domingo, 24 de agosto de 2014

A ausência e a presença de Celso Furtado

Paulo Kliass




O Centro Celso Furtado organizou um importante evento para marcar os dez anos da morte do renomado pensador e economista brasileiro. Contando com a participação de inúmeros palestrantes de vários países, foi realizado no Rio de Janeiro (na sede do BNDES) o 2º Congresso Internacional Celso Furtado, cujo tema recebeu o sugestivo título de “Um novo desenvolvimento para uma nova democracia”.

Apesar da inquestionável contribuição do homenageado para a produção do pensamento das ciências sociais e da economia em nosso País, na América Latina e no resto do mundo, o fato é que a carreira de Celso teve sua trajetória bastante dificultada em nossas terras. O advento do golpe militar em 1964 funcionou como um sério obstáculo à continuidade de sua produção intelectual, bem como de sua prática política. Ele foi cassado logo na primeira lista das perseguições políticas, com base no AI nº 1, e se viu obrigado a sair do Brasil, que assistia a cada dia mais o cerceamento das liberdades democráticas e o aprofundamento do regime ditatorial.

As prisões, a censura e todas as demais formas de violência perpetradas pelo regime contra seus opositores instalaram-se como prática generalizada. Assim, surge também uma dificuldade para divulgação da obra de Furtado. No plano da política econômica adotada pelos governos comandados pelos militares o distanciamento foi ainda mais brutal. As mudanças de orientação vieram com a ascensão de figuras como Roberto Campos, Mário Henrique Simonsen e Delfim Neto, entre outros, ao núcleo dos ministérios da economia.

Assim, a trajetória política e profissional de Celso Furtado é abortada no interior do País. Esse movimento contra o pensador reflete, na verdade, a derrota imposta ao projeto em fase de implementação até aquele momento do golpe: a tentativa de colocar em marcha um modelo baseado nas concepções do chamado “desenvolvimentismo”. A estratégia golpista das elites conservadoras vinha sendo aprimorada desde a eleição de Getúlio Vargas em 1950. Traduzia-se no bombardeamento de toda e qualquer opção política que se voltasse para a melhoria das condições de vida da maioria da população ou que esboçasse o menor enfrentamento de questões estruturais, a exemplo da reforma agrária ou das empresas multinacionais.

Getúlio foi levado ao suicídio como gesto político extremo, na tentativa de evitar o golpe já em marcha em 1954. O governo de Juscelino foi tolerado em razão das alternativas que abria à ampliação do leque do investimento privado. Depois da tentativa golpista de Jânio Quadros, o governo de João Goulart continuou aprofundando o projeto nacional desenvolvimentista. Essa opção foi considerada inaceitável pelas forças representativas dos interesses da burguesia e a ruptura da ordem constitucional “manu miltari” foi saudada com o espírito tipicamente macartista de seus líderes.

Ao longo de pouco mais de uma década, Celso Furtado havia construído uma estratégia impressionante. No início da década de 1950 estava no centro da Comissão Econômica para a América Latina, organismo encarregado de pensar e atuar na região. Logo em seguida, participa do Grupo Misto CEPAL-BNDE, de onde sai o importante relatório para elaboração do Plano de Metas de JK. Em seguida, assume uma diretoria do BNDE. Na seqüência, é convidado para a diretoria da recém criada SUDENE. E quando Jango assume a Presidência da República, Celso ocupa a pasta do Planejamento em 1962, encarregado pela elaboração do Plano Trienal do governo.

Um dos mais aspectos mais instigantes de sua personalidade era a notória capacidade de conciliar essa intensa atividade da práxis com a refinada elaboração de natureza teórica e conceitual. Assim, por exemplo, datam desse mesmo período obras fundamentais de sua autoria, tais como “Formação Econômica do Brasil”, “Desenvolvimento e subdesenvolvimento” e “Operação Nordeste”, entre outras. Durante esse período de extrema efervescência política e social, Furtado lança as bases de um importante modelo de interpretação da realidade econômica de nosso país. Indo na direção oposta das receitas oferecidas pela teoria ortodoxa, ele se filia ao amplo movimento heterodoxo, em escala latino-americana e internacional, que propõe a ruptura com as amarras estruturais que estariam a impedir o verdadeiro desenvolvimento brasileiro e dos países do Terceiro Mundo de forma geral.

A vitória do golpe de 1964 e a implementação da política econômica desde então representaram um sério obstáculo para a continuidade do projeto desenvolvimentista em nossas terras. Uma década e meia mais tarde, em escala internacional, a chegada ao poder de Thatcher na Inglaterra e Reagan nos Estados Unidos teve o significado de uma nova derrota a esse projeto. A hegemonia política e ideológica do pensamento neoliberal contribui para manter o pensamento estruturalista fora das agendas oficiais. A resistência se fazia na esfera das universidades, de algumas instituições de pesquisa e das entidades vinculadas ao movimento sindical, social e popular.

Ainda que a transição democrática e a anistia tenham permitido a volta de Celso ao Brasil, sua inserção no espaço político acabou por ficar mais restrita à área cultural, em uma rápida e polêmica passagem à frente do Ministério da Cultura durante o governo Sarney. Isso porque o território da economia estava dominado pelo pensamento financista do liberalismo radical. Não havia possibilidade de se aproveitar as proposições e as alternativas do estruturalismo e do desenvolvimentismo na condução da agenda conservadora. Reformas estruturais de natureza progressista, propostas envolvendo a recuperação da ação do Estado eram consideradas heresias pelo “establishment” ainda dominante.

Dessa forma, o pensamento hegemônico impunha a ausência das proposições de Furtado e de qualquer tentativa de interpretação da dinâmica econômica que fugisse ao menu determinado pelo Consenso de Washington. A tradição estruturalista era mantida à distância do chamado “mainstream”, para evitar que as idéias perigosas do desenvolvimentismo contaminassem as instituições oficiais, os meios de comunicação ou as universidades.

A ironia da História, no entanto, fez com que a crise financeira internacional embaralhasse todo o cenário. A implosão das principais instituições financeiras no próprio quintal dos Estados Unidos ocorre em 2008, ou seja, poucos anos depois do falecimento do pensador. Uma das conseqüências de tal fenômeno foi o reconhecimento generalizado da incapacidade do instrumental teórico conservador em explicar e intervir na própria política econômica. Afinal, até a ante-véspera do desmantelamento do castelo de cartas, a grande maioria dos defensores do modelo acreditavam plenamente que as soluções de mercado, sem a intervenção do Estado, seria a melhor forma de buscar o equilíbrio e alcançar a harmonia. Triste fim!

Dessa forma, tem início um importante movimento de recuperação das ideias alternativas e heterodoxas por todos os continentes. E o pensamento da chamada Escola da CEPAL volta à cena, tendo a obra do autor brasileiro como um dos seus principais expoentes. A presença do legado de Celso é saudada e requisitada, em razão do imenso vácuo de explicações a respeito da crise e da realidade do sudesenvolvimento.

O espírito furtadiano passa a se fazer presente não mais apenas nos espaços acadêmicos e universitários, nas trincheiras de resistência na luta social. A mudança de paradigma e a necessidade de se fortalecer a implementação de políticas públicas de conteúdo diferente da época anterior traz à cena o cardápio de natureza desenvolvimentista. Os governos criam instituições para dar conta dessas tarefas, ao reconhecer a necessidade de intervenção e regulação do poder público. Os espaços multilaterais conhecem mudanças significativas, seja na orientação de FMI e Banco Mundial, seja em articulações regionais fora da hegemonia dos EUA ou mesmo na criação de organismos como o Banco dos BRICS.

Parece claro que a realidade social e econômica também mudou e não se trata simplesmente de uma busca de copiar mecanicamente as sugestões do passado. Porém, trata-se de recuperar e atualizar as bases e os fundamentos de suas proposições, daí a razão do adjetivo “novo” à frente do desenvolvimentismo. A um só tempo uma exigência e uma necessidade de trazer mais luzes para interpretação da complexidade do quadro contemporâneo, mas que deve trilhar o caminho de uma também “nova” democracia. Uma sociedade que seja capaz de superar os traços de injustiça e desigualdade, onde os frutos do progresso passem finalmente a ser distribuídos de forma equânime entre os cidadãos.


(*) Paulo Kliass é Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental, carreira do governo federal, e doutor em Economia pela Universidade de Paris 10.

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