quinta-feira, 25 de julho de 2013

Carta ao Papa

Caro Francisco, permita-me essa intimidade. Me sinto autorizado a não chamá-lo de Sua Santidade não apenas porque não acredito em santos, mas, sobretudo, porque sua informalidade parece sincera. Data: 23/07/2013
Pois o papa é antes de tudo feito da mesma papa que nós (Apparício Torelly, o Barão de Itararé, admitindo a chamada infalibilidade do papa apenas em matéria de fé)

Caro Francisco,


Permita-me essa intimidade. Me sinto autorizado a não chamá-lo de Sua Santidade não apenas porque não acredito em santos, mas, sobretudo, porque sua informalidade parece sincera. Sou apenas um cidadão carioca em vias de ser sitiado por um aparato de segurança que me impedirá de exercer o direito constitucional de ir e vir. Durante dois dias, enquanto você estiver protegido pelo exército e pela polícia, nós, em Copacabana, ficaremos presos. Este, creia, é um exemplo de como a cidade trata bem seus visitantes ilustres e não usa a mesma régua quando o alvo é o cidadão comum. Quem dera tivéssemos sempre a segurança que lhe providenciaram ! Quem dera pudéssemos usar o hospital cinco estrelas em estado de alerta para atendê-lo em caso de emergência ! Quem dera pudéssemos circular sem enfrentar engarrafamentos e em veículos de boa qualidade ! Sinta-se um privilegiado. Depois de sua volta ao Vaticano, retornamos à rotina de segunda classe.

Sua visita levanta algumas questões interessantes. Uma delas é o uso de recursos públicos para custear eventos privados. O Brasil é campeão nesse quesito. Políticos usam aviões da FAB para voos particulares. Estádios são construídos com recursos públicos para, em seguida, serem privatizados e concorrerem para a concentração de riqueza. Alega-se que parte do custeio de sua viagem com o dinheiro de todos os contribuintes brasileiros é justificada por se tratar de uma visita de chefe de Estado. Meia verdade, convenhamos. No Vaticano, Estado e religião se confundem. Sua presença no Brasil tem caráter eminentemente doutrinário. Fosse diferente, a estadia seria em Brasília, cercado pelos burocratas do Planalto. Os cerca de R$ 120 milhões que governo federal, estados e municípios gastarão para garantir seu conforto facilitarão o que presumo ser a missão em curso: reunir os fiéis, elevar a moral dos católicos num momento em que seu número cai rapidamente no maior país católico do mundo, acenar com mudanças depois de escândalos de pedofilia e corrupção nas finanças vaticanas. Isso, entretanto, é uma agenda absolutamente privada, restrita a uma parcela cada vez menor da população brasileira. É sempre útil lembrar, prezado Francisco, que as Jornadas da Juventude em Madri foram acompanhadas por grandes manifestações de massa, reunindo grupos não católicos e católicos, num grande protesto contra a indevida mistura do público com o privado. A Espanha, como o Brasil, são, ao menos formalmente, repúblicas seculares. Como justificar, em tais circunstâncias, a boca livre que o governador do Rio promove hoje, dia de sua chegada, pela módica quantia de R$ 850 mil ? Não me atenho ao valor, que não é pequeno num estado em que a educação e a saúde públicas vivem em colapso, mas à quebra de um princípio que garante a separação da religião do Estado. Será que você tem conhecimento disso ?

Li que, hoje, ateus do Rio, São Paulo, Porto Alegre, Belo Horizonte e Ribeirão Preto farão uma cerimônia coletiva de “desbatismo”. O objetivo é chamar a atenção para alguns temas como o ensino religioso em escolas públicas e a colocação de símbolos religiosos em órgãos oficiais (crucifixos em sala do poder Judiciário são o caso mais flagrante). Esta invasão é defendida pelo alto escalão do clero, mas constitui uma afronta ao Estado laico.

Você é uma pessoa simples, dizem. Torço para que seja verdade. Além de simples, suponho que seja bem informado. Talvez já tenha ouvido falar da ostentação da burguesia brasileira e dos que babam com seus hábitos. Viu que maravilha foi a grande delegação brasileira na sua posse, hospedada em Roma num hotel de luxo, como se o Brasil pudesse esbanjar seus escassos recursos ? Quem sabe chegou aos seus ouvidos o casamento monárquico de duas famílias proprietárias de empresas de transporte no Rio e no Ceará ? O setor é uma das grandes caixas pretas do país e fonte de corrupção política. Gastaram R$ 3 milhões numa noitada. A rua carioca berrou na porta do casório e um dos convivas, arrogante, jogou uma nota de R$ 20 para os manifestantes. Nossa polícia, que não tem classe mas é de classe, tomou o partido que sempre toma: o dos poderosos. O que pensa a sua Igreja do fosso que coloca ricos e pobres em planetas distintos ? E de governantes que se aproveitam da “liturgia do cargo” para viverem como nababos, sustentados por impostos massacrantes e que não retornam à população na forma de bons serviços ?

O Brasil, governado para garantir o sossego e a vitalidade do capital, leva a sério a mercantilização de tudo. Inclusive da fé. As várias facções evangélicas vivem disputando mercado e o nível de organização equivale ao de grandes empresas. Recentemente, as Organizações Globo promoveram a Feira Internacional Cristã, com o objetivo de consolidar a penetração no chamado segmento gospel. Ali se vendiam não apenas produtos como livros e roupas, mas uma imagem pasteurizada que permitirá bons negócios. “Aqui não tem negócio de amiguinho, é business, um mercado de 50 milhões de pessoas. Eles são uma empresa, estão de olho nisso”, declarou o pastor Silas Malafaia, agressivo intelectual orgânico do conservadorismo neopentecostal e difusor da Teologia da Prosperidade, que vê na riqueza um objetivo consagrado por textos bíblicos. A coisa chegou a tal ponto, que um anúncio classificado, publicado em jornal de Brasília, convida pessoas para serem sócias de uma Igreja. Contatado por um repórter, o anunciante garantiu que oferecia “um grande negócio”. Para ele, uma sala, algumas cadeiras e um bom hipnotizador seriam uma usina de gerar dinheiro. “Não tem limite. É muita grana. Dois milhões. Dez milhões. Ou até mais. O negócio é um rio correndo para o mar”, concluiu o candidato a empresário da fé. Precisa falar mais ?


Já está comprovado que a liderança do papa não é suficiente para que os fiéis acompanhem as resoluções e os dogmas do catolicismo. Isso é especialmente verdadeiro em questões comportamentais e de gênero. Há um visível descompasso entre uma visão congelada, arcaica, das relações humanas e o cotidiano dos povos. Criticar o uso de preservativos quando a epidemia de AIDS se alastrava pelo planeta, não foi uma atitude piedosa. Oferecer a castidade como solução soou como prescrever sangria depois da descoberta dos antibióticos. Trabalhar contra as pesquisas com células-tronco simboliza a mesma sombra negra que assassinou Giordano Bruno e condenou Galileu. Insistir na sacralidade do casamento, mesmo quando a relação se esgarça e vira tortura compartilhada, agride o bom senso mais elementar. O machismo indisfarçável, comum a outras religiões, não acompanhou o que aconteceu ao longo do século vinte e neste princípio de vinte e um: a revolução feminina. Será que você pretende mexer neste vespeiro eclesial ?

Bem, está na hora de reforçar a despensa com alguns sacos de milho para pipoca, alugar DVDs (sou mastodôntico: não sei “baixar” filmes e músicas da internet) e me preparar para diminuir o déficit crônico de leituras. Ah, umas rolhas ou equivalentes virão a calhar. Jovenzinhos animados andam cantando alto nas vizinhanças, atrapalhando o sono. Aproveite bem minha cidade, Francisco. Eu me recolho, em silêncio obsequioso – mas forçado, esperando que sua apreciável capacidade de mobilizar tanta gente não frustre aqueles que não pertencem ao seu rebanho. Ao menos, dê-nos alguma esperança de que as catedrais se movem.
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