domingo, 17 de novembro de 2013

O fantasma da independência do Banco Central

Paulo Kliass no Carta Maior




Aproveito a oportunidade apresentada por este artigo a respeito da independência do Banco Central para uma despedida temporária de vocês, que me acompanham por aqui. Em razão de novas empreitadas de natureza pessoal e profissional que a vida me apresenta nesse momento, decidi por me conceder uma ausência temporária da companhia dos demais colunistas da Carta Maior. Como faço a cada semana, me dirijo em especial aqui e agora a vocês - leitores.

Confesso que esta experiência de colaboração regular, com um artigo semanal, me proporcionou um grande aprendizado pessoal, político, jornalístico e econômico.

Pode até parecer meio piegas e carregado de lugar-comum esse tipo de declaração, mas é um fato inquestionável e muito sincero no meu caso. A disciplina que eu estabeleci comigo mesmo operou como uma espécie de desafio. Deveria me condicionar a escrever um texto semanal sobre economia e/ou sobre políticas públicas para um veículo de comunicação especial, que atinge um público bastante diferenciado. E tal fato me obrigou a estar permanentemente ligado nos eventos nacionais e internacionais de relevância, em cada conjuntura. Além disso, me levou a estudar e pesquisar de forma sistemática sobre temas de interesse geral, sobre os quais nem sempre eu estava em condições de discorrer sem aprender mais um pouco ou me atualizar no assunto.

Por outro lado, a incorporação de uma espécie de missão - essa idéia de escrever sobre economia para não-economistas - forçou-me a tentar traduzir o jargão do “economês” para uma linguagem mais acessível às pessoas - vá lá a ironia - “normais”. Mais do que a linguagem, na verdade, o esforço maior é o de converter o raciocínio e a lógica inerente à teoria econômica para pessoas com uma formação diferente. Ou seja, reproduzir exatamente o que ocorreu comigo, antes que eu tivesse tomado contato mais profundo com a economia, mais tarde na vida, já no mestrado e no doutorado.

Apesar desse afastamento temporário, tenho a plena convicção de que os colegas responsáveis pela Carta Maior saberão encontrar colaboradores para me substituir, de maneira que os leitores não deverão praticamente nem sentir a mudança.

Deixo um abraço a tod@s e até breve. E agora me despeço com algumas reflexões a respeito de um Projeto de Lei que ronda perigosamente o espaço aéreo em torno do Congresso Nacional, do Palácio do Planalto, do Ministério da Fazenda, do Banco Central e do quartel general do financismo.

Independência do BC: tema recorrente

O tema da independência do Banco Central é antigo e recorrente. Vira e mexe ele volta a ganhar destaque e passa a freqüentar os espaços dos meios de comunicação. Há dois tipos de fatores que contribuem para que seu fantasma fique permanentemente rondando os locais onde são tomadas as decisões a respeito de políticas públicas em nosso País. A primeira razão é de natureza teórica e conceitual, mas opera em sintonia com o “lobby” pesado dos interesses da banca.

A idéia subjacente é aquela que está por trás do discurso demagógico, que encontramos a todo momento na grande imprensa, de que “política monetária é coisa muito séria para ser tratada por políticos”. Isso como se empresários e banqueiros fossem, por sua própria genética específica, pessoas responsáveis e que visam o bem comum. A segunda razão está associada a uma demanda prevista na própria Constituição Federal. Em seu artigo 192, o último dispositivo do “Título VII – Da Ordem Econômica e Financeira”, há um mandato determinando a aprovação de leis complementares para regulação dos diversos aspectos do Sistema Financeiro Nacional. Como essa obrigação existe desde 1988 e ainda não foi cumprida até os dias de hoje, o fato é que a dinâmica e o funcionamento do sistema das finanças continuam a ser definidos pela legislação que já existia anteriormente.

A definição institucional do modelo de autoridade monetária varia segundo o momento histórico e o país considerado. Há desde o modelo norte-americano do FED até aquele vigente no Brasil ainda antes do golpe de 1964. No primeiro caso, o Banco Central é uma instituição independente da estrutura política “stricto sensu”, uma vez que seus dirigentes têm um mandato e são inamovíveis. Já para a realidade brasileira pré reforma do sistema financeiro, o modelo previa que uma divisão do Banco do Brasil (Superintendência da Moeda e do Crédito - a poderosa SUMOC) cuidasse desses assuntos. Assim, entre a independência plena e a ausência completa de autonomia face ao poder político, há uma vasta gama de tons de cinza em que se enquadram a maior parte dos casos existentes. São os diferentes exemplos de autonomia relativa.

Em geral, a autoridade monetária cumpre as funções de órgão regulador e fiscalizador do sistema financeiro, ao mesmo tempo em que se encarrega da implementação da política monetária (taxa de juros e depósito compulsório) e, às vezes, também da política cambial. Como se pode perceber, trata-se de um conjunto importante de atribuições da esfera da política econômica, com impactos expressivos sobre a economia e o conjunto da sociedade. Assim, a hipótese da independência do Banco Central frente à estrutura político-institucional estaria associada à necessidade de se evitar que a condução dos assuntos da economia fosse ditada pelas preocupações imediatas e de curto prazo do calendário da política.

Política monetária: questão técnica ou política?

Ocorre que por trás do discurso independentista esconde-se uma intenção privatista. Tanto que a postulação mais efetiva da independência a ser concedida à autoridade monetária só passa a ganhar mais força política pelo mundo afora, a partir do período de consolidação da hegemonia do pensamento neoliberal. O movimento pega carona na onda generalizada contra a presença do Estado na economia e pela desregulamentação de suas atividades, fenômeno esse que tão bem os meios de comunicação ajudaram a multiplicar. A pregação da supremacia plena e absoluta do privado sobre o público glorifica o espaço do mercado como a busca da solução para todos os conflitos. O discurso da pós-modernidade mira na desconstrução da presença estatal e sugere outros modelos para a implementação daquilo que seriam as antigas políticas públicas. A palavra da moda passa a ser a mercantilização de todas as manifestações das relações: sejam elas sociais, políticas, culturais, etc. Tudo passa ser avaliado em termos de preços e quantidades. Tudo passa ser determinado em função de oferta e demanda.

A suposta “independência” do Banco Central se concretiza por meio da entrega de sua gestão aos interesses do financismo. Aos seus representantes é oferecida a plena liberdade para conduzir como quiserem os diferentes aspectos da política econômica, sem que seja preciso prestar contas à sociedade, por intermédio dos representantes políticos. Literalmente, tudo se passa como se a tecnocracia se outorgasse um cheque em branco a si mesma, para fazer o que quiser com ou para o sistema financeiro. O caso brasileiro mais recente dá bem a dimensão dessa empreitada. Durante os 2 mandatos presidenciais de Lula, o senhor absoluto da autoridade monetária em nossas terras foi Henrique Meirelles, que até a antevéspera de sua nomeação, era o presidente internacional de um dos maiores conglomerados financeiros do mundo, o Bank of Boston. Para dar cabo de sua tarefa, o banqueiro contou com autonomia plena e absoluta, que a ele foi conferida pelo Presidente da República. Se tivesse um mandato definido, sem ter que prestar contas a ninguém, talvez o estrago realizado talvez ainda fosse maior.
Literalmente, era como se colocasse a raposa para tomar conta do galinheiro. O Banco Central fica independente do governo. E a maioria da sociedade fica ainda mais dependente do sistema financeiro.

Ora, sob tais condições, o que de fato sobra a respeito do discurso vazio da independência? Não existe mais dúvida de que a tecnicalidade envolvida na definição dos rumos da economia é de natureza essencialmente política. Se os responsáveis pela política monetária são independentes face à estrutura política, eles são absolutamente reféns e comprometidos com os interesses do financismo.

Nessas condições, que respondam então àqueles que foram eleitos pela população e contam, teoricamente, com alguma legitimidade para conduzir o conjunto das políticas públicas. Como não existe neutralidade na definição de como a renda e a riqueza são distribuídas na sociedade, parece óbvio que essa decisão não pode ser conferida a um ente desprovido de qualquer poder de representação popular.

No momento atual o fantasma responde pela sigla PLS 102/2007. Trata-se de um Projeto de Lei Complementar em tramitação no interior do Senado Federal. Seu autor original foi o ex Senador Arthur Virgílio (PSDB/AM), que não conseguiu se reeleger em 2010. Mas a relatoria da matéria foi rapidamente repassada ao Senador Francisco Dornelles (PP/RJ), economista de perfil bastante conservador da FGV/RJ, cujas relações umbilicais com o mundo do financismo são mais do que conhecidas. Durante algumas semanas atrás, o Presidente do Senado Renan Calheiros chegou a ameaçar a Presidenta Dilma de colocar o texto em prioridade na agenda de votação da Casa, mas depois parece ter recuado. Mas de qualquer forma, a matéria segue sua tramitação ordinária. Em algum momento pode ir a plenário.

O poder do financismo: independência ou captura?

Esse Projeto de Lei pretende ser um dos que regulamenta o citado artigo 192 da CF. Mas no caso específico do BC, ele concede a independência institucional tão desejada pela banca, pois os diretores da instituição passariam a contar com mandato de 6 anos, com a possibilidade de uma recondução. De acordo com o Parecer Substitutivo, nem mesmo o ocupante do Palácio do Planalto tem poderes para demitir os diretores do Banco Central depois de empossados. Na verdade, tudo se passa como se houvesse o reconhecimento de que o sistema financeiro é um poder de fato, além dos outros 3 reconhecidos e constituídos - Executivo, Legislativo e Judiciário. É ele o quarto poder, deslocando inclusive os meios de comunicação/imprensa para a quinta posição. No limite, alguém pode permanecer por 12 anos à frente do BC, o período correspondente a 3 mandatos de Presidente da República.

Flertar com a menor possibilidade de apoiar esse tipo de medida já representa uma enorme irresponsabilidade política. O elevado grau de autonomia de que hoje usufrui a direção do nosso BC já está de bom tamanho. A experiência recente tem mostrado o quão difícil tem sido a relação da sociedade - e até mesmo do governo federal – quando o assunto é a excessiva autonomia das agências reguladoras. Em muitos casos, suas direções se apresentam aprisionadas pelos interesses das empresas e dos conglomerados, justamente aqueles que deveriam ser objeto de regulamentação e fiscalização. É o chamado fenômeno da captura. A lógica que orienta a ação do órgão regulador passa a ser a mesma que a rege a vida do ente regulado. E sobram o desrespeito dos direitos do consumidor, os aumentos abusivos de tarifas, a não prestação de serviços em termos de quantidade e qualidade, a autorização de concentração econômica e práticas de cartel, entre tantos outros casos que deveriam ser proibidos pela instituição regulamentadora.

(*) Doutor em economia pela Universidade de Paris 10 (Nanterre) e integrante da carreira de Especialistas em Políticas Públicas e Gestão Governamental, do governo federal.

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