sexta-feira, 23 de agosto de 2013

Um país encarcerado

Estados Unidos tentam rever a política de encarceramento responsável por deter 3 em cada 100 cidadãos americanos
por Eduardo Graça — publicado 23/08/2013 08:22
Divulgação
Guantánamo
Cena do filme "Fünf Jahren Leben", baseado na história de Kurnaz em Guantánamo
Os números são estarrecedores: 2,2 milhões de encarcerados (quase 3% da população), 5 milhões de cidadãos monitorados pela Justiça, ao custo de 2 bilhões de dólares/ano. Ao anunciar, no encontro anual da organização nacional dos advogados americanos, em São Francisco, na Califórnia, as primeiras diretrizes de uma ambiciosa reforma do sistema prisional americano, o advogado-geral Eric Holder, detentor do cargo que equivale, no Brasil, ao de ministro da Justiça, destacou outros dados impressionantes, incluindo o absurdo de os EUA contarem com 5% da população mundial e 25% dos prisioneiros do planeta.
Das medidas anunciadas por Holder, a de impacto mais amplo e imediato é a orientação para os procuradores deixarem de pedir a aplicação da sentença obrigatória mínima para crimes ligados ao tráfico de drogas. “Ao entrarmos na quinta década da Guerra às Drogas precisamos nos perguntar se ela, e os métodos que vínhamos usando durante o combate, produziram de fato o efeito desejado”, afirmou.
Jennifer Gonnerman, editora-contribuinte da revista “New York” e mediadora de painel organizado na terça-feira pelo instituto de políticas públicas New America Foundation em Manhattan com o objetivo de discutir as conseqüências para a sociedade americana do boom carcerário vivido pelos EUA desde os anos 80 se disse cansada de números: “Já sabemos de cor as estatísticas. Depois de décadas de política dura contra os crimes relacionados às drogas nos tornamos experts em quantificar nosso sistema penal. Mas somos muito menos eficientes em tratar de temas menos tangíveis, como o custo humano de trancafiar esta gente toda, o impacto nas famílias, nas novas gerações”.
Autora de “Life on the outside: the prison odyssey of Elaine Bartlett”, Gonnerman conhece o tema como poucas. Seu livro conta a história de Bartlett, a cabeleireira do Harlem de 26 anos, com quatro filhos para criar, presa transportando 115 g de cocaína em um trem em direção a Albany – sede dos poderes executivo e legislativo do estado de NY. Pela viagem ela ganharia 2.500 dólares. De acordo com a jornalista, Bartlett foi usada como moeda de troca por um informante da polícia que morreu de overdose sem poder testemunhar no processo penal. O resultado foi a condenação a 20 anos de cadeia. Perdoada por ato executivo depois de cumprir 16 anos da pena, Bartlett voltou à liberdade com 40 dólares do Estado no bolso para reiniciar sua vida.
Na mesma terça-feira, os primeiros efeitos da nova linha de atuação da Procuradoria foram postos em prática. Marko Bukumirovic, de 33 anos, foi a julgamento acusado de transportar drogas de Atlanta, na Geórgia, a um subúrbio da capital federal. Antes da determinação de Holder, o procurador seria obrigado a mencionar o fato de Bukumirovic ter sido pego com “5 kg ou mais de substância ilícita”, o que garantiria condenação mínima de 10 anos de prisão e máxima de prisão perpétua. O rapaz, que, como Bartlett não tem antecedentes criminais, agora não pode ter pena tão dura, já que o Estado decidiu não usar a prerrogativa legal. Os procuradores seguem, no entanto, exigindo a aplicação de sentença obrigatória mínima em casos de violência extrema, de ações de gangues ou de grupos criminosos organizados.
Holder também determinou que procuradores peçam, sempre que julgarem cabível, a substituição do encarceramento, em caso de crimes relacionados a entorpecentes, por tratamentos médicos. “Nos anos 80, o Congresso, buscando controlar bairros inteiros vitimados pela epidemia da violência urbana, emperrou uma reforma no sistema judicial que examinaria casos como os abordados por Holder. Políticos de todas as afiliações, por sua vez, incluindo Bill Clinton, de cuja administração o atual advogado-geral participou, não queriam correr o risco de serem percebidos como ‘frouxos’ em relação ao crime. Holder está certo ao abandonar de vez as trincheiras da Guerra às Drogas”, escreveu em artigo no “Finantial Times” de domingo o editor sênior da bíblia conservadora “The Weekly Standard”, Christopher Caldwell.
Não que haja um consenso nacional em torno das políticas aplicadas pela administração democrata na área de segurança pública. O próprio Holder sofreu um dos ataques mais duros da oposição, no primeiro mandato de Obama, com o escândalo dos “velozes e furiosos”, quando o Departamento de Justiça foi acusado de não apreender milhares de armas contrabandeadas para o México. Republicanos chegaram a levantar a hipótese de ação deliberada do governo federal, que teria apostado em um aumento de violência na fronteira para justificar o início de uma campanha nacional contra o porte e uso de armas de fogo nos EUA. Entre as exceções anunciadas por Holder para a abolição do pedido de sentença obrigatória mínima está justamente a presença de arma de fogo em poder do acusado.
De acordo com Washington, 2012 já é o ano com a maior diminuição de população carcerária na história dos EUA. Jennifer Gonnerman lembra que estados localizados na fronteira com o México e comandados por conservadores, como Texas e Arkansas, deslancharam recentemente experimentos bem-sucedidos, com treinamento educacional técnico, como alternativas à superlotação das cadeias, justificados pela direita como medidas necessárias de ajuste fiscal.
Holder, no entanto, enfatiza o aspecto moral da falácia da Guerra às Drogas. E oferece mais números, como o crescimento de 800% da população carcerária desde 1980, e os 50% de presos condenados por crimes federais cumprindo pena por delitos relacionados às drogas. Ao contrário das medidas estaduais, aprovadas pelos legislativos locais, a administração Obama deixou claro sua estratégia unilateral na reforma do sistema prisional americano: ela se dará através de decisões executivas, ignorando o Congresso, cuja câmara baixa segue com maioria republicana.

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