domingo, 15 de dezembro de 2013

A curta primavera do neodesenvolvimentismo ou o sonho de uma noite de verão

No Carta Maior

  A decisão do Comitê de Política Monetária (Copom) de elevar em 27 de novembro a taxa básica de juros de 9,5% para 10%, repetindo a elevação de 9 para 9,5% de 9 de outubro,  indicou que se pretende manter o aperto monetário iniciado em abril.  Isso coincidiu com o arrefecimento da inflação, principalmente de alimentação, mais intenso do que esperado.


Embora o presidente do Banco Central, Alexandre Tombini, tenha deixado a porta aberta para uma eventual desaceleração do aumento da taxa, os analistas do mercado celebram a quebra do que eles consideravam um “tabu político”: a volta de juros de dois dígitos no início do ano que vem. Fala-se em 10,25%.
 
Mercado comemora
A decisão do Copom responde às famosas expectativas do mercado. Outra linguagem utilizada pelos analistas do mercado financeiro para comentar, ou melhor, comemorar, a consolidação da velha política: a “normalização monetária”. Logo depois do encontro anual do FMI/Banco Mundial realizado em Washington, não faltaram elogios à alta de juros por reafirmar a credibilidade do arranjo da política monetária.

Vejam como as coisas mudam de lugar. O “tabu político” não se referia à proibição de questionar a política do Brasil campeão em juros reais? A “normalização” não seria empurrar os juros brasileiros para patamares comparáveis internacionalmente?
Lembremos que o presidente Lula optara por uma estratégia de transformação que não enfrentasse diretamente os interesses do capital, em particular do capital financeiro, baseado em uma avaliação das relações de forças políticas e sociais existentes na sociedade brasileira e no mundo. Assim, nos oito anos, as conquistas, que não foram poucas, realizaram-se sem que em nenhum momento o governo enfrentasse a ditadura do Relatório Focus, não obstante as folclóricas lamentações do vice-presidente José Alencar a cada aumento da taxa Selic. O Relatório Focus, publicado semanalmente pelo BC desde 2001, busca captar as expectativas e demandas do mercado financeiro em relação à economia brasileira.  A taxa de juros básicos se fixou invariavelmente dentro das expectativas das instituições financeiras consultadas pelo Banco Central e sistematizadas nos Relatórios Focus.

Crescimento, emprego e investimento
Com a janela de oportunidades gerada pela alta da demanda e dos preços dos principais produtos primários, o governo Lula iniciou uma série de medidas visando uma dinâmica de crescimento, geração de empregos e distribuição de renda. Seria errado achar que não estivesse presente nas prioridades dessa estratégia o aumento dos investimentos. Pelo contrário, a lógica era a de que o próprio dinamismo do mercado interno geraria condições para um crescimento sustentado da taxa de investimento em relação ao PIB, e isso de fato estava acontecendo.

A média anual do crescimento dos investimentos no segundo governo Lula foi de 8,6%, contra 4,5% no seu primeiro governo, -2% no segundo governo FHC e 4,3% no primeiro governo FHC (dados sistematizados pelo IPEA). O próprio Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) criou condições para um novo vigor nos investimentos físicos e sociais, e tudo indicava que o Brasil pudesse finalmente superar o estado de paralisia de investimentos que o caracterizava desde o início da década de 1980, sob o impacto da crise da dívida externa.

Precisamos entender o que aconteceu depois que a crise financeira explodiu e tornou-se global, com o colapso do banco de investimento Lehman Brothers, em setembro de 2008.  O Brasil conseguiu defender-se bem e garantir um crescimento espetacular do PIB de 7,5% em 2010. No entanto, o contexto internacional havia mudado e os ventos sopravam contra, embora tenha havido, em um primeiro momento, uma expectativa generalizada de conseguir taxas de crescimento ainda expressivas, acima de 4%, ao ano durante o governo Dilma.

O que mudou? Basicamente quatro aspectos:

(1) O reflexo da crise na Europa junto com a dificuldade de uma recuperação mais firme da economia americana;

(2) Um impacto significativo sobre o câmbio por causa da política de liquidez dos países centrais, em particular do banco central dos EUA;

(3) A estratégia da China, cujos produtos de exportação começaram a pressionar ainda mais para compensar a fraca demanda nos países centrais; e

(4) Um erro na avaliação da política econômica. A equipe do governo ficou assustada com o suposto impacto inflacionário do crescimento de 7,5% em 2010 e predominava uma falta de clareza sobre a permanência das dificuldades para uma recuperação da economia global, com o agravamento da situação na Europa. Optou-se em 2011 por um aperto monetário com cinco elevações consecutivas da taxa Selic entre janeiro e julho, levando a taxa de 10,75% ( dezembro 2010) para 12,50% em julho 2011.

Balança comercial
O resultado foi um inesperado e gigantesco crescimento do déficit da balança comercial da manufatura brasileira, que mais que dobrou durante o governo Dilma, chegando a quase US$ 100 bilhões. Isso foi camuflado pela exportação dos produtos primários, em particular do agronegócio. Lembrando que o Brasil apresentava um superávit na balança comercial da manufatura até 2007. Importante ressaltar que precisamos olhar não somente a rubrica da corrente de comércio de manufatura, propriamente dita, mas incluir aqui também o escandaloso déficit na chamada conta de turismo, superando os US$ 20 bilhões, que em grande parte expressa um movimento de “sacoleiros de classe média alta”, que compram produtos manufaturados de origem predominantemente asiática (em particular roupas e eletrônicos) no exterior.
Com o real valorizando-se a 1,50 por dólar, além das incertezas internacionais, a dinâmica do mercado interno, iniciada no governo Lula continuou. A diferença é que agora ela caracteriza-se pelo aumento das importações, em vez de incentivar investimentos, provocando o que os economistas chamam de vazamento para o exterior. As vendas do comércio no varejo tiveram uma alta de 6,6% em 2011 e 8% em 2012, contra aumentos do PIB de respectivamente 2,7% e 0,9%. Dessa forma, a indústria de transformação, que tinha registrado um crescimento de 23% entre 2003 e 2008, registrou uma queda de 3% entre 2009 e 2012.

Diante desse quadro, o governo Dilma resolveu que não bastavam mais as políticas vitoriosas no governo Lula e estava na hora de mexer com dois preços centrais: juros e câmbio.  Aqueles que eram o “tabu político”.

Cortes nos juros
Assim, iniciou-se, de forma corajosa, um ciclo de cortes agressivos, em agosto 2012. O impacto causado por isso foi uma taxa de juros real, no final do ano 2012, de 1,4%, contra 4,9% em 2011 e 4% em 2010.

Isso se traduziu também em uma economia do principal gasto do governo. Afinal, os liberais sempre convocam para um corte do gasto do governo, considerando-o um importante fator de pressão inflacionária que inibe a baixa de juros. Mas o pagamento dos juros é o principal gasto do governo, justamente o único dispêndio cujo corte era “tabu político”. Os dados mostraram, de fato, uma queda significativa desse custo financeiro, que em 2012 conseguiu ficar pela primeira vez neste século abaixo dos 5% do PIB, em 4,8%, contra 5,7% em 2011.

Em condições normais, essas políticas deveriam ter um impacto mais imediato sobre o setor produtivo por representar um grande alívio e estímulo ao investimento. Mas os mesmos empresários que se esconderam detrás dos tradicionais protestos da Fiesp a cada aumento dos juros e criticaram a sobrevalorização do real já estavam posicionados em vários campos. Por exemplo, endividados em dólares para aproveitar os juros baixos no exterior, e, portanto com receio da desvalorização, que aumentaria o custo da sua dívida. Ou diversificando seus investimentos para setores financeiros, apostando na manutenção dos juros altos. Ou ainda se envolvendo com importações de uma parcela cada vez maior da cadeia produtiva na qual atuam. Guido Mantega comentou tratar-se de um processo de desintoxicação que levaria um tempo.

Na luta contra os interesses dos contratos da energia elétrica, a presidente Dilma falou grosso no horário nobre da televisão, denunciando os interesses espúrios que estavam resistindo à política de governo. Explicou sua estratégia ao povo e conseguiu aliados que se mantiveram fiéis, em particular na campanha da Fiesp em defesa da posição do governo, no final de 2012. A renegociação dos contratos com as concessionárias era imprescindível para o governo poder baixar a tarifa de energia elétrica aos consumidores.  Mesmo assim, essa política continua sendo lembrada com outros propósitos, para mostrar que o governo Dilma não manteve a promessa de Lula de não quebrar contratos.

Mas, no caso da ousada política de câmbio e juros, o governo Dilma não elaborou um discurso político com início, meio e fim para mobilizar as tropas e os ânimos do povo brasileiro. Consegue-se, com um conjunto de medidas inteligentes, desvalorizar o câmbio, levando o real de um patamar de 1,50 por dólar para 2, mas tentando o tempo todo mostrar-se fiel ao dogma do câmbio flutuante e negando que houve uma  política de câmbio administrada em prol do desenvolvimento do Brasil.

Da mesma forma, em 2012,  houve uma tentativa fadada ao fracasso de fingir fidelidade (são quatro palavras começadas em “f”. Eu sugiro “cujo fracasso era previsível, ao tentar manter fidelidade”) ao paradigma do superávit primário, quando os interesses do desenvolvimento brasileiro fizeram o governo direcionar recursos públicos a outros fins que não os de pagamento dos juros em volumes superiores aos previstos no início do ano. Causou confusão na base governista sem, evidentemente, convencer os analistas do mercado financeiro da sinceridade das suas afirmações.

Alternativa desenvolvimentista
Tínhamos perdido o bonde da história? Não estava pronto o clima para uma campanha voltada ao povo explicando e defendendo o patamar dos juros, numa lógica de impor de vez uma orientação neodesenvolvimentista? Não seria possível, impondo por mais algum tempo o absenteísmo aos impulsos rentistas, apontar um horizonte com ganhos para pelo menos uma parte do capital produtivo, abrindo a possibilidade de se fazer alianças, como ocorreu no caso da renegociação dos contratos de eletricidade? Teria havido descontrole inflacionário seguido de fuga de capitais? Não se trata de falta de oportunidade para investimentos lucrativos no setor produtivo.  Pelo contrário. Mas permanecem alternativas mais interessantes. Inclusive, mas não só, esperar que o governo, no desespero, ofereça ainda melhores condições para garantir lucros, como é o caso das concessões.

Seja como for, depois de oito meses o governo cedeu e iniciou um novo ciclo de aumento de juros. O primeiro foi de 0,25% em abril último e depois em um ritmo de 0,5% a cada reunião do Copom. As “expectativas do mercado” vieram acompanhadas de uma retórica de risco de estatização da economia. Para culminar, nas palavras da mais nova defensora do dogma macroeconômico tucano, Marina Silva, haveria o risco de uma “guinada chavista”. As referências ao “tsunami financeiro” e à “intoxicação da economia” ficaram isoladas e não chegaram a compor uma narrativa com início meio e fim, apontado uma estratégia de impor limites aos setores rentistas em favor de uma aliança produtivista. Na verdade não sabemos se havia esse horizonte de uma guinada desenvolvimentista na estratégia do governo ou se essa interpretação já era o que os ingleses chamam de “wishful thinking”.
 
Os números da escolha
O déficit na conta corrente aumentou em números absolutos e em percentagem do PIB devido, em grande parte, ao aumento do déficit comercial da manufatura: US$ - 28,3 bi (1,91% do PIB) em 2008; US$ -47,5 bi (2,28% do PIB) em 2010; - US$ 54,2 bi (2,5% do PIB) em 2012 e expectativa para esse ano de US$ - 78,3 bi (3,67% do PIB).
A taxa de investimento anualizada em relação ao PIB caiu de 19,5% em 2010 para 18,3% no segundo trimestre de 2013.

Não podemos deixar de observar um dado curioso. O que sustenta as contas externas do Brasil, além da exportação de produtos primários (aumentando, diga-se de passagem, o peso do agronegócio, não somente na economia, mas também na política brasileira) são os chamados investimentos externos diretos (IED), investimentos de empresas multinacionais. Esses ultrapassaram durante o governo Dilma todas as expectativas do mercado e do próprio governo, superando US$ 60 bi por ano. Dados da Unctad, que sistematiza os fluxos dos IED a cada ano, mostram que o Brasil ficou, em 2012, em terceiro lugar como receptor destes investimentos, atrás somente dos EUA e da China/Hong Kong.  Qual estratégia do governo para aproveitar esse apetite?
Considerações finais: A dinâmica do mercado interno continua, a massa salarial se mantém firme e gera emprego no setor de serviços, que não sofre do fenômeno devazamento. Dados de outubro de 2013 referentes a outubro de 2012 mostram um avanço do varejo, ampliada de 7,8%.

É possível manter essa lógica? Talvez sim, e muito provavelmente até as eleições, mas debaixo do guarda-chuva de uma predominância da lógica rentista que impõe limites a avanços na distribuição de renda e riqueza.

Se o horizonte for a eleição de 2014, não há motivo para preocupação.
Mas se o horizonte for garantir uma política consistente de recuperação da capacidade industrial-tecnológica com aumento de produtividade e geração de empregos cada vez mais qualificados e avançar no processo de redistribuição de renda e riqueza... como garantir que a explicação de Lula para apostar na Dilma em 2014, expressa em entrevista ao jornal argentino Página12, em outubro último se materialize de fato? Na ocasião, ele afirmou “Eu tenho a seguinte convicção: assim como meu segundo mandato foi muito melhor que o primeiro, o segundo mandato da Dilma também será”.

Oxalá!


*Giorgio Romano Schutte é professor de Economia e Relações Internacionais da Universidade Federal do ABC (UFABC). 
 

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