quarta-feira, 23 de outubro de 2013

Qual preço você pagaria?

Compartilho texto enviado pela Renata Miranda.



TENDÊNCIAS/DEBATES

  MARIA RITA KEHL


É fácil julgar fatos passados pelas lentes já estabelecidas pela posteridade, sobretudo quando os vencedores estão do lado, digamos, do bem


UMA RECENTE polêmica com o crítico Marcelo Coelho acerca do pessimismo me fez prestar atenção nos textos do colunista Luiz Felipe Pondé. Na réplica a Coelho, Pondé reivindicou para si o pessimismo de Franz Kafka -o que me pareceu um tanto desmedido. Na segunda-feira passada (23/2), a crônica "O quarto" me levou a pensar novamente sobre o pessimismo e o paradigma ético que ele encerra.
Ao evocar o julgamento da ex-guarda da SS no filme "O Leitor", o colunista convida seus próprios leitores a se colocarem na pele da personagem de Kate Winslet quando pergunta aos juízes: "No meu lugar, o que você faria?". O crime em questão não era o de ter se alistado na Gestapo "por precisar de emprego", mas o de ter trancafiado 300 prisioneiras judias dentro de uma igreja em chamas para impedi-las de fugir. "Meu dever era manter a ordem", responde a personagem. No lugar dela, o que você faria?
A questão é tão fundamental quanto irrespondível. Hoje, seríamos todos resistentes; seríamos todos heróis. É fácil julgar fatos passados através das lentes já estabelecidas pela posteridade, sobretudo quando os vencedores estão indiscutivelmente do lado, digamos, do bem. Mas se você estivesse lá, no olho do furacão, sem entender direito o que se passava, o que teria feito? Do lado das vítimas (para neutralizar um pouco a questão), quantas famílias judias tiveram oportunidade de deixar a Alemanha e não o fizeram, incapazes de imaginar a que ponto o mal que as ameaçava poderia chegar?
Mas houve um momento em que se tornou impossível ignorar a radicalidade da política de extermínio de Hitler. Então, a opção pela neutralidade deixou de existir. Cada cidadão não-judeu que optasse pelo conforto moral de pensar "isso não é comigo" sabia ser coautor dos assassinatos de seus concidadãos. Para entender isso é preciso, como escreveu Susan Sontag em seu livro "Ao Mesmo Tempo" (Companhia das Letras, 2008), "se transportar mentalmente para um tempo em que a maioria das pessoas aceitava que o curso da vida delas seria determinado mais pela história do que pela psicologia, mais pelas crises públicas do que pelas particulares".
Façamos de conta que esse tempo passou; que hoje as grandes questões éticas podem e devem ser decididas a partir dos parâmetros exclusivos da vida privada. A isso nos convida Pondé, ao descrever a vida de uma inocente família alemã que escondia judeus num quarto da casa. Para apelar aos valores que nos são mais caros hoje, Pondé descreve o drama familiar aos olhos da criança da casa, que não entende porque o pai a estaria submetendo ao desconforto, ao perigo, ao mau cheiro que exalava do misterioso quartinho fechado. Pondé cita uma pesquisa em que adultos que passaram por situações parecidas na infância afirmaram ter imaginado que seus pais não os amavam, pois, se os amassem, não os teriam colocado em risco por causa de estranhos.
A resposta demonstra até que ponto a vida se privatizou e a família tornou-se o único valor indiscutível aos olhos da maioria. Quando os filhos se tornam o único ideal de seus pais, estes não têm nada a lhes transmitir. A não ser, talvez, um "sejam felizes". A qualquer preço? Avancemos um pouco mais na perspectiva da criança: como viveria mais tarde o adulto cujos pais enviaram vizinhos e conhecidos para a câmara de gás por amor a ele? Como suportaria gozar a vida após isso? Quanto cinismo seria preciso mobilizar para seguir vivendo indiferente às consequências dessa escolha?
Se só se pode julgar a história pela lente da história, sabemos hoje que a indiferença pelo destino dos não-familiares e a escolha de cuidar da própria vida -ignorando a dos outros- têm um nome: cumplicidade criminosa. Foi essa pretensa neutralidade, ao preço de uma brutal desidentificação com a condição humana, que instalou na Alemanha o que Hanna Arendt chamou de "banalidade do mal". O pessimismo de Kafka advém de não querer ignorar do que as pessoas são capazes; do que a indiferença subserviente é capaz. Nada a ver com o suposto pessimista que não crê em nada para se manter mais ou menos de acordo com tudo. Esse é o mal do século 20 (e 21), que Walter Benjamin batizou de fatalismo melancólico.
Ninguém escolhe a época em que lhe coube viver. Cada uma delas tem um preço. No caso do Holocausto, os inocentes que sobreviveram para um dia se queixarem "meu pai não me amava porque protegeu estranhos" devem saber que, naquelas condições extremas, pagaram um preço baixo.

MARIA RITA KEHL , 57, psicanalista e ensaísta, é autora, entre outras obras, de "Ressentimento" (2004).

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