quarta-feira, 15 de janeiro de 2014

Eufemismo até no lobby

por Heloísa Villela, no Brasil Econômico, no Informe New York, transcrito do site Viomundo
 
O título do e-mail me deixou os olhos arregalados.
O remetente era uma organização respeitada, que produz informações confiáveis.
Mas as palavras estavam lá, taxativas: “o lobista morreu”.
Não um lobista em particular. Mas a “profissão” em si.
Portanto, TODOS os lobistas.
Era uma notícia bombástica demais para ser verdadeira.
Afinal, são eles, os lobistas e o dinheiro que investem, em nome de seus clientes, nas campanhas eleitorais americanas que dominam a política do país. Abri o e-mail imediatamente.
Um texto inteligente e bem-humorado recordou um pouco da longa vida do “lobista” morto. Ele tinha já seus 150 anos e, coitado, sempre foi vítima de piadinhas, acusações e abusos verbais.
Mas entrou no século XXI com tudo! O governo passou por uma bela expansão e, com o país metido em duas guerras, não faltava trabalho. Em 2010, os lobistas faturaram, apenas em Washington, US$ 3,55 bilhões. Porém, essa fama de distorcer o sistema político, influenciar as decisões em Washington, trabalhar com dinheiro, por dinheiro e somente pelo dinheiro estava pesando. Foi então que surgiu a solução. Neste ano, os profissionais do ramo não se reuniram, como costumam fazer em todo fim de ano, em uma convenção nacional de lobistas. Eles participaram do encontro anual da “Associação de Profissionais de Relações com Governos”.
Piadinha boa do e-mail.
Me fez pensar nos eufemismos que deslizam do discurso do governo com a intenção de deitar raízes no vocabulário popular e assim produzir aceitação de práticas deploráveis, despertar simpatia por causas injustas e outras gracinhas.
As palavras têm o poder de atiçar imagens na mente de quem as ouve ou as pronuncia.
Cuidar minuciosamente do discurso, como faz a Casa Branca, tem justamente esta intenção: produzir a imagem desejada na mente da população.
Daí o “dano colateral” (collateral damage) no lugar de “civis mortos” ou “morte de inocentes”, que remete imediatamente a crianças dilaceradas, baleadas ou atingidas por bombas e mísseis.
Em uma prova de desfaçatez incalculável, o governo americano também adotou a expressão “técnica de interrogatório acentuada” ao se referir de forma genérica à tortura.
A “Guerra contra o Terror” de George W. Bush deu lugar às “Operações de Contingência no Exterior” de Barack Obama.
Não existe guerra. Ao menos para os americanos já que mais e mais são aviões controlados por controle remoto, do conforto das instalações americanas na Virgínia ou em outros estados, que lançam mísseis e eliminam terroristas, com ou sem a produção de “danos colaterais”.
Obama, ao contrário de Bush, preferiu matar os suspeitos do que prendê-los.
Guantânamo se tornou uma vergonha e um abacaxi.
Os presos que mofam lá há mais de uma década, para Obama, estão em uma situação de “detenção prolongada”, não mais presos por tempo indeterminado, sem direito a julgamento.
Em um ensaio publicado em 1946, o escritor e jornalista britânico George Orwell explicou com clareza do que se trata toda essa neblina verbal.
Ele disse que o objetivo dessa linguagem política obscura é “fazer com que mentiras soem verdadeiras e o assassinato respeitável”.
Ou, como disse o também britânico Quentim Crip, todo eufemismo “é uma verdade desagradável com perfume diplomático”.
Os Estados Unidos não inventaram essa brincadeira.
A Alemanha nazista foi mestra no uso dos eufemismos.
Basta lembrar do primeiro grande ataque aos judeus na Áustria e na Alemanha, em novembro de 1938, que resultou na morte de 96 judeus e no envio de outros 30 mil para os campos de concentração.
Ainda hoje, a data, considerada o início do Holocausto, mantém o nome que ganhou na época:
“A Noite de Cristal”, como se apenas alguns vidros tivessem sido quebrados.
Reinhard Neydrich, cabeça do escritório de segurança do Reich, se preocupou especificamente com o problema da disseminação de informações durante o nazismo.
Não queria que soldados e oficiais que voltavam do Leste falassem das atrocidades testemunhadas por lá.
Vários eufemismos foram adotados para substituir a realidade nua e crua dos campos de concentração.
As câmaras de gás se chamavam “casas de banho”.
“Reassentamento” nada mais era do que o assassinato de judeus.
“Liberar uma área”, torná-la livre de judeus, significava matar todos os judeus daquela região.
A lista é longa…
Mas os Estados Unidos entenderam rapidamente a importância de tomar as rédeas do vocabulário como forma de mobilizar a população ou tornar a realidade mais palatável.
Já no fim da Segunda Guerra Mundial, Tio Sam fez um ajuste importante. Transformou o Departamento da Guerra em Departamento de Defesa.
A nascente superpotência não agride.
Somente se defende e abraça a causa dos direitos humanos pelo mundo afora.
Daí, no afã de proteger mais alguns milhares, os Estados Unidos, com o apoio da ONU, bombardearam a Iugoslávia em 1999.
Como disse o professor de história da Universidade da Califórnia Perry Anderson, em “American Foreign Policy and Its Thinkers” (Política Externa Americana e seus Pensadores), “foi a primeira vez que um bombardeio aéreo foi declarado uma intervenção humanitária”.
Belgrado ainda tem prédios destruídos pela agressão.
Eles foram intencionalmente preservados, aos pedaços, como lembrança.
Mais recentemente, foi a vez da Líbia de Muammar Kadaffi.
Em 2011, o “esforço humanitário” americano veio dos céus novamente.
Mas nunca foi tratado, pela Casa Branca, como um bombardeio.
Não houve “hostilidade”, explicou o governo, porque os soldados americanos nem pisaram em solo estrangeiro.
Houve apenas uma “ação militar cinética”.
Como é que é?
Segundo o Dicionário Aurélio, cinético é o que produz movimento. Então está explicado.
Foi bastante “cinética” a participação dos Estados Unidos em toda a América Central e na nossa América do Sul.
Provocou mesmo um bocado de movimento.
E levou tempo… Em alguns casos, mais de 20 anos para reencontrar o rumo que a movimentação toda provocada pelo grande vizinho do Norte provocou nas nossas bandas derrubando governos democráticos e garantindo a permanência de ditaduras ao longo de quase toda a região ao Sul da Flórida.

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