quinta-feira, 31 de outubro de 2013

O relatório do FMI e a questão fiscal no Brasil




    José Álvaro de Lima Cardoso*
    Recentemente o Fundo Monetário Internacional (FMI) divulgou o seu relatório anual, que trouxe fortes críticas à política fiscal do governo brasileiro, que estaria, segundo o documento caminhando para a “erosão” das estruturas fiscais do país em função da elevação dos gastos públicos. O que teria levado, segundo o relatório, o governo a recorrer cada vez mais a receitas extraordinárias (como dividendo de estatais) e a manobras contábeis, para alcançar a meta de superávit primário. O documento do FMI critica a diminuição do superávit primário ocorrida nos últimos anos, o que, supostamente, teria colocado em risco o controle da inflação e o equilíbrio das contas externas.
     O relatório não leva em conta que, em parte, a redução do superávit ocorreu em função das desonerações tributárias (inclusive da Previdência Social), estratégia para enfrentar o processo de desaceleração da economia mundial e local. O relatório ignora também que, em boa parte, a diminuição do superávit primário é decorrência direta da elevação de gastos para enfrentamento dos efeitos da crise mundial, política recomendada pelo próprio FMI para vários países, em outros momentos do pós-crise de 2008.
     A diminuição do superávit primário, ademais, em parte é cíclica, efeito do baixo crescimento da economia brasileira (especialmente no último triênio) sobre a arrecadação de impostos. Além disso, numa conjuntura em que o investimento privado caiu e ficaram mais difíceis as chances de expansão do saldo comercial, nada mais correto que aumentar o investimento público. Que poderia, inclusive, ter aumentado mais já que o investimento público federal (excluindo estatais), na média dos últimos anos não passou de 1,2% do PIB, valor muito semelhante ao que o governo federal investia em 2001-2002 (1% do PIB). O aumento do investimento público, ao mesmo tempo em que atua sobre os gargalos estruturais da infraestrutura brasileira, é instrumento importante de alavancagem do crescimento da economia.
     Curiosamente, algumas análises, quando criticam a política fiscal do governo, colocam o superávit primário como uma política inquestionável, correta por definição, o que já é um absurdo. Além disso, tais abordagens, raramente mencionam os gastos com juros, que drenam nada menos que 5% do PIB brasileiro todo ano e são uma das principais causas do baixo crescimento no Brasil. Mas o Fundo foi mais longe em seus comentários e elogiou o atual ciclo de elevação dos juros para conter a inflação, como sendo medida correta. Ora o Brasil vem crescendo pouco, dentre outras razões, porque ostentamos o triste título de “campeão mundial” de juros, quando uma boa parte dos países do mundo vêm praticando taxa de juros reais negativas ou próximas de zero.
     Além de travar o crescimento e valorizar o câmbio, juros básicos elevados representam um maior gasto com a dívida pública, já que cerca de 40% da dívida é indexada à taxa Selic (taxa de juros básica do país). Em 2013, as despesas com juros incorporadas à dívida pública, que inclui o governo federal, os estados, municípios e empresas estatais, deverão alcançar 4,9% do PIB algo superior a R$ 200 bilhões. Estes gastos superaram toda a dotação orçamentária das áreas de Saúde e Educação. À título de comparação o desembolso com o programa Bolsa Família – que beneficia quase 50 milhões de brasileiros – previsto para 2013 é de R$ 24 bilhões, o que representa 0,46% do PIB. Isso significa que, com o gasto do Brasil com juros, se poderia aumentar o gasto no Bolsa Família em quase 10 vezes ou multiplicar o gasto atual da União com educação e saúde.
     A sociedade discute tudo. Carga tributária excessiva, destinação dos gastos públicos, superávit insuficiente, corrupção, salário de funcionalismo, etc. Mas praticamente não se fala que o rentismo se apropria de quase 5% do PIB. E com um aspecto crucial. Diferentemente do que ocorre com os gastos com funcionalismo e com os programas de transferências sociais, as despesas com a dívida pública não sofrem o controle sistemático da sociedade ou de órgãos públicos fiscalizadores.
     Se o quadro fiscal do Brasil tem alguns problemas, certamente não decorrem dos investimentos sociais. Nem tampouco dos gastos da União com pessoal, que têm se mantido mais ou menos estáveis em relação ao Produto Interno Bruto (PIB), em torno de 4,7%, percentual que permaneceu, mesmo com o baixo crescimento recente da economia brasileira. Além disso, apesar dos gastos com juros, o déficit público brasileiro é baixo na comparação internacional, tendo caído, na última década, de 5% para 3% do PIB. A dívida pública líquida, que era de 60% do PIB em 2002, reduziu-se para menos de 35% do PIB. A dívida bruta, mesmo na discutível metodologia utilizada pelo FMI, diminuiu de 80% para 68% do PIB na última década. Esta é uma situação bem mais confortável do que praticamente todos os países desenvolvidos do mundo.
                                                       *Economista e supervisor técnico do DIEESE em Santa Catarina.

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