O que segue não são reflexões sobre
todas as manifestações ocorridas no país, mas focalizam principalmente
as ocorridas na cidade de São Paulo, embora algumas palavras de ordem e
algumas atitudes tenham sido comuns às manifestações de outras cidades
(a forma da convocação, a questão da tarifa do transporte coletivo como
ponto de partida, a desconfiança com relação à institucionalidade
política como ponto de chegada), bem como o tratamento dado a elas pelos
meios de comunicação (condenação inicial e celebração final, com
criminalização dos “vândalos”), permitam algumas considerações mais
gerais a título de conclusão.
O estopim das manifestações paulistanas
foi o aumento da tarifa do transporte público e a ação contestatória da
esquerda com o Movimento Passe Livre (MPL), cuja existência data de 2005
e é composto por militantes de partidos de esquerda. Em sua
reivindicação específica, o movimento foi vitorioso sob dois aspectos.
Conseguiu a redução da tarifa e definiu a questão do transporte público
no plano dos direitos dos cidadãos, e portanto afirmou o núcleo da
prática democrática, qual seja, a criação e defesa de direitos por
intermédio da explicitação (e não do ocultamento) dos conflitos sociais e
políticos.
O inferno urbano
Não foram poucos os que, pelos meios de
comunicação, exprimiram sua perplexidade diante das manifestações de
junho de 2013: de onde vieram e por que vieram se os grandes problemas
que sempre atormentaram o país (desemprego, inflação, violência urbana e
no campo) estão com soluções bem encaminhadas e reina a estabilidade
política? As perguntas são justas, mas a perplexidade, não, desde que
voltemos nosso olhar para um ponto que foi sempre o foco dos movimentos
populares: a situação da vida urbana nas grandes metrópoles brasileiras.
Quais os traços mais marcantes da cidade
de São Paulo nos últimos anos e, sob certos aspectos, extensíveis às
demais cidades? Resumidamente, podemos dizer que são os seguintes:
- explosão do uso do automóvel
individual. A mobilidade urbana se tornou quase impossível, ao mesmo
tempo em que a cidade se estrutura com um sistema viário destinado aos
carros individuais em detrimento do transporte coletivo, mas nem mesmo
esse sistema é capaz de resolver o problema;
- explosão imobiliária com os grandes
condomínios (verticais e horizontais) e shopping centers, que produzem
uma densidade demográfica praticamente incontrolável, além de não contar
com redes de água, eletricidade e esgoto, os problemas sendo evidentes,
por exemplo, na ocasião de chuvas;
- aumento da exclusão social e da
desigualdade com a expulsão dos moradores das regiões favorecidas pelas
grandes especulações imobiliárias e a consequente expansão das
periferias carentes e de sua crescente distância com relação aos locais
de trabalho, educação e serviços de saúde. (No caso de São Paulo, como
aponta Ermínia Maricato, deu-se a ocupação das regiões de mananciais,
pondo em risco a saúde de toda a população; em resumo: degradação da
vida cotidiana das camadas mais pobres da cidade);
- o transporte coletivo indecente,
indigno e mortífero. No caso de São Paulo, sabe-se que o programa do
metrô previa a entrega de 450 quilômetros de vias até 1990; de fato, até
2013, o governo estadual apresenta 90 quilômetros. Além disso, a frota
de trens metroviários não foi ampliada, está envelhecida e mal
conservada; à insuficiência quantitativa para atender à demanda,
somam-se atrasos constantes por quebra de trens e dos instrumentos de
controle das operações. O mesmo pode ser dito dos trens da CPTM, também
de responsabilidade do governo estadual. No caso do transporte por
ônibus, sob responsabilidade municipal, um cartel domina completamente o
setor sem prestar contas a ninguém: os ônibus são feitos com
carrocerias destinadas a caminhões, portanto feitos para transportar
coisas, e não pessoas; as frotas estão envelhecidas e quantitativamente
defasadas com relação às necessidades da população, sobretudo as das
periferias da cidade; as linhas são extremamente longas porque isso as
torna mais lucrativas, de maneira que os passageiros são obrigados a
trajetos absurdos, gastando horas para ir ao trabalho, às escolas, aos
serviços de saúde e voltar para casa; não há linhas conectando pontos do
centro da cidade nem linhas interbairros, de modo que o uso do
automóvel individual se torna quase inevitável para trajetos menores.
Em resumo: definidas e orientadas pelos
imperativos dos interesses privados, as montadoras de veículos,
empreiteiras da construção civil e empresas de transporte coletivo
dominam a cidade sem assumir nenhuma responsabilidade pública, impondo o
que chamo de inferno urbano.
A tradição paulistana de lutas
Recordando: a cidade de São Paulo (como
várias das grandes cidades brasileiras) tem uma tradição histórica de
revoltas populares contra as péssimas condições do transporte coletivo,
isto é, a tradição do quebra-quebra quando, desesperados e enfurecidos,
os cidadãos quebram e incendeiam ônibus e trens (à maneira do que faziam
os operários no início da Segunda Revolução Industrial, quando usavam
os tamancos de madeira – em francês, os sabots, donde a palavra francesa
sabotage, sabotagem – para quebrar as máquinas). Entretanto, não foi
esse o caminho tomado pelas manifestações atuais e valeria a pena
indagar por quê. Talvez porque, vindo da esquerda, o MPL politiza
explicitamente a contestação, em vez de politizá-la simbolicamente, como
faz o quebra-quebra.
Recordando: nas décadas de 1970 a 1990,
as organizações de classe (sindicatos, associações, entidades) e os
movimentos sociais e populares tiveram um papel político decisivo na
implantação da democracia no Brasil pelos seguintes motivos: introdução
da ideia de direitos sociais, econômicos e culturais para além dos
direitos civis liberais; afirmação da capacidade auto-organizativa da
sociedade; introdução da prática da democracia participativa como
condição da democracia representativa a ser efetivada pelos partidos
políticos. Numa palavra: sindicatos, associações, entidades, movimentos
sociais e movimentos populares eram políticos, valorizavam a política,
propunham mudanças políticas e rumaram para a criação de partidos
políticos como mediadores institucionais de suas demandas.
Isso quase desapareceu da cena histórica como efeito do neoliberalismo, que produziu:
- fragmentação, terceirização e
precarização do trabalho (tanto industrial como de serviços),
dispersando a classe trabalhadora, que se vê diante do risco da perda de
seus referenciais de identidade e de luta;
- refluxo dos movimentos sociais e
populares e sua substituição pelas ONGs, cuja lógica é distinta daquela
que rege os movimentos sociais;
- surgimento de uma nova classe
trabalhadora heterogênea, fragmentada, ainda desorganizada que, por
isso, ainda não tem suas próprias formas de luta e não se apresenta no
espaço público e, por isso mesmo, é atraída e devorada por ideologias
individualistas como a “teologia da prosperidade” (do pentecostalismo) e
a ideologia do “empreendedorismo” (da classe média), que estimulam a
competição, o isolamento e o conflito interpessoal, quebrando formas
anteriores de sociabilidade solidária e de luta coletiva.
Erguendo-se contra os efeitos do inferno
urbano, as manifestações guardaram da tradição dos movimentos sociais e
populares a organização horizontal, sem distinção hierárquica entre
dirigentes e dirigidos. Mas, diversamente dos movimentos sociais e
populares, tiveram uma forma de convocação que as transformou num
movimento de massa, com milhares de manifestantes nas ruas.
O pensamento mágico
A convocação foi feita por meio das
redes sociais. Apesar da celebração desse tipo de convocação, que
derruba o monopólio dos meios de comunicação de massa, é preciso
mencionar alguns problemas postos pelo uso dessas redes, que possui
algumas características que o aproximam dos procedimentos da mídia:
- é indiferenciado: poderia ser para um
show da Madonna, para uma maratona esportiva etc., e calhou ser por
causa da tarifa do transporte público;
- tem a forma de um evento, ou seja, é
pontual, sem passado, sem futuro e sem saldo organizativo porque, embora
tenha partido de um movimento social (o MPL), à medida que cresceu
passou à recusa gradativa da estrutura de um movimento social para se
tornar um espetáculo de massa. (Dois exemplos confirmam isso: a ocupação
de Wall Street pelos jovens de Nova York, que, antes de se dissolver,
tornou-se um ponto de atração turística para os que visitavam a cidade; e
o caso do Egito, mais triste, pois, com o fato de as manifestações
permanecerem como eventos e não se tornarem uma forma de
auto-organização política da sociedade, deram ocasião para que os
poderes existentes passassem de uma ditadura para outra);
- assume gradativamente uma dimensão
mágica, cuja origem se encontra na natureza do próprio instrumento
tecnológico empregado, pois este opera magicamente, uma vez que os
usuários são, exatamente, usuários, e portanto não possuem o controle
técnico e econômico do instrumento que usam – ou seja, desse ponto de
vista, encontram-se na mesma situação que os receptores dos meios de
comunicação de massa. A dimensão é mágica porque, assim como basta
apertar um botão para tudo aparecer, assim também se acredita que basta
querer para fazer acontecer. Ora, além da ausência de controle real
sobre o instrumento, a magia repõe um dos recursos mais profundos da
sociedade de consumo difundida pelos meios de comunicação, qual seja, a
ideia de satisfação imediata do desejo, sem qualquer mediação;
- a recusa das mediações institucionais
indica que estamos diante de uma ação própria da sociedade de massa,
portanto indiferente à determinação de classe social; ou seja, no caso
presente, ao se apresentar como uma ação da juventude, o movimento
assume a aparência de que o universo dos manifestantes é homogêneo ou de
massa, ainda que, efetivamente, seja heterogêneo do ponto de vista
econômico, social e político, bastando lembrar que as manifestações das
periferias não foram apenas de “juventude” nem de classe média, mas de
jovens, adultos, crianças e idosos da classe trabalhadora.
No ponto de chegada, as manifestações
introduziram o tema da corrupção política e a recusa dos partidos
políticos. Sabemos que o MPL é constituído por militantes de vários
partidos de esquerda e, para assegurar a unidade do movimento, evitou a
referência aos partidos de origem. Por isso foi às ruas sem definir-se
como expressão de partidos políticos, e em São Paulo, quando, na
comemoração da vitória, os militantes partidários compareceram às ruas
foram execrados, espancados e expulsos como oportunistas – sofreram
repressão violenta por parte da massa.
A crítica às instituições políticas não é infundada, possui base concreta:
- no plano conjuntural: o inferno urbano é, efetivamente, responsabilidade dos partidos políticos governantes;
- no plano estrutural: no Brasil,
sociedade autoritária e excludente, os partidos políticos tendem a ser
clubes privados de oligarquias locais, que usam o público para seus
interesses privados; a qualidade dos Legislativos nos três níveis é a
mais baixa possível e a corrupção é estrutural; como consequência, a
relação de representação não se concretiza porque vigoram relações de
favor, clientela, tutela e cooptação;
- a crítica ao PT: de ter abandonado a
relação com aquilo que determinou seu nascimento e crescimento, isto é, o
campo das lutas sociais auto-organizadas, e ter-se transformado numa
máquina burocrática e eleitoral (como têm dito e escrito muitos
militantes ao longo dos últimos vinte anos).
Isso, porém, embora explique a recusa,
não significa que esta tenha sido motivada pela clara compreensão do
problema por parte dos manifestantes. De fato, a maioria deles não
exprime em suas falas uma análise das causas desse modo de funcionamento
dos partidos políticos, qual seja, a estrutura autoritária da sociedade
brasileira, de um lado, e, de outro, o sistema político-partidário
montado pelos casuísmos da ditadura. Em lugar de lutar por uma reforma
política, boa parte dos manifestantes recusa a legitimidade do partido
político como instituição republicana e democrática. Assim, sob esse
aspecto, apesar do uso das redes sociais e da crítica aos meios de
comunicação, a maioria dos manifestantes aderiu à mensagem ideológica
difundida anos a fio pelos meios de comunicação de que os partidos são
corruptos por essência. Como se sabe, essa posição dos meios de
comunicação tem a finalidade de lhes conferir o monopólio das funções do
espaço público, como se não fossem empresas capitalistas movidas por
interesses privados. Dessa maneira, a recusa dos meios de comunicação e
as críticas a eles endereçadas pelos manifestantes não impediram que
grande parte deles aderisse à perspectiva da classe média conservadora
difundida pela mídia a respeito da ética.
De fato, a maioria dos manifestantes,
reproduzindo a linguagem midiática, falou de ética na política (ou seja,
a transposição dos valores do espaço privado para o espaço público),
quando, na verdade, se trataria de afirmar a ética da política (isto é,
valores propriamente públicos), ética que não depende das virtudes
morais das pessoas privadas dos políticos, e sim da qualidade das
instituições públicas enquanto instituições republicanas. A ética da
política, no nosso caso, depende de uma profunda reforma política que
crie instituições democráticas republicanas e destrua de uma vez por
todas a estrutura deixada pela ditadura, que força os partidos políticos
a fazer coalizões absurdas se quiserem governar, coalizões que
comprometem o sentido e a finalidade de seus programas e abrem as
comportas para a corrupção. Em lugar da ideologia conservadora e
midiática de que, por definição e por essência, a política é corrupta,
trata-se de promover uma prática inovadora capaz de criar instituições
públicas que impeçam a corrupção, garantam a participação, a
representação e o controle dos interesses públicos e dos direitos pelos
cidadãos. Numa palavra, uma invenção democrática.
Ora, ao entrar em cena o pensamento
mágico, os manifestantes deixam de lado o fato de que, até que uma nova
forma da política seja criada num futuro distante, quando, talvez, a
política se realizará sem partidos, por enquanto, numa república
democrática (ao contrário de numa ditadura), ninguém governa sem um
partido, pois é este que cria e prepara quadros para as funções
governamentais para a concretização dos objetivos e das metas dos
governantes eleitos. Bastaria que os manifestantes se informassem sobre o
governo Collor para entender isso: Collor partiu das mesmas afirmações
feitas por uma parte dos manifestantes (partido político é coisa de
“marajá” e é corrupto) e se apresentou como um homem sem partido.
Resultado: não teve quadros para montar o governo nem diretrizes e metas
coerentes e deu feição autocrática ao governo, isto é, “o governo sou
eu”. Deu no que deu.
Além disso, parte dos manifestantes está
adotando a posição ideológica típica da classe média, que aspira por
governos sem mediações institucionais, e, portanto, ditatoriais. Eis
porque surge a afirmação de muitos manifestantes, enrolados na bandeira
nacional, de que “meu partido é meu país”, ignorando, talvez, que essa
foi uma das afirmações fundamentais do nazismo contra os partidos
políticos.
Assim, em lugar de inventar uma nova
política, de ir rumo a uma invenção democrática, o pensamento mágico de
grande parte dos manifestantes se ergueu contra a política, reduzida à
figura da corrupção. Historicamente, sabemos onde isso foi dar. E por
isso não nos devem surpreender, ainda que devam nos alarmar, as imagens
de jovens militantes de partidos e movimentos sociais de esquerda
espancados e ensanguentados durante a manifestação de comemoração da
vitória do MPL. Já vimos essas imagens na Itália dos anos 1920, na
Alemanha dos anos 1930 e no Brasil dos anos 1960-1970.
Conclusão provisória
Do ponto de vista simbólico, as manifestações possuem um sentido importante que contrabalança os problemas aqui mencionados.
Não se trata, como se ouviu dizer nos
meios de comunicação, que finalmente os jovens abandonaram a “bolha” do
condomínio e do shopping center e decidiram ocupar as ruas (já podemos
prever o número de novelas e minisséries que usarão essa ideia para
incrementar o programa High School Brasil, da Rede Globo).
Simbolicamente, malgrado eles próprios e malgrado suas afirmações
explícitas contra a política, os manifestantes realizaram um evento
político: disseram não ao que aí está, contestando as ações dos Poderes
Executivos municipais, estaduais e federal, assim como as do Poder
Legislativo nos três níveis. Praticando a tradição do humor corrosivo
que percorre as ruas, modificaram o sentido corriqueiro das palavras e
do discurso conservador por meio da inversão das significações e da
irreverência, indicando uma nova possibilidade de práxis política, uma
brecha para repensar o poder, como escreveu um filósofo político sobre
os acontecimentos de maio de 1968 na Europa.
Justamente porque uma nova possibilidade
política está aberta, algumas observações merecem ser feitas para que
fiquemos alertas aos riscos de apropriação e destruição dessa
possibilidade pela direita conservadora e reacionária.
Comecemos por uma obviedade: como as
manifestações são de massa (de juventude, como propala a mídia) e não
aparecem em sua determinação de classe social, que, entretanto, é clara
na composição social das manifestações das periferias paulistanas, é
preciso lembrar que uma parte dos manifestantes não vive nas periferias
das cidades, não experimenta a violência do cotidiano experimentada pela
outra parte dos manifestantes. Com isso, podemos fazer algumas
indagações. Por exemplo: os jovens manifestantes de classe média que
vivem nos condomínios têm ideia de que suas famílias também são
responsáveis pelo inferno urbano (o aumento da densidade demográfica dos
bairros e a expulsão dos moradores populares para as periferias
distantes e carentes)? Os jovens manifestantes de classe média que, no
dia em que fizeram 18 anos, ganharam de presente um automóvel (ou estão
na expectativa do presente quando completarem essa idade) têm ideia de
que também são responsáveis pelo inferno urbano? Não é paradoxal, então,
que se ponham a lutar contra aquilo que é resultado de sua própria ação
(isto é, de suas famílias), mas atribuindo tudo isso à política
corrupta, como é típico da classe média?
Essas indagações não são gratuitas nem
expressão de má vontade a respeito das manifestações de 2013. Elas têm
um motivo político e um lastro histórico.
Motivo político: assinalamos
anteriormente o risco de apropriação das manifestações rumo ao
conservadorismo e ao autoritarismo. Só será possível evitar esse risco
se os jovens manifestantes levarem em conta algumas perguntas:
- estão dispostos a lutar contra as
ações que causam o inferno urbano, e portanto enfrentar pra valer o
poder do capital de montadoras, empreiteiras e cartéis de transporte,
que, como todos sabem, não se relacionam pacificamente (para dizer o
mínimo) com demandas sociais?
- estão dispostos a abandonar a suposição de que a política se faz magicamente sem mediações institucionais?
- estão dispostos a se engajar na luta
pela reforma política, a fim de inventar uma nova política, libertária,
democrática, republicana, participativa?
- estão dispostos a não reduzir sua
participação a um evento pontual e efêmero e a não se deixar seduzir
pela imagem que deles querem produzir os meios de comunicação?
Lastro histórico: quando Luiza Erundina,
partindo das demandas dos movimentos populares e dos compromissos com a
justiça social, propôs a Tarifa Zero para o transporte público de São
Paulo, ela explicou à sociedade que a tarifa precisava ser subsidiada
pela prefeitura e que não faria o subsídio implicar cortes nos
orçamentos de educação, saúde, moradia e assistência social, isto é, dos
programas sociais prioritários de seu governo. Antes de propor a Tarifa
Zero, ela aumentou em 500% a frota da CMTC (explicação para os jovens:
CMTC era a antiga empresa municipal de transporte) e forçou os
empresários privados a renovar sua frota. Depois disso, em inúmeras
audiências públicas, apresentou todos os dados e planilhas da CMTC e
obrigou os empresários das companhias privadas de transporte coletivo a
fazer o mesmo, de maneira que a sociedade ficou plenamente informada
quanto aos recursos que seriam necessários para o subsídio. Ela propôs,
então, que o subsídio viesse de uma mudança tributária: o IPTU
progressivo, isto é, o imposto predial e territorial seria aumentado
para os imóveis dos mais ricos, que contribuiriam para o subsídio junto
com outros recursos da prefeitura. Na medida que os mais ricos, como
pessoas privadas, têm serviçais domésticos que usam o transporte público
e, como empresários, têm funcionários usuários desse mesmo transporte,
uma forma de realizar a transferência de renda, que é base da justiça
social, seria exatamente fazer com que uma parte do subsídio viesse do
novo IPTU.
Os jovens manifestantes de hoje
desconhecem o que se passou: comerciantes fecharam ruas inteiras,
empresários ameaçaram lockout das empresas, nos “bairros nobres” foram
feitas manifestações contra o “totalitarismo comunista” da prefeita e os
poderosos da cidade “negociaram” com os vereadores a não aprovação do
projeto de lei. A Tarifa Zero não foi implantada. Discutida na forma de
democracia participativa, apresentada com lisura e ética política, sem
qualquer mancha possível de corrupção, a proposta foi rejeitada. Esse
lastro histórico mostra o limite do pensamento mágico, pois não basta
ausência de corrupção, como imaginam os manifestantes, para que tudo
aconteça imediatamente da melhor maneira e como se deseja.
Cabe uma última observação: se não
levarem em consideração a divisão social das classes, isto é, os
conflitos de interesses e de poderes econômico-sociais na sociedade, os
manifestantes não compreenderão o campo econômico-político no qual estão
se movendo quando imaginam estar agindo fora da política e contra ela.
Entre os vários riscos dessa imaginação, convém lembrar aos
manifestantes que se situam à esquerda que, se não tiverem autonomia
política e se não a defenderem com muita garra, poderão, no Brasil,
colocar água no moinho dos mesmos poderes econômicos e políticos que
organizaram grandes manifestações de direita na Venezuela, na Bolívia,
no Chile, no Peru, no Uruguai e na Argentina. E a mídia, penhorada,
agradecerá pelos altos índices de audiência.
* Marilena Chauí é filosofa, professora na FFLCH da Universidade de São Paulo.
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