terça-feira, 25 de fevereiro de 2014

O xadrez venezuelano, polarização crescente

por Wagner Iglecias, especial para o Viomundo
A situação política na Venezuela, como se sabe, é bastante complicada. Seguem alguns dados, personagens e variáveis a serem considerados nas especulações sobre o que pode vir a ocorrer no curto prazo naquele país.
Histórico de instabilidade: o chavismo, apesar dos 15 anos no poder, duração que dá uma impressão de grande estabilidade institucional, na verdade enfrentou problemas de ordem política inúmeras vezes. Exemplos foram o Golpe de Estado sofrido em 2002, a greve do setor petroleiro de 2002/2003, as agitações políticas do referendo revogatório de 2004, os protestos estudantis de 2007 e, mais recentemente, o forte questionamento que a oposição fez do resultado da eleição presidencial de abril de 2013, quando Nicolás Maduro venceu o direitista Henrique Capriles por apenas 1,5% de diferença no total de votos.
Polarização crescente: importante lembrar que meses antes, em dezembro de 2012, o mesmo Capriles havia vencido, também por margem bastante estreita (4%), o chavista Elias Jaua na eleição para o governo de Miranda, um dos mais importantes estados do país. E que um pouco antes o próprio Hugo Chávez já havia derrotado Capriles, na eleição presidencial anterior, por pouco mais de 7% dos votos. Margens estreitas, como há um bom tempo não se via nas urnas, mostrando que a sociedade venezuelana tem se polarizado cada vez mais em duas grandes metades.
Deterioração da economia: apesar da grita oposicionista de abril passado, o país vinha passando por uma situação política relativamente estável nos últimos meses. Após a recente vitória eleitoral do governo nas eleições municipais, Maduro chegou a reunir-se com prefeitos e governadores oposicionistas, quase selando um pacto de boa convivência.
Mas o que tem se deteriorado rapidamente é a situação econômica. O descontrole cambial, a escalada inflacionária e a escassez de produtos tem afetado principalmente as classes assalariadas e, desse modo, as próprias bases de sustentação do governo chavista, de cunho popular. Em meio à ofensiva das classes médias oposicionistas, fartas do chavismo há uns bons anos, as classes populares parecem se sentir desmobilizadas para defender o governo em uma conjuntura adversa, ainda que o chavismo esteja preparado para resistir a tentativas clássicas de golpe.
Poucas cartas na manga: e é exatamente a situação econômica ruim que hoje mais dificulta o chavismo em fazer o que tradicionalmente fez nos momentos de crise política nestes 15 anos: pisar no acelerador e aprofundar ainda mais as políticas públicas destinadas às massas. Para ganhar legitimidade, o chavismo fazia uso da renda petroleira que ingressava no país e impulsionava fortes políticas redistributivas, reduzindo a pobreza, o analfabetismo, a fome e a desigualdade social. O povão percebia, nas situações anteriores, que a direita ameaçava um governo que, ao fim e ao cabo, lhe era parceiro. Desta vez, porém, essa margem de manobra está bem mais estreita, dada as dificuldades econômicas que o país e o governo enfrentam. E é por serem sabedores disso que os oposicionistas radicalizam seu discurso e suas ações. Daí porque um radical como Leopoldo López, que esteve com Capriles no golpe de 2002 e que hoje está à sua direita, carregou multidões às ruas nos últimos dias e ganhou protagonismo na cena política do país.
A oposição partidária e a oposição nas ruas: a direita partidária é múltipla, como atestam os quase trinta partidos que compõem a Mesa de la Unidad Democrática, a coligação anti-chavista. E ela está dividida em relação ao que fazer neste momento de crise. A metade anti-chavista da sociedade, porém, parece cada vez menos dividida, e talvez cada vez mais propensa à radicalização, ainda que isso possa implicar em saídas estranhas aos mecanismos estabelecidos na Constituição. Como o referendo revogatório, por exemplo, que é uma espécie de recall previsto pela Carta Magna para a metade dos mandatos eletivos.
No caso de Maduro, previsto para ser realizado três anos após sua eleição, ou seja, em 2016. Ao que parece, porém, muitos anti-chavistas não querem esperar até lá, e menos ainda que o chavismo sem Chávez tenha tempo de se recuperar da perda de seu líder ocorrida ano passado. Nesse contexto, o chamado radical de Leopoldo Lopez (“A Saída”, ou seja, a interrupção imediata do governo Maduro) encontrou na massa muitos ouvidos receptivos. E deu-se assim a troca de liderança: entrou em baixa Capriles, mais moderado, e estão em alta Lopez e seus parceiros Maria Corina Machado, deputada federal de extrema-direita, e Antonio Ledezma, prefeito de parte da região metropolitana de Caracas, tão radicais quanto ele.
E fica a pergunta: o que será da Venezuela e de suas instituições caso a via defendida por eles prospere? Por outro lado, as divergências internas da oposição partidária não devem ser desprezadas, e eventualmente um maior diálogo entre o governo e os grupos oposicionistas que se opõem a Leopoldo poderiam reconduzir o país a uma situação menos turbulenta que a atual.
As Forças Armadas: diferentemente de 2002, quando a direita marchou pelas ruas de Caracas, arrancou Chávez do Palácio Miraflores e o trancafiou numa ilha, contando para isso com apoio de parte das Forças Armadas, o cenário atual provavelmente não permitiria que isso se repetisse. Pelo fato de que o chavismo hoje tem forte penetração nas forças militares e tem controle do aparato do Estado. A capacidade de reação numa situação dessas seria, assim, muito maior. A tática da extrema-direita parece ser, então, criar um ambiente de contestação permanente nas ruas, de modo a atrapalhar ou mesmo impossibilitar a governança, e não o assalto ao Palácio presidencial de Miraflores, como ocorrido em 2002. A lealdade das Forças Armadas, parte ideológica e parte pragmática, dependerá da capacidade de manutenção da ordem por parte de Maduro.
Mas e se o caos se estabelecer? Talvez a parte pragmática das Forças Armadas poderia tender a apostar numa saída alternativa, uma transição negociada, de modo a evitar a falência do governo. Contudo ressalte-se que a capacidade de manutenção da ordem por parte do governo parece longe de estar esgotada, e a capacidade, por parte da oposição, de manter um permanente estado de mobilização das ruas em algum momento poderá atingir o seu limite. E isso para não dizer, além de tudo, que a capacidade de resistência dos coletivos chavistas situados fora do governo não é desprezível.
Vale ressaltar, por outro lado, que no caso de Caracas as marchas oposicionistas têm ocorrido nos últimos dias em regiões mais populares, mais próximas do centro e em direção ao oeste, onde localizam-se exatamente o Palácio Miraflores e também a enorme favela 23 de Enero, majoritariamente chavista. Talvez por isto dessa vez, ao contrário da política normalmente condescendente com os protestos opositores realizados em anos anteriores em zonas ricas ou de classe media, as forças policiais estão tratando de reprimir e desmobilizar as manifestações em várias regiões da capital e em diversas cidades do país.
Comunidade internacional: no chavismo se diz que lideranças políticas estrangeiras e mesmo outros países teriam interesse na desestabilização da situação política da Venezuela. Papel relevante na estabilização política venezuelana, no entanto, podem jogar a União de Nações Sul-Americanas (UNASUL) e a Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos (CELAC), para as quais a instabilidade num país-chave como a Venezuela pode constituir-se em fator de turbulências em toda a região. Destaque-se nisto o Brasil, que tem na Venezuela um importante parceiro no Mercosul e um de seus mais importantes parceiros comerciais nas Américas, bem como um dos principais destinatários de seus investimentos públicos e privados no exterior.
Por ora, parece ser isso. Parece. A situação venezuelana hoje é como um cipoal em meio à neblina. De situações incertas de uns tempos pra cá se costuma dizer que pode acontecer de tudo, inclusive nada. No caso da Venezuela, no entanto, essa frase talvez não seja uma alternativa no horizonte.
Wagner Iglecias é doutor em Sociologia e Professor do Curso de Graduação em Gestão de Políticas Públicas e do Programa de Pós-Graduação em Integração da América Latina da USP.

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