sábado, 27 de julho de 2013

A queda do trabalhador norte-americano


Vídeo documentário em cartaz nos EUA segue a vida de duas famílias de Milwaukee: os Stanley e os Neumann — a primeira, negra; a segunda, branca — durante as últimas duas décadas, começando em 1991. Ambos são oriundos de uma sólida classe trabalhadora, e seus destinos têm resultados familiares. Ambas começaram a afundar quando escassearam os postos de trabalho sindicalizados. Por George Packer
Data: 25/07/2013
Há um momento em ‘Someplace Like America’, documentário de Dale Maharidge e Michael S. Williamson, sobre as últimas três décadas da baixa mobilidade norte-americana, no qual Maharidge decide espontaneamente telefonar a Charles Murray. É próximo do ano 2000, a reforma do Estado do Bem-estar já está nos livros, e Maharidge quer saber o que Murray, autor de ‘Losing Ground’ e o crítico mais duro do estado do Bem-estar tem a dizer sobre o fenômeno dos trabalhadores pobres: norte-americanos que têm emprego, mas que, assim mesmo, não alcançam o fim do mês.

“Dê-me um exemplo”, diz Murray. Maharidge começa a descrever uma mulher chamada Maggie Segura, empregada do estado de Texas, que conheceu Maharidge, junto à sua filha, em um banco de alimentos. “É mãe solteira?” indaga Murray. Culpada da acusação. Maggie Segura não deveria ter tido uma filha com o homem errado: ponto para Murray. Pede outro exemplo e Maharidge lhe descreve uma família intacta: três filhos, mãe e pai, Obie, que trabalha como porteiro, mas tem que vender seu plasma sanguíneo para que chegue ali aonde não chega o orçamento familiar. Murray mantém-se imutável. “Quê glória falta a uma família trabalhadora? O cara ganha dez dólares, a mulher trabalha em tempo parcial. Têm três crianças. Teríamos que nos sentir mal?” Murray faz alguns cálculos rapidamente. “Se fosse necessário, poderia dar um jeito para viver com 550 dólares semanais tendo três filhos. Provavelmente não viveria em Austin. Iria a algum outro lugar que fosse suficientemente mais barato. E tomaria algumas decisões”.

Outro ponto para Murray. Sejam quais forem as histórias que Maharidge conta provenientes de todo o país, Murray as liquida com seu revés. Pode ficar com todos os pontos quando tua teoria social diz que a única gente pobre dos Estados Unidos — sobretudo no auge dos anos 90, quando “a trajetória geral é de ascender e crescer. Podendo ganhar decentemente a vida sem que tenha que ajudar-te o governo” — são aqueles que não merecem receber ajuda. Maggie Segura teve uma filha com o homem equivocado. Obie deveria ter se mudado, com a família, para Appalachia. Todos são inoportunos?

Lembrei-me dessa cena de ‘Someplace Like America’ enquanto via um novo documentário, ‘Two American Families’, transmitido na série “Frontline” da PBS [Public Broadcasting System, a televisão “pública” norte-americana”]. O filme, produzido por Tom Casciato e Kathleen Hughes (meus amigos), e narrada por Bill Moyers, segue a vida de duas famílias de Milwaukee: os Stanley e os Neumann — a primeira, negra; a segunda, branca — durante as últimas duas décadas, começando em 1991. Ambos são oriundos de uma sólida classe trabalhadora, e seus destinos têm resultados familiares. Jackie Stanley e Tony Neumann tinham seus empregos na indústria, Tony Neumann na gigantesca fabricante de motores Briggs & Strattom, enquanto Claude (Jack ou Claude?) Stanley trabalhava para A. O. Smith, fabricante líder em chassis. Todos seus postos de trabalho eram sindicalizados, e todos desapareceram por volta de 1990, conforme a indústria foi se descentralizado no estrangeiro.

Foi então quando conhecemos os Stanley e os Neumann, justamente à medida que ambas as famílias começavam a afundar. No único trabalho que esses homens puderam encontrar, recebiam a metade do salário da fábrica, sem benefícios: Claude impermeabiliza porões, Tony recicla e /é operário no turno da noite de uma indústria ligeira. Jackie Stanley passa a vender imóveis; Terry Neumann entra em um programa de venda de cosméticos, e depois passa a dirigir uma empilhadeira. Carecendo de sindicatos que os apoiem, estão todos a mercê de patrões indiferentes e dos severos caprichos da economia pós-industrial.

Os filhos dos Stanley aceitam trabalhos estranhos para ajudar seus pais. Os filhos dos Neumann começam a debater-se na escola conforme a vida profissional de seus pais vai deixando um vazio em casa. As horas no trabalho nunca são suficientes, também não são suficientes as horas juntos, em casa, nem os dólares para pagar as despesas. Evaporam-se as férias; as crises de saúde se convertem em desastres. O filho maior dos Stanley começa a freqüentar a universidade em Alabama State graças a um cartão de crédito. Nenhuma das duas famílias consegue voltar para onde estavam antes do inicio de seu deslize econômico, um deslize que coincidiu com o auge desses anos 90.

Este resumo faz uma pequena justiça a ‘Two American Families’, que ganhará seu lugar entre os documentos centrais de nosso tempo. Todos sabem qual é o cerne da história, mas sua força reside naquilo que não sabíamos, nos detalhes dessas vidas norte-americanas: Tony Neumann tratando de conter as lágrimas na missa dominical, o endurecimento das feições? de Terry Neumann enquanto dá de comer a uma criança gravemente deficiente que está a seu cuidado, a sensação de fracasso de Jackie Stanley, o riso impávido de Claude Stanley ainda que seus olhos lancem chispas de ira. A família branca se rompe; a família negra permanece unida. Terry Neumann perde sua casa, vendida por J.P. Morgan Chase por uma parte da quantia que ela devia. Dos somados oito filhos entre as duas famílias, só Keith Stanley consegue uma carreira universitária de quatro anos e, com ela, um bom trabalho no setor público. Os demais filhos sobrevivem com diversos graus de dependência de seus pais; alguns, cedo demais, se convertem, eles mesmos, em pais.

Ao projetar “Two American Families” Charis Murray e outros críticos sociais que acreditam que o declínio da classe trabalhadora norte-americana se origina da falência dos valores morais, do capital social, da responsabilidade pessoal e da autoridade tradicional; provavelmente seriam capazes de encontrar a evidência que falta para /blindar-se da dor que há no âmago do filme. Nenhum dos quatro pais terminou a universidade. O divórcio dos Neumann deixa Terry e seus filhos em uma situação pior do que nunca. Os Stanley não mudaram-se ao campo, em Mississippi, onde a vida é mais barata. Os filhos cometem muitos erros por conta própria. A nenhum deles ocorre inventar Napster. Os Stanley e os Neumann são castigados com toda a intensidade das leis econômicas a cada erro que cometem e por todos os erros que não cometeram.

Mas a resposta intelectualmente honesta para esse filme é muito menos reconfortante, pois a constrangedora impressão causada por 'Two American Families' não é a dos erros, mas a de uma feroz perseverança: o quão duro trabalham os Stanley e Neumann, até que ponto acreditam em seguir as regras, quão forte teve que tornar-se Terry Neumann. Ambas as famílias recorrem devotamente à igreja. A ajuda governamental lhes parece alheia e odiosa. Keith Stanley diz: “Não sei o que são as drogas ou o álcool, inclusive”. Em palavras de Tammy Thomas, cuja história, parecida, se conta em meu novo livro, The Unwinding: An Inner History of the New America, essas pessoas fazem o que acreditam ter que fazer. Têm que navegar por conta própria nessa impiedosa economia. E não fazem mais que afundar uma e outra vez.

No domingo o New York Times informou que o salário dos executivos em 2012 aumentou em 16%, e o pacote médio de compensação está agora em 15,1 milhões. As bendições na cúpula são mais frutíferas a cada ano que passa, sejam maus ou bons os tempos. Deve haver uma teoria social ou econômica que explique por que tudo isso é necessário e justo.

George Packer pertence à redação do The New Yorker desde 2003 e fez a cobertura da guerra do Iraque para a revista, o que frutificou no livro The Assassin´s Gate: America in Iraq, distinto com vários prêmios. Sua experiência jornalística na África, de Serra Leoa e Costa do Marfim a Lagos, lhe serviu para escrever The Village of Waiting. Também colaborou com numerosos artigos, ensaios e resenhas sobre assuntos internacionais, política norte-americana e literatura para o New York Times Magazine, e em publicações progressistas como Dissent, Mother Jones, Harper’s. Também foi professor em Harvard, Bennington e Columbia.

Tradução: Liborio Júnior

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