Constituição. Do contrário, advertimos que já descobrimos Brasília e o Palácio do Planalto. O referido é verdade e dou fé. Assinado: Taquiprati Vais No Caminho, autonomeado escrivão dos índios.
Fonte: Taqui Pra Ti.

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