sábado, 23 de novembro de 2013

A Papuda das ideias

 

 Saul Leblon no Carta Maior
postado em: 23/11/2013
A foto de um sacoleiro vestindo sandália havaiana e jeans resume o ponto de vista de uma parcela da sociedade sobre os males do país.

A foto, editada da cintura para baixo, ilustra a chamada do site do jornal Valor Econômico desta 6ª feira (15/03; às 11h07).

Título:  ‘Gasto de brasileiros no exterior atinge recorde histórico em outubro’.

A imagem e a manchete se articulam ardilosamente para inscrever no diagnóstico a solução do problema.

Do problema  visto da ótica do conservadorismo.

Qual seja, o efeito deletério da ascensão do ‘Brasil sacoleiro’, denominação genérica para os 60 milhões de ex-muito pobres que alargaram o mercado de consumo por conta do ‘voluntarismo econômico dos governos petistas’, como já alertou FHC.

O déficit na conta de turismo, ensina a narrativa isenta,  é só um dos muitos inconvenientes daquilo que se convencionou chamar de  ‘custo Brasil’.

Inclui desde contrariedades cotidianas, a exemplo dos congestionamentos urbanos e a diária das faxineiras, a  colaterais econômicos, como a gastança fiscal e o inflacionário poder de compra do salário mínimo, ademais do desfecho político do conjunto, condensado nos vínculos que ele acarreta  entre a massa ignara e lideranças não confiáveis.

Aquelas todas que as elites gostariam de ver a toga colérica trancar  na Papuda.

A solução induzida pela associação entre o texto e a matéria do Valor é a purga redentora entoada pelo jogral que nunca desafina, mesmo com a senadora Marina em sofridos sustenidos.

Não importa que as sandálias havaianas ofereçam aderência limitada às faixas de renda que efetivamente viajam ao exterior e dispõem de reservas para  impactar o déficit em conta corrente.

Tampouco importam outros vazamentos de dólares, de tradição anterior e montante equivalente.

Remessas brutas de lucros e dividendos do capital estrangeiro, por exemplo.

Até outubro, elas  totalizaram US$22,8 bilhões, quase US$ 2 bi acima dos  US$ 21 bilhões das despesas com turismo.

Ainda que o gasto com viagens seja de fato descabido, pior que isso, ascendente, cabe questionar se ocorreria ao Valor  ilustrar uma reportagem sobre remessas com a imagem de um executivo arrastando mala de dólares pelos saguões elegantes.

A caricatura rudimentar, na verdade, mais estreita do que ilumina o que importa.

O que importa  no caso é o zeloso  confinamento da pauta econômica no campo do arrocho.

As mesmas forças e interesses que comemoram a prisão ilegal de lideranças do PT, quando o próprio julgamento-palanque lhes concedeu o regime semiaberto, submetem o debate do desenvolvimento brasileiro a igual constrangimento.
As consequências do seu sucesso, até aqui, são demolidoras.

Que o diga o prefeito de São Paulo, Fernando Haddad.

Acusado por alguns de jejuno na arte das raposas políticas, Haddad na verdade desdobra-se  como um leão em três frentes distintas.

Depois de errar a mão  diante dos  protestos, em junho, deu a volta por cima com a criação recorde de cerca de 300 kms de faixas de ônibus na capital.

Espetou assim uma primeira e expressiva marca popular na sua gestão.

Ato contínuo, implodiria a blindagem da corrupção na máquina municipal, onde chocou incólume, no ciclo Serra/Kassab, um ovo de corrupiões  do tamanho de R$ 500 milhões.

Ainda inconclusa,  essa contabilidade já configura a maior lambança da história do serviço público brasileiro.

A cicuta que isso injeta no presidenciável de estimação da família Frias  explica as cambalhotas nervosas da ‘Folha de São Paulo’.

Nas suas páginas o escândalo atinge mais Haddad que Serra...

Fica difícil não gargalhar dos peraltas da Barão de Limeira.

Haddad deu carta branca à Controladoria-Geral do Município.

Acaba de autorizar a contratação de mais 100  auditores para vasculhar o picadeiro em toda a sua extensão.

Antes que isso aconteça, a Folha quer reduzir tudo a uma palhaçada.

Nessa corrida contra o relógio o prefeito pode cravar a sua segunda e bem sucedida marca.

Mas a terceira e decisiva que ele busca incorporar a sua gestão enfrenta graves obstáculos para prosperar.

Esta semana, ela colidiu de frente com a prisão das ideias econômicas no regime fechado da ortodoxia fiscal.

A grita do conservadorismo contra a ‘gastança’ deu resultado.

E nesta quarta-feira fez a sua  maior vítima:  o investimento público na cidade de SP.

Brasília acaba de decidir que renegociar a dívida da capital – e de outros 136 grandes municípios  — saiu do radar das prioridades.

Premido pela emissão conservadora, incansável na guerra de expectativas para inibir o investimento e rebaixar a nota de risco do Brasil, o governo aceitou como verdade a fotomontagem do ‘abismo fiscal’.

Não se pode subestimar o poder de fogo da artilharia conservadora local e forânea. 

Aécio, Campos, Marina  e as sirenes midiáticas em português e inglês aguardam o palanque de crise de proporções ferroviárias  para derrotar Dilma em 2014.

Ainda faltam 11 meses para a eleição: um passo em falso pode servir de espoleta para o vale tudo conservador.

O governo avalia que já tem trunfos a contabilizar; prefere consolidá-los com um verniz de responsabilidade fiscal, a ceder espaço ao mantra ortodoxo.

É uma aposta.

Em que medida, porém, ela sacrifica a oportunidade, a partir de São Paulo, de desautorizar a fotomontagem que induz  –sobretudo a classe média--  a preferir a anomia à modulação judiciosa das transferências aos rentistas da dívida pública?
Há riscos? Sim.
Mas existirá contraprova de anomia urbana mais pedagógica que São Paulo?

Mais que isso.

Um mesmo torniquete interliga o ocaso da metrópole às urgências do desenvolvimento brasileiro.

O orçamento da capital só perde para o de cinco estados e soma cerca de R$ 39 bilhões este ano.

Mas a dívida da prefeitura, superior a R$ 66 bilhões, equivale ao orçamento do Estado de Minas Gerais este ano (R$ 68 bi).

E o que São Paulo gasta com o serviço dessa dívida (mais de R$ 7 bi em juros e amortizações por ano) fica muito perto do orçamento anual do estado de Sergipe (R$ 7,8bi).

Pior ainda.

O gasto financeiro supera o de todas as áreas de governo, exceto educação, em que há empate.

A administração Haddad gastará com Saúde, por exemplo, cerca de R$ 6 bi; para novos  investimentos  dispõe de apenas  R$ 5,3 bi.

Um pouco como na esfera federal.

O serviço da dívida pública demanda cerca de 5,7% do PIB ao ano, para um investimento federal em educação de 5,3% do PIB; 3,9% na saúde; 1,2% em transporte e 1% em infraestrutura (governo federal).

Com um agravante imobilizador no caso de São Paulo: pela Lei da Responsabilidade Fiscal, a esse nível de endividamento, a prefeitura não pode mais tomar empréstimos para investir.

Explica-se, em parte, a inflexibilidade de Haddad diante dos protestos de junho.
Explica-se também a aposta na progressividade do IPTU para romper essa camisa de força.

Com as resistências sabidas.

Em meados de 2000 a dívida de São Paulo era de pouco mais de R$ 11 bi.

A cidade já pagou juros equivalentes a uma vez e meia esse valor desde então.

Mas não conseguiu honrar a cláusula da Lei de Responsabilidade Fiscal que exigia  liquidar 20% do principal em três anos.

A punição veio na forma de um aumento dos juros:  9% sobre o principal.

A renegociação solicitada por Haddad limita-se a pedir a equiparação retrospectiva desse juro à Selic.

A redução no saldo devedor permitiria à Prefeitura voltar ao mercado e obter cerca de R$ 5 bilhões em empréstimos para investir em escolas, transporte, habitação, urbanismo etc

O coro do ‘abismo fiscal’ fez o governo recuar dessa renegociação com a cidade de  SP e casos equivalentes em outros Estados.

Sim, a reeleição está em jogo.

Mas não faria parte do jogo, também, derrotar o fiscalismo paralisante?

E, sobretudo, não seria São Paulo um caso de anomia  urbana, didático o suficiente para afrontar  o regime fechado em que se encontra preso o debate do desenvolvimento brasileiro?
A ver.

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