sexta-feira, 21 de março de 2014

O debate hoje é como frear a violenta ofensiva da direita neoliberal

Valeria Ianni - Revista La Llamarada - Transcrito do Carta Maior

postado em: 20/03/2014
A Venezuela está hoje em meio às intenções desestabilizadoras da direita, aos limites próprios ao processo bolivariano, e à possibilidade de a classe trabalhadora e o movimento popular fazerem avançar um projeto não isento de tensões e contradições.

Entrevista com Franck Gaudichaud, membro do corpo editorial do Rebelión.org, doutor em Ciência Política e autor de vários libros sobre América Latina, com uma pesquisa – orientada por Michael Löwy – sobre Poder Popular e os Cordones Industriales sob o governo de Allende no Chile (1970 -1973).

Como o senhor caracteriza a situação atual na Venezuela? O que se pode concluir dali?

Franck Gaudichaud: Como ponto de partida, é preciso reconhecer que estamos em meio a uma tremenda guerra midiática global contra o processo bolivariano. Por isso, é fundamental criar espaços de contrainformação. Para começar, diante de tanta desinformação, é preciso voltar a ressaltar que o processo bolivariano é um processo de longo prazo com amplas conquistas sociais (saúde, educação, redução da desigualdade), democratização (nova Constituição), crescente empoderamento e inclusão política das classes populares em uma relação muito tensa com o líder carismático que foi o Chávez. Esse processo também foi fundamental na constituição de novas soberanias nacional-populares e na criação da Alba, da Unasul e da Celac. Dessa forma, o retorno do neoliberalismo naquele país teria importantes e imediatos efeitos colaterais em toda a região. Tudo isso parece óbvio, mas é indispensável ressaltar o essencial e as correlações de forças geopolíticas em momentos nos quais os meios de comunicação dominantes – e a oposição venezuelana – falam de “ditadura castro-comunista” e de “genocídio na Venezuela”...

A situação atual é sumariamente tensa devido ao fato de que o setor mais reacionário da oposição apostou na violência e na desestabilização vinda das ruas.

Nesse contexto, existe uma tendência dentro das correntes de esquerda a simplificar nosso entendimento sobre a conjuntura, dizendo que ou se está contra o imperialismo ou a favor do golpe de estado “fascista”. Essa leitura binária me parece nefasta. Evidentemente, é preciso denunciar de maneira veemente a intenção “insurrecional” da direita, bem como se opor a ela. Sabemos que os EUA têm claros interesses geopolíticos nessa desestabilização; os laços entre os “Falcões” de Washington e a fração da oposição encabeçada por Leopoldo López na Venezuela não são uma teoria da conspiração, mas sim fato objetivo. Também existe uma intervenção real vinda da Colômbia e do “uribismo”, bem como incursões paramilitares, sobretudo no estado fronteiriço de Táchira. Esses elementos são importantes.

Agora, estamos diante de um golpe de Estado, como o de abril de 2002? Pode-se falar em “fascismo”, sem com isso conseguir definir a dinâmica da oposição ao chavismo? Eu acho que não. Primeiro, porque as correlações reais de força são diferentes em relação a 2002. O Estado Maior e as Forças Armadas por ora apoiam o governo sem precedentes; a grande burguesia não aposta na violência e em uma saída extraconstitucional. A Fedecámaras e os principais patrões (como Mendoza da Polar) participaram da conferência de paz com Maduro e condenaram a violência nas ruas. Isto é, os elementos-chave da conjuntura de abril de 2002 não estão presentes na conjuntura atual. Sim, há um setor da direita em torno do Leopoldo López que aposta claramente na violência das ruas, fazendo um chamado para derrotar Maduro. E o mais preocupante: esse setor conseguiu mobilizações muito importantes no estado de Táchira, em Mérida e com o movimento estudantil, mas também nas ruas de Caracas.

É certo que os participantes dessas mobilizações provêm essencialmente dos bairros ricos, da classe alta, média-alta, mas também da classe média já não tão alta. Setores violentos da direita estão ganhando espaço na sociedade, fazendo uso da violência contra trabalhadores e militantes da periferia, erguendo barricadas (as “guarimbas”): são responsáveis pela grande maioria dos assassinatos das últimas semanas. A oposição neoliberal está parcialmente fragmentada, mas cada um ocupa seu papel contra o processo: desde Henrique Capriles e o COPEI (Comitê de Organização Política Eleitoral Independente), que dizem apostar no diálogo após sucessivas derrotas eleitorais, até partidos como o Voluntad Popular, de Leopoldo López, ou como a associação Súmate e a deputada María Corina Machado, apostam na criação de um clima semi-insurrecional, sem esperar pelas próximas eleições. Alguns analistas, como Ignacio Ramonet, destacaram a existência de um “golpe de Estado lento”, baseado nas teorias de desestabilização de Gene Sharp.

No entanto, eu acredito que, da parte da esquerda anticapitalista, a questão-chave não é apenas denunciar tudo isso, mas também continuar pensando “abaixo e à esquerda” para entender – de maneira crítica e dialética – quais são os elementos dentro do próprio espaço do chavismo que permitem a existência de tanto descontentamento em vários estratos da sociedade, e não apenas no movimento estudantil. Nesse sentido, precisamos questionar também as contradições e fragilidades da “revolução bolivariana” e escutar as vozes críticas do movimento popular e revolucionário dentro e fora do chavismo. No Rebelión, temos publicado também vários autores venezuelanos que vão nessa direção: Roland Denis, Simón Rodríguez P., Javier Biardeau, Gonzalo Gómez etc.

Quais são essas principais fragilidades próprias ao chavismo?

Primeiro, é preciso diferenciar o chavismo governamental do povo trabalhador bolivariano. Eu entendo que haja tensões aí, sobretudo um ano após a partida de Hugo Chávez, que foi um gestor central do processo, capaz de oscilar entre a verticalidade do líder e a horizontalidade da participação popular. Na era do “chavismo sem Chávez”, Maduro tem a legitimidade democrático-eleitoral: ganhou a eleição presidencial, de maneira justa, e as eleições municipais confirmaram essa nova vitória bolivariana nas urnas (com 17 vitórias sobre 18 eleições). Mas Maduro não tem a liderança carismática de Chávez, ao passo que, ao mesmo tempo, existe uma degradação econômica acelerada.

Evidentemente, fala-se muito de insegurança – a direita, em particular –, mas isso também representa uma grande preocupação diária para as classes populares. É no plano econômico que os problemas mais afloram ultimamente: o Banco Central da Venezuela reconhece um desabastecimento em torno de 28% dos produtos e uma inflação de 56% em 2013, que corrói os salários dos trabalhadores. A má gestão econômica e do tipo de câmbio reforça a especulação, o mercado negro e o monopólio por parte da burguesia em uma escala maior. Alguns economistas marxistas, como Manuel Sutherland ou Víctor Álvarez, falam da maior fuga de capitais da América do Sul. São vários “planos Marshal” que fogem em direção a Miami. É certo que a inflação e o desabastecimento são produto da ofensiva das classes dominantes, mas também de uma política econômica ineficiente.

A corrupção é outro pano de fundo após 15 anos do processo bolivariano: como pretender construir o “socialismo do século XXI” nessas condições de corrupção burocrática? Diante das dimensões do fenômeno, ligado ao modelo de capitalismo petro-rentista ainda hegemônico, não basta ter um ministério do “poder popular”... Não vejo outra solução senão criar fiscalização desde baixo, fomentar a democracia participativa e os conselhos de trabalhadores, reforçar os conselhos comunais existentes. Caso contrário, como efetivamente parar a ofensiva da direita? Com diálogo e paz com os setores patronais, como a Mesa de Unidad Democrática, com o Cisneros e a boliburguesia? Por outro lado, recordemos a impunidade até hoje para os responsáveis do golpe de abril de 2002 ou dos assassinatos de abril de 2013.

Também é muito preocupante a impunidade diante dos assassinatos anti-sindicais que existem no país, dos níveis de repressão contra algumas greves trabalhadoras ou da crescente militarização de alguns territórios (o que provocou mal-estar e distanciamento público por parte do governador bolivariano do estado de Táchira).

Nos últimos dias, o presidente Maduro e a promotoria reconheceram a responsabilidade da guarda nacional e da polícia bolivariana na morte e nos maus tratos de vários manifestantes. Tomara que isso não fique impune, pois o Estado tem que ser o garantidor dos direitos fundamentais.


Você se referiu criticamente ao caminho que o governo está adotando para frear a ofensiva da direita: qual seria, em sua opinião, o caminho mais eficiente para enfrentá-la?

Sem dúvida, como propõem alguns setores anticapitalistas venezuelanos, a melhor maneira de se defender é por meio do aprofundamento da revolução e das conquistas do processo; é reforçando uma visão crítica e popular, independente da burocracia ou da boliburguesi, apontando para um empoderamento desde baixo. Eu acredito que está perfeitamente justificada a intenção, por parte do governo, de colocar panos frios na violência das ruas, de fazer o chamado ao diálogo e à paz.

Agora, sim ao diálogo e à paz, mas para quê e com quem? Tomara que o diálogo prioritário seja com os setores populares mobilizados, com os trabalhadores organizados que buscam os caminhos do poder popular, com os trabalhadores do campo que querem a reforma agrária, com o povo indígena, juntamente com mais ações concretas para melhorar a situação econômica. Evidentemente, Maduro já fez alguns anúncios diante da “guerra econômica”, mas, além da “lei de preços justos”, que é positiva, foram medidas de ajuste e desvalorização.

Ao contrário, pequenas correntes, como Marea Socialista e outras fora do chavismo (libertárias, marxistas, trotskistas), propõem fazer frente à direita neoliberal adotando medidas revolucionárias: por exemplo, assumir o controle do comércio exterior, mas com fiscalização cidadã (para evitar a corrupção); combater fortemente a especulação e centralizar as divisas estrangeiras; intervir no sistema bancário para que a renda petroleira já não seja captada em parte pelos monopolistas; apoiar com mais decisões os conselhos comunais, a produção nacional de alimentos e um sistema de planejamento nacional democrático etc. Insisto, só estou retomando declarações de coletivos bolivarianos e anticapitalistas venezuelanos. É claro que avançar nessa direção significa também começar a pensar as contradições internas do movimento popular, assumir suas fragilidades e limitações, bem como o peso do bonapartismo político presente no PSUV, por exemplo.

Quais semelhanças e quais diferenças podemos encontrar entre o processo do Chile durante o governo de Allende e o da Velezuela? Principalmente em função da relação entre os espaços de organização popular e um Estado que, apesar de todas as mudanças, continua sendo um Estado capitalista.

Primeiro, isto me parece fundamental: na Venezuela, ainda existe o Estado capitalista, embora com uma nova institucionalidade muito mais democrática. Predomina o capitalismo estatal-rentista e mais de 70% do PIB está nas mãos do setor privado. Localizar-se estrategicamente significa primeiro saber onde estamos parados. No Chile de 1973, a Unidad Popular significou, assim como na Venezuela, grandes conquistas democráticas, sociais, e empoderamento desde baixo, tudo isso apoiado em uma classe trabalhadora muito organizado no plano sindical e político. De fato, na Venezuela, uma grande deficiência é que não se conseguiu construir um movimento trabalhador e sindical classista e democrático autônomo da burocracia estatal.

Outro elemento interessande da experiência chilena é a relação tensa entre movimento popular e governo Allende. Eu estudei os cordones industriales[ii] como organismos sui generis de poder popular e, em vários momentos, os cordones foram capazes de parar diante de Allende e reivindicar medidas revolucionárias.

Outra questão para debate é justamente até que ponto podemos confiar na institucionalidade, na possibilidade de “usar” o Estado para reformar desde cima a sociedade: isto é, se construímos o socialismo por meio do Estado ou se o construímos por meio do poder popular constituinte, do controle por parte dos trabalhadores e da participação cidadã. Na Venezuela, por exemplo, experiências de cogestão, como o Sidor, foram rapidamente descontinuadas. O mesmo aconteceu com o complicadíssimo tema da violência política, do papel do imperialismo e das Forças Armadas: o certo é que, na Venezuela, diferentemente da via chilena, pensou-se em um processo “pacífico, mas armado”.

Existe, na Venezuela, uma dinâmica cívico-militar bem diferente da experiência chilena. Para além disso, a “revolução bolivariana” atualiza um debate pendente na Unidad Popular: o que podemos fazer com o Estado e com qual tipo de Estado? Até que ponto o governo e as eleições são uma ferramenta de conquista democrática e como se apoiar decididamente em formas de poder popular para avançar? Como enfrentar com a melhor correlação de forças as direitas e o imperialismo?

Ver: F. Gaudichaud, “As tensões do processo bolivariano: nacionalismo popular, conquistas sociais e capitalismo rentista”, Rebelión, dez. 2012, www.rebelion.org/noticia.php?id=160554.

[ii] Ver: F. Gaudichaud, “Poder popular e cordones industriales no Chile”, Santiago, LOM, 2004.

Tradução: Daniella Cambaúva


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