sábado, 22 de fevereiro de 2014

A UTOPIA DE MORUS


Frei Betto

       João Paulo II consagrou, em 2000, o inglês Thomas Morus (1478-1535) padroeiro dos políticos. Fez boa escolha,  considerada  a ambiguidade da maioria dos políticos. Canonizado em 1935  pelo papa Pio XI e pouco conhecido por sua suposta santidade, Morus é famoso por ser autor de um  livro clássico, Utopia (1516), termo que  cunhou a partir do grego  utopos, que significa ‘lugar nenhum’.

     Morus inspirou-se  em Luciano, satírico grego do século  II, autor de História verdadeira, e em  Erasmo, de quem era amigo,  autor de Elogio da loucura (1511), que em carta  enviada a Morus  afirmou que “gracejos podem levar a algo mais sério.” É o que  faz a boa literatura de nosso Veríssimo.

     Em sua obra, Morus   descreve a comunidade de uma ilha onde não havia dinheiro nem  propriedade  privada; admitiam-se adoradores do Sol e da Lua. “Todos  eram livres para  praticar a religião que bem entendessem, e tentar  converter as outras pessoas  para a sua própria fé, desde que o fizessem tranquila e educadamente, por meio de argumento  racional.”

     Tinha o autor por objetivo protestar  contra as  injustiças da Inglaterra de sua época: pobreza generalizada, criminalidade (e apelos à redução da maioridade penal…), pena de morte para quem furtava para matar a fome. “Vocês  ingleses” - diz o narrador da Utopia -, “me fazem lembrar os  professores incompetentes, que preferem reprovar os seus alunos que  ensinar-lhes. Em vez  de infligir essas punições horríveis, seria muito  mais adequado proporcionar a  todos algum meio de sobrevivência, de  modo que ninguém se encontrasse sob a  horripilante necessidade de se  tornar, primeiramente, um ladrão, e depois um   cadáver.”

     Na ilha de Morus “todos recebem uma porção  justa, de  modo a não haver jamais pobres ou mendigos. Ninguém é  proprietário de nada,  mas todos são ricos – afinal, que riqueza maior  pode haver que a alegria, a  paz de espírito e estar livre da angústia?”

     Dois fatores fizeram Morus renegar suas antigas ideias: a Reforma  de Lutero e a sua nomeação a funcionário real, em 1518. Picado pela mosca  azul, o poder  lhe subiu à cabeça. Logo foi promovido a “conselheiro teológico” e, em  1529, nomeado Lorde Chanceler de Henrique VIII.

     O que ele   antes via como desejável, agora que chegara ao poder lhe parecia perigoso.  Preferiu esquecer o que pregou e escreveu. Embora a  comunidade da Utopia assemelhe-se ao comunismo, Morus, inimigo da  Reforma, passou a atacar a vida  comum dos anabatistas como terrível  heresia, e tomou a defesa dos ricos  proprietários de terras.

     Lorde Morus proibiu mais de cem livros, perseguiu  quem não professava a fé católica, entre os quais o teólogo  protestante William Tyndale, que traduziu a Bíblia para o inglês. Segundo seu biógrafo, John Guy, Morus aplicava severamente as leis que  decretava: “Vendedores de livros eram multados e presos, e seus  estoques de literatura  herética queimados em praça pública”, e eles obrigados a desfilar em feiras livres, cavalgando de costas, para que  o povo lhes atirasse frutas podres.

     No epitáfio que  cunhou para si mesmo, Morus afirmava orgulhoso  ter sido um “perseguidor de ladrões, assassinos e hereges”. O último termo foi   suprimido na reforma de seu túmulo, no século XIX.

     Em  1533,  Henrique VIII separou-se de Catarina de Aragão, apaixonado que  estava por Ana  Bolena. Como Roma lhe negou a anulação do casamento, a  fim de legalizar seu divórcio e sacramentar o novo matrimônio perante  a Igreja, o rei transferiu  para si a autoridade do papa e fundou a  Igreja Anglicana. Por se recusar a  aceitar Ana Bolena como rainha da  Inglaterra e ficar do lado do papa Clemente  VII, que excomungou Henrique VIII, Morus foi decapitado em  1535.

     O poder é  antiutópico ou distópico por natureza? Por que, hoje, tantos que  outrora elevavam sua voz contra a exploração do capital e desfraldavam  bandeiras progressistas, de leões bravios tornaram-se dóceis  cordeiros  do rebanho neoliberal?

     Penso que o poder, devido às  premências do presente, faz com que se perca a visão de futuro. E como  o  poderoso tende a perpetuar-se no cargo (vide as velhas raposas da política brasileira), procura reduzir o processo histórico a seu momento pessoal.  Julga-se início e fim, sem  consciência de que não passa de mediador (meio) de  um mandato popular.

     Daí o risco de transformar-se numa figura ridícula, sem honra biográfica, mera  caricatura de  suas ambições desmedidas. Em sua pobre topia, não há mais lugar para a utopia.

Frei Betto é escritor, autor de “Calendário do Poder” (Rocco), entre outros livros.   

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