sábado, 16 de agosto de 2014

Entrevista exclusiva com Olivio Dutra: “Penso que fizemos até muito, mas estamos devendo muito mais ainda.”

Sunday, August 3rd, 2014
Olívio Dutra
Olívio Dutra
Em entrevista exclusiva ao site Página 13, o ex-governador do Rio Grande do Sul e candidato nestas eleições ao Senado, Olívio Dutra, revela detalhes do período que ingressou no sindicalismo, ainda na década de 60, e sobre a criação da CUT. Também, explica porque é candidato ao Senado.
Olívio analisa, ainda, a atual conjuntura política. “Penso que fizemos até muito, mas estamos devendo muito mais ainda. Acho que não mexemos nas estruturas injustas, centralizadoras de poder e de riqueza que existem há séculos”.
Trechos da entrevista já foram publicados na revista Esquerda Petista. Olívio falou a dois dirigentes nacionais da AE, Adriano Oliveira e Valter Pomar. A edição foi feita por José Luis Zasso, Paulo Amaro e Adriana Miranda. Confira as revelações na íntegra:
 
Adriano Oliveira: Por quais razões o senhor aceitou o convite para disputar o Senado da República nestas eleições?
 
Olívio Dutra: Sou candidato porque tenho responsabilidade com o projeto coletivo, que está fazendo bem para o Brasil e para o Rio Grande e que precisa ser reeleito para fazer mais, fazer o que não pôde fazer ainda, mexer mais nas estruturas do Estado brasileiro, que são estruturas que fazem do Estado uma cidadela dos poderosos, econômica e financeiramente. Tenho compromisso em aprofundar esse projeto nas duas pontas, federal e estadual e independente de ter cargo ou mandato, sempre estive em campanha por este projeto.
 
Agora, evidentemente, fui convencido que, além dessa campanha permanente em torno das ideias do campo do nosso projeto, que está melhorando o Brasil, mas que precisa aprofundar bem mais, a tarefa me coloca numa situação, numa militância mais intensa do que já vinha desenvolvendo e uma responsabilidade duplicada, mas que assumo com alegria, com gosto, com disposição. Porque eu sinto com a militância do PT, do campo popular, dos movimentos sociais, um enorme entusiasmo por conta disso, então a peleia vai ser boa. Até porque nós temos adversários no outro campo que não esperavam ter esse embate com a clareza que nós queremos que aconteça.
 
Eleito ao Senado da República, quais as principais bandeiras que o senhor acha que um mandato, vinculado a essas forças sociais e políticas, deve travar nacionalmente?
 
Bueno, primeira coisa o chamado “pacto federativo”, a relação entre a União, os estados e municípios. Essa ideia federativa no Brasil é anterior à República. Teve um manifesto lá em 1870, pela federação. A República não existia ainda, embora tivesse já alguma campanha em torno dessa ideia rica. Então, está mal posta essa relação entre estado, estados federados, até por conta também que tem uma estrutura tributária impeditiva de uma relação horizontal entre os entes federados, um controle público que enriqueça mais essa relação.
 
Temos uma estrutura tributária que na relação com municípios, estados e a União, faz predominar a chamada guerra fiscal. Quem dá mais vantagens para grupos econômicos num município disputa com outro município. Quem dá mais vantagens para um grupo empresarial num estado, barganha ou disputa com outro estado. E em nível federal, quando o governo federal dá vantagens tributárias ou isenções para grupos econômicos poderosos, quando o IPI, por exemplo, que é o Imposto de Produção Industrial, é reduzido, reduzindo também o que é uma parte significativa do Fundo de Participação dos Municípios e dos Estados, também diminui o seu ritmo de crescimento, enquanto as despesas e os compromissos dos municípios e dos estados crescem geometricamente. É um problema. É um problema político, sobre qual o papel do estado federado, do Estado nos três níveis na questão da apropriação da renda gerada pelo trabalho de milhões de brasileiros e a sua distribuição justa por esse imenso território, não só do ponto de vista geográfico.
 
Então, esses são temas que eu acho que são caros para os nossos partidos, para o PT, para os partidos do campo popular e democrático, para nós, socialistas, não é? O PT é um partido do socialismo democrático, mas temos outros partidos que se denominam socialistas, que devem também reforçar conosco a opinião que essas estruturas precisam ser mexidas.
 
A estrutura do Estado brasileiro, a estrutura tributária, as reformas agrária, urbana, política, não a reforma eleitoral, mas a reforma política, tudo isso tem a ver com o Senado. Evidente que uma andorinha só não faz verão. O Senado é composto de 81 parlamentares. Mas nós não queremos ser só mais um. Queremos atuar num campo que possa fazer essas ideias e essas questões serem debatidas não só lá dentro, mas com a sociedade e que venham tomar corpo em leis, alterações da estrutura do estado brasileiro, que acho que nos dois mandatos do presidente Lula e agora no mandato da presidente Dilma, governos que fizeram acontecer coisas que nós temos que celebrar e comemorar junto com o povo brasileiro, ganhos enormes para qualificar a vida de milhões de brasileiros, mas que não podemos mexer ainda nas estruturas profundamente injustas de um país que tem poucos cada vez mais ricos e muitos pobres. Aliás temos 17 milhões de brasileiros abaixo da linha da pobreza. A própria companheira Dilma diz que “um país rico, é um país sem pobreza”.
 
Então nós ainda não somos ricos, e temos que ser ricos não só no ponto de vista econômico e material, mas rico na capacidade das pessoas, do povo brasileiro, da alma brasileira de se sentir uma nação e conviver bem consigo e com os outros, com a natureza rica, bonita desse país e se relacionar bem com países da América Latina. Acho que um mandato de senador tem possibilidades, sim, interessantes, grandes, tem desafios, mas eu vou ser, caso eleito, um senador em defesa do projeto que nós queremos reeleger, que é o da Dilma e o Tarso no Rio Grande.
 
Serei um senador reforçando esses mandatos, pois eles expressam esse projeto que é parte de uma visão de transformação estratégica. Um programa do nosso partido, o PT, que evidentemente não vende a ilusão que nós vamos realizar as transformações apenas do ponto de vista institucional, aumentando as nossas bancadas legislativas, do Executivo. Temos que ganhar apoio na base do povo brasileiro, com os lutadores sociais no campo e na cidade, para fazer de fato que as estruturas desse Estado injusto sejam sacudidas e melhoradas, e isso é um processo. Quero ajudar nesse processo.
 
A militância do PT e também dos partidos que integram a Unidade Popular pelo Rio Grande recebeu com grande entusiasmo a sua candidatura, não só pelo reforço que ela apresenta para as campanhas do companheiro Tarso e da companheira Dilma, mas também por achar que agora o conjunto das forças democráticas, populares e trabalhistas, tem uma candidatura competitiva. Como o senhor pretende trabalhar a possível polarização entre sua candidatura e a do jornalista Lasier Martins, antítese do nosso projeto?
 
São projetos distintos, projetos diferentes. Vou afirmar o projeto do qual eu faço parte, não por acaso e nem agora. Não cheguei nesse projeto por cima. Vim ajudando a construí-lo, e os adversários, em especial, em particular, este que tu estás te referindo, terão que se assumir.
 
Sempre entendi que o trabalhismo social é a visão que não é a visão do estado mínimo, do estado sobre controle privado. Este adversário que tu mencionas sempre defendeu o estado mínimo, o estado terceirizado, a presença crescente do interesse privado, para fazer bons negócios, para o enriquecimento de alguns. Bueno, vamos discutir questões sérias: o papel do Estado, o Estado sobre controle público e não sobre controle privado, para funcionar bem e melhor e não para alguns e para poucos, mas se não para todos, para a maioria. Vamos discutir a questão da comunicação. Vamos debater o controle democrático, efetivamente democrático deste setor tão importante. Democracias já consolidadas não permitem mais essas estruturas poderosas, econômicas e materiais, como a que temos aqui no Brasil e da qual faz parte esses adversários ou esse adversário, como grande porta-voz desses grupos.
 
Não faço política por questões pessoais. Quero cotejar ideias, argumentos e projetos. Vou afirmar um projeto que eu ajudei a construir desde o seu início. Tenho compromisso com este projeto. Tenho compromisso para que este projeto se aperfeiçoe e consolide uma relação com o povo brasileiro para que a democracia no nosso país não seja apenas positivada em leis, mas que seja uma democracia vivida no cotidiano, no plano da qualidade de vida, do ensino, da cultura, da saúde, da segurança, das artes, do lazer. Queremos debater ideias, projetos, propostas, defender o que está acontecendo para o bem dos brasileiros nos governos que exercemos, nos mandatos do presidente Lula e agora da presidenta Dilma e nas experiências que já tivemos aqui. Fui governador do Rio Grande com muito orgulho.
 
No nosso governo, da Frente Popular, o Rio Grande cresceu não só economicamente, no seu PIB, mas cresceu acima da média nacional. Depois teve problemas sérios. A partir dali, não reelegemos o nosso projeto por dois mandatos consecutivos e quando retomamos aquele projeto, retomamos já em outra conjuntura, numa conjuntura desafiadora, da crise mundial de 2008, os desafios da ciência, da tecnologia e conjunturas políticas e eleitorais.
 
Como que o senhor avalia o nosso marco de alianças no Estado e o nacional?
 
Sempre me pergunto: será que o Lula, no primeiro mandato, tinha condições de governar e fazer passar coisas importantes e necessárias na relação executiva, legislativa, pelo Congresso Nacional, com a composição que tem o Congresso, decorrentes da própria eleição que elegeu o Lula? Um governo eleito sem maioria no Congresso. Será que se o Lula não tivesse feito as alianças que fez poderia ter avançado? Acho que teria avançado, mas certamente num ritmo mais lento, talvez até com mais complicações da conjuntura política. Então, acho que era legítimo esperarmos que, na segunda eleição, no segundo mandato, também tivéssemos, pelo voto da cidadania brasileira, ampliado no Congresso o campo democrático popular, criado outra correlação de forças no Congresso, mas também isso não aconteceu.
 
O segundo mandato do Lula novamente teve que compor um governo de centro para direita, porque a correlação de força dentro do Congresso não se alterou para melhor. Mesma coisa aconteceu na eleição da Dilma. Precisamos mudar essa estrutura com a reforma política. Hoje se descola imediatamente, uma vez eleito, do eleitor ou da base social, dos movimentos e se compõe no Congresso, segundo conveniências conjunturais. Muda-se de partido como se muda de camisa. Isto tudo torna o ato de governar um exercício de composição. Às vezes até de espertezas e de condutas que nos levaram, por exemplo, ao chamado ‘mensalão’, coisas essas sérias e graves.
 
Acho que temos no Estado do Rio Grande do Sul um governo de composição. O Tarso eleito também convidou forças que estiveram num outro campo durante a campanha. Essas forças veem e ficam conosco até um tempo. Aí quando chega outro embate se transferem pra cá ou para lá segundo conveniências políticas. Nesta estrutura que temos aí, que precisa ser reformada, não se mexe no que interessa para a população, não sacode, pelo contrário, acomoda interesses, estimula vaidade, profissionalismo na política, essas coisas todas. Então, precisamos da reforma política que só poderá vir via uma Constituinte exclusiva. Para isso, o nosso partido está empenhado, inclusive, no chamamento de um plebiscito. Não sou de dizer “não, nós não temos que fazer nenhuma composição”. Não me agrada as composições que fizemos, nem no primeiro e nem no segundo mandato do Lula e nem agora com a Dilma e nem aqui com o Tarso. Mas é isso, o que é possível. Também tem que se perguntar se será sempre assim, se temos que aceitar isso como da natureza da política? Eu não aceito como da natureza da política. Não me conformo, mas temos que conviver com essas realidades, buscar superá-las. Isso significa os partidos do campo democrático popular serem escolas políticas de formação permanente, de formação de quadros, discutir a política não como uma disputa de cargos, empregos para as pessoas nas máquinas partidárias, nos cargos obtidos no executivo e no legislativo, mas escolas políticas para debater a política como a construção do bem comum com o protagonismo das pessoas, discutir a realidade brasileira de enormes desigualdades.
 
Precisa ter um processo de formação permanente que não seja passageiro, só em época de eleição. Já começamos a ter na base do partido, companheiros simples, modestos que pensam “não, política é assim mesmo, política é a esperteza, esperteza que usavam contra nós temos que usar contra eles”. Essa é uma visão equivocada da política. É uma visão que contamina na base partidária, as direções dão a ideia de que esse pragmatismo é o que tem que ser buscado sob pena de perder a eleição.
 
Tem ocasião que perder eleição ensina mais do que vencê-la, dependendo de com quem aliamos ou do jeito que conjuminamos as nossas forças. Um partido de esquerda, do socialismo democrático como o PT, tem que ter sempre presente este debate sobre o campo democrático popular. A esquerda brasileira está devendo isso para a o povo brasileiro: definir os seus contornos, se reunir constantemente, estabelecer uma estratégia, ter um programa, um conjunto estratégico para o Brasil e se alternar dentro da esquerda na execução desse programa da esquerda. Estamos devendo isso pro Brasil. A direita e o centro-direita tem os seus interesses imediatos que se articulam rápido e eles não pensam em função do hoje, pensam em função do amanhã para preservar esses interesses, porque eles se alternam na constituição das maiorias nos espaços de poder, no Legislativo, até mesmo no Judiciário. Até mesmo nos nossos governos eles têm presença em cargos importantes no funcionamento da máquina pública.
 
Acho que um partido como o nosso tem que pensar como ir realizando políticas, seja nos mandatos legislativos, nos mandatos executivos, nos três níveis, que alternem a lógica de funcionamento do Estado brasileiro, que há mais de 500 anos funciona muito bem para muito poucos e muito mal para a maioria do povo brasileiro. Esse Estado pode e deve funcionar bem melhor, se tiver com efetivo e amplo controle público sobre ele. Controle público, nós temos que apostar e trabalhar para ampliar os espaços de intervenção cidadã no controle do Estado brasileiro, nos três níveis. Então, o Orçamento Participativo não poderia ter ficado só na primeira fase, uma experiência ainda muito reduzida. Muitas prefeituras nossas nem sequer pensam isso, acham que isso atrapalha. Acho que tem que haver sim uma discussão, até porque o Orçamento Participativo não é criação do PT, é uma importante conquista da cidadania, porque gera protagonismo. A cidadania não é a cidadania de ocasião. A gente não quer ser cidadão só quando tem eleição ou só no momento sagrado depositar o voto na urna. A cidadania tem que ser exercida na sua plenitude, no cotidiano, na vida de milhões de brasileiros e de brasileiras. O nosso partido tem que pontear isso. Ser parte disso, comprometido com isso, provocando isso.
 
Por isso que é importante não confundir o partido com o governo, ou o partido com mandatos legislativos, executivos, que são importantes. Temos que ampliar a nossa presença na institucionalidade, mas tem bandeiras que o nosso partido tem compromissos com elas e não é num mandato ou num segundo, num terceiro, que vamos poder executá-las na sua plenitude, na sua radicalidade. Isso não pode significar que o partido tenha que rasgar suas bandeiras, não. Algumas são bandeiras estratégicas, enquanto que os nossos governos têm que executar um programa com base na estrutura dos mandatos, na conjuntura, nas relações institucionais, como cabe também uma discussão, ai entre essa distinção necessária, o que é partido, e o que são os governos nos três níveis, os mandatos nos três níveis, e eles evidentemente que se relacionam.
 
Mas o partido não é dependente não, e nem pode ser dependente dos mandatos. O partido conquistou os mandatos, então o partido não nasceu dos mandatos, então ele tem que dar demonstração de que perdendo esta ou aquela eleição em determinado momento, ele tem capacidade de se revigorar, aprender com isso. Nós não somos uma máquina para ganhar eleição. Nós temos que ser uma estrutura política para que, junto com o povo brasileiro, realizar transformações.
 
 
Valter Pomar: O que nos conta de como era o Movimento Sindical da epóca em que começou a militar, fazendo uma comparação como é hoje?
 
Vou ter que te contar um pouquinho de história. Espero ser sintético. Se não for, tu me cobra. Me picaneia como dissemos acá no Rio Grande. Eu tinha, em 1962, 21 anos. E já era bancário. Tinha um ano e alguns meses de bancário, funcionário do Banco do Estado do Rio Grande do Sul. Entrei por concurso. Como contínuo, em São Luiz Gonzaga, na região das Missões, no nosso querido Rio Grande, 530 quilômetros a Oeste de Porto Alegre. Às margens do Rio Uruguai, quase fronteira com o Norte da Argentina.
 
Então em 1962, participei da minha primeira greve. E o que foi essa greve? Acho que é importante, porque ficou martelando na cabeça, uma pergunta: Porque não tínhamos sindicato lá? Também não era militante de nenhuma organização, a não ser numa base da Igreja, lá em São Luiz Gonzaga, que era inclusive conservadora, mas eu e alguns outros jovens éramos uns contestadores naquela pequena reunião comunitária depois da segunda missa dos vicentinos.
 
A minha militância era nessa relação e na Campanha Nacional de Educandários Gratuitos, antiga CNEC. Começou lá pelo Amazonas, com uma figura que de memória eu lembro o nome dele, Tiago Gomes, que era o grande líder dessa campanha na base da Igreja. Então, uma greve eclodiu. Não tinha militância sindical. Não tinha sindicato na cidade. No entanto eu fui referência do pessoal do sindicato de Santo Ângelo, acho que por conta da Campanha Nacional de Educandário Gratuito. Então, certamente por isso, a gente tinha alguma relação com pessoas, companheiros que estavam na luta, e no caso no Sindicato dos Bancários de Santo Ângelo, que foram a São Luiz em um final de tarde. Tinham antes, pelo telefone, proposto uma reunião. Encarreguei-me de conversar com outros bancários. Tinha poucas agências de banco lá. Tinha três, no máximo, três ou quatro. Reunimos o que pudemos. E, é bom lembrar, reunimos na Casa Rural de São Luiz Gonzaga e no Sindicato dos Bancários de São Luiz, da base do qual saiu o presidente da Federação dos Bancários do Rio Grande, que era o Paulo Eduardo Steinhaus. O pessoal fez a sua fala naquela reunião e entramos em greve. Bom, a maioria dos bancários que estava em São Luiz vinha de outras cidades, transferidos. Passaram em concurso. Com a greve aproveitaram para voltar para as suas cidades, visitar familiares. Fiquei encarregado de acompanhar a movimentação da greve e qualquer coisa ir até o programa da Rádio São Luiz pra dizer como é que estava andando a greve. Ocorreu que a greve, um ou dois dias depois, terminou. E me ficou a pergunta: nós nos reunimos, conversamos, ouvimos a situação nossa, de bancários, assalariados; os banqueiros não tinham feito proposta, negociação andando, tinha que pressionar os banqueiros, muito bem; mas é para terminar? Bom, essa pergunta ficou.
 
Vim para Porto Alegre em 1970. Já era casado. A Judite estava grávida da Laura. O Espártaco, meu primeiro filho, tinha um ano e pouco. Vim por razões políticas, por conta daquela campanha de educandários gratuitos, em que nós, daquele campo ali, conseguimos garantir aquela escola. Mas aí já tinha dado o Golpe, e aí a nossa ideia de ter uma escola com vínculo popular, comunitária, gratuita, com direção eleita, foi para o brejo. E o poder da cidade, ligado com a estrutura do poder do estado, a Arena e o “diabo a quatro”, por conta da insistência, e eu estava nessa ponta, fez com que eu fosse transferido. Saía do banco e não teria onde trabalhar, a não ser com o meu pai carpinteiro. Então aceitei essa condição de ser transferido, sem ter previsto, programado. Viemos para Porto Alegre. Evidente que aqui me associo e me sindicalizo.
 
A primeira coisa que faço é ir ao sindicato, conhecer, ler mais. Busco resposta para aquela pergunta: por que aquela greve em 1962 terminou abruptamente? Para iniciar a greve reunimos, para terminar não houve reunião. Aí a história é a seguinte: me disse um dos companheiros mais antigos, por sinal uma bela figura que o apelido dele era “Pelegão”, um bancário, figura belíssima, militante. Ele era daqueles que ia para a assembleia e os colegas não iam e depois, quando voltava perguntavam pra ele “mas e daí, o que deu na assembleia?” e ele dizia: “vocês são tudo uns pelego. Ao invés de irem, na assembleia, vêm aqui me perguntar”. Essa figura me disse: “olha, Dutra, nós nos reunimos ali, ficava saindo gente pelo ladrão, às tardes, depois do expediente, discutimos a situação nossa em termos de salário e condições de trabalho, tudo tinha que ser batalhado. Então a greve se justificou, o pessoal tava apertado de vida e tal. Bom, mas aí lá pelas 10 da noite, por ali, na assembleia, decidida a greve, nós nos olhamos um para os outros, pressão e tal, e como é que nós vamos operar a greve? Não, tu vai lá na rádio e diz que estamos em greve; vamos nos comunicar assim, no amanhecer, com a categoria. Bom aí subiram a rua da ladeira, que era a chamada General Câmara, que passa na frente do sindicato hoje, na nossa sede ali, duas quadras, uma quadra e meia do palácio do governo; e naquela hora fazem uma barulheira e tal, na frente do Palácio e aí sem demora o Brizola manda chamar. Vai lá a direção. O Brizola foi duro com eles e disse: acham que o governador não tem uma agenda? Mas bueno, vocês tão aqui, to vendo que tão insistindo, vocês não vão sair daqui sem a gente conversar. Mas qual é a de vocês? Bom, a nossa é a seguinte, governador: tal, tal, e ali colocaram. Mas o que vocês querem do governador? Bom, queremos que amanhã, ou a partir de agora, não haja nenhuma repressão ao movimento que nós pudermos fazer na frente do banco. O Brizola diz: tá bem, não vai ter, a polícia, nada vai ter, vocês vão poder fazer o trabalho de convencimento de vocês. Ocorre que, no dia seguinte, eles conseguiram fazer alguma coisinha. Mas a greve começou com pouca participação. No dia posterior a greve tava tomando corpo. Mas exatamente no dia posterior, teve uma convenção do PTB, que era o partido do governo, e o PTB escolheu para a sucessão o candidato Egídio Michaelsen. Na época ele era diretor do Sindicato dos Bancos, e era diretor do Banco Agrícola Mercantil. Era um cidadão já idoso, mas respeitável. Era do PTB e foi se formando pelo banco, chegando à estrutura de direção do banco e na direção do sindicado dos bancos. O pessoal, diz ele, o Pelegão, pra mim: olha nós achamos bom, agora vai facilitar, temos um nome de confiança aí do trabalhismo e tal. Ocorre que eles foram chamados no Palácio, o governador os chamou e disse: e agora eu quero que vocês nos compreendam; eu compreendi vocês na ocasião, agora eu preciso de vocês! Né? (Risos). Sim, mas governador, o que nós vamos fazer? Agora eu acho que com o doutor Egídio podemos ter uma ponte para conversar com os banqueiros, pra eles frouxarem, e ter uma proposta, nós negociarmos. E o governador diz: vocês vão colocar no colo do nosso candidato, trabalhista, essa questão? Um desgaste, vocês tem que compreender que tem uma disputa maior. E aí, evidente, eu quero dizer para vocês, com toda a franqueza, eu não quero ser corado por que não acionei a segurança na porta dos bancos, então daqui para adiante vai ter a polícia, tanto a Civil quanto a Brigada, vão cumprir o seu papel. E o pessoal, bueno, não tinha relação com a base, essa é a questão. Não tinham relação com a base da categoria. Era a direção, e a direção conforme até em nível nacional. O Jango foi ministro do trabalho. Então, o pessoal das direções sindicais, se achava confortável com o poder, pois eram recebidos nos gabinetes das maiores autoridades, do próprio Ministro do Trabalho, e aqui o do governador do PTB. E eles não tinham a força da relação com a sua própria categoria. Então sentiram isso e não tiveram condições de manter a greve, suspenderam a greve por conta disso, não tinham como garantir a continuidade do movimento sem ter esse beneplácito. Então é isso, claro, incendiou nós, de uma base que tava surgindo no movimento sindical. Discussão da estrutura sindical, não é? Sindicalismo pela base, relações no local de trabalho, enfim, o sindicato, a sede material, a referência principal, a forma como o sindicato tá presente no mais perto possível da categoria, seja levando informação, procurando informação, reunindo, procurando ter expressão lá dentro das agências, enfim, através de delegado sindical ou representante sindical, essa é a discussão. Então, foram crescendo, dentro das bandeiras que tínhamos: liberdade e autonomia sindical. E, nós queríamos a aprovação daquelas coisas da OIT que tratavam disso, resoluções que o Brasil era signatário e o artigo 4º, se não me engano da CLT, que trata da estrutura sindical, não bate com essas resoluções, enfim o imposto sindical, essas coisas todas que eram discutidas junto com as questões específicas de quadro de carreira, jornada de trabalho, salário, condições de trabalho, doenças recorrentes das ações repetitivas, o início do processo de informatização como diziam, ou mecanização. E bueno, eu acho que se alterou bastante o quadro. A gente teve aí um outro momento na luta sindical. É bem verdade que tinha essa estrutura sindical, com esse jeito da relação com o poder, com os gabinetes, e que não começou a ser questionado por nós. Já tinha antes de nós outros questionadores dessa estrutura, evidente. Não estou fazendo coisa, que a história da luta contra a estrutura começa conosco. Nós somos herdeiros de uma luta que vem de longe, mais libertária e tal. É isso, eu acho que as coisas desaguaram também essa disputa, essa luta, esse debate, com esse conteúdo e foram para a Constituinte. Veja que nós aqui no Rio Grande elegemos dois sindicalistas no PT para a Constituinte: o Paulo Paim, que era dirigente sindical metalúrgico, presidente do Sindicato dos Metalúrgicos, maior aqui do estado, de Canoas, e eu, dirigente sindical bancário.
 
Quando vira dirigente sindical bancário, vira pelo caminho de uma oposição, ou você fez parte da direção e a direção foi se tornando mais e mais comprometida com o novo sindicalismo?
 
É interessante, porque é meio parecido com isso. Chegamos em Porto Alegre, eu não conhecia nada. Não tinha morado numa cidade grande, não é? E bom, nas circunstâncias que vim, então estava também indignado com as coisas, acompanhando as coisas. O Golpe já era tido por nós, do nosso campo, como um golpe contra os pobres. Como dizia minha mãe: “filho, isso é um golpe dos ricos contra os pobres”. Bueno, aí claro, eu chego, me sindicalizo e têm dois bancários presos, que não sabia e nem conhecia, mas o pouco do conhecimento que tive, que o pessoal passou para nós, era de dois bancários presos. Um deles, depois, bem mais tarde, foi vereador, uma figura muito combativa, um belo sujeito, da diretoria dos Sindicatos dos Bancários. Foi preso por conta das suas atividades contra a Ditadura. E o outro era da direção da Federação dos Bancários, também ligado às articulações clandestinas contra a Ditadura. Bom, não conhecia nenhum dos dois, mas o nosso grupo pessoal começou a dizer: “não, não pode ser assim, tem esses dois bancários presos, e o Sindicato? Não vejo nada, não vimos nada do Sindicato, o que o Sindicato fez, deixou de fazer, está fazendo?” E fizemos muitas reuniõezinhas clandestinas até conceber um texto que denunciasse isso, e depois imprimir aquilo. Isso era por 1971, 1972. Não foi fácil fazer aquilo.
 
Fizemos do jeito que pudemos aquele material e ele andou circulando por algumas agências. Naquele tempo tinha poucas agências. Depois o próprio Regime Militar foi reduzindo os bancos locais e regionais, para fortalecer os grandes sistemas de estrutura. Então, esse texto era uma postura crítica nossa ao Sindicato, à sua direção, com aquela questão política. Aí chego no trabalho, na Francisco (Autran) com a Assis Brasil, norte da cidade, por sinal muito perto do Sindicato dos Metalúrgicos, aí aparece o presidente do Sindicato lá, no expediente, e pede para falar comigo. Eu ia no Sindicato, por que saia daqui, ia em direção ao Mercado Público, ia lá e via, até porque o Sindicato também tinha serviço odontológico, de saúde e tal, e eu com os meus filhos, a minha mulher, tratei de ver lá o que poderia ter daquele serviço. Então também ia lá por conta disso. Tinha biblioteca o Sindicato, tem até hoje, e tinha materialzinho do DIEESE. Tratava de distribuir, do meu caminho até lá onde eu morava, nas outras agências e sem o Sindicato saber, e lá na minha agência dependurava no muralzinho. O pessoal dizia: “Olívio, rapaz, te cuida. Não sei se é comunista ou não é. Não importa. Te cuida, por qualquer coisa a repressão está aí”. Como era cumpridor dos meus deveres como bancário, chegava na hora. O meu próprio gerente me convidou para ser o assessor dele, abrir a correspondência, redigir respostas, até mesmo essas cartas que chegaram lá eu mostrei pra ele. “Poxa, Dutra, esse é um texto duro, tu faz o que tu acha melhor, mas eu acho que é perigoso esse texto aí”. Bom, eu tinha três, nós tínhamos definido três cartinhas daquelas para cada agência. Então, eu dependurei uma delas. Aí aparece o presidente do Sindicato, Luiz Carlos Mazuí Cunha,uma bela figura, e diz: “olha colega, a gente tem te visto, a gente não tem conhece, a gente já sabe que tu veio do interior, o seu Luiz já te sindicalizou”. O seu Luiz era um velinho que percorria as agências sindicalizando, a cara dele era parecida com o Kruschev. Velinho do tempo do sindicalismo de ação direta, ele vinha, tinha sido motorneiro da Carris, tinha sido presidente de um sindicato de bancários em Novo Hamburgo, e era uma figura. E eu puxava conversa com ele para ele me contar as coisas, as lutas sindicais em outro tempo. O seu Luis, então dizia o Masuí, “tem dito que tem conversado e nós temos te visto lá e eu queria te dizer meu companheiro, colega, que a coisa pode ficar difícil, agora tem um material circulando aí, que a repressão, aquela figura que tá lá, aquele lá é a ponta da repressão contra o Sindicato. O Sindicato já sofreu duas intervenções depois desse Golpe aí. Nós somos uma direção que foi eleita depois de duas intervenções. Aí nos somos proibidos de citar qualquer coisa, ainda mais sobre essas duas pessoas que esse material tá falando. Nós não podemos dizer absolutamente nada e nem escrever nada. Então, bueno, estou aqui pra te dizer que, com esse material, a coisa se arrocha lá. Estamos preocupados, não sabemos se tu está em algum movimento, qualquer coisa que o valha, mas tu aparece lá, e poucos aparecem lá no sindicato e tal”.
 
Poxa, eu comecei a ficar compreendendo mais coisas que eu não compreendia. Compreender a história do Sindicato, do momento que viveu o Sindicato, um Sindicato que eu acho que nunca teve direção de direita, e que já tinha passado por duas intervenções: o (Jarbas) Passarinho, que era ministro do Trabalho, e tinha uma mulher que ele colocou lá, pra relação direta com a Delegacia Regional do Trabalho, essas coisas; um ‘esquemão’, que o pessoal conseguiu depois se desfazer. Então, tava aquela diretoria lá, tentando recompor as coisas, e então passado isso, tinha eleição no Sindicato em 1975. O Masuí de novo foi no meu local de trabalho dizer: “olha, vai ter eleição no Sindicato, nós temos problema de compor uma chapa e tem oposição”. A oposição era uma oposição de centro-direita. – “Tem oposição, e nós não temos gente, o pessoal tá todo mundo com medo, assustado, e os que vêm, vêm para sem demora fazer acordo com os bancos, se proteger, faz acordo com o banco e o pessoal vai ficando cada vez em número menor e tal” colocou o Masuí. Queria que eu fosse pra executiva, e eu disse: “olha, meu companheiro presidente, eu venho do interior, não tenho a vivência que precisa ter para estar num sindicato assim, com a importância. Se pudesse ajudar, ajudaria, mas não como integrante da executiva”. Me colocaram lá no quarto suplente, nessa eleição e teve uma oposição de centro-direita. Ganhou, ganhamos, mas fiquei no local de trabalho, era quarto suplente. Naquele tempo só tinha três, não, era quatro integrantes da executiva liberados, e eu era o quarto suplente. Os dirigentes executivos, lá entre os liberados, foram fazendo acordo com os bancos. Se formavam em direito, outras profissões liberais e tal, aquela condição. Faziam acordos com os bancos e o Sindicato tinha que chamar suplente. Fui chamado na vacância. Fomos lá, mantinha reuniões, debates, vivências, enfim. Tínhamos daqui, um pouco paralelo, mas faz parte, disso aqui onde nós estamos, quando eu vim para Porto Alegre. Foi aqui onde morava, morei até dois anos atrás. Agora a gente tá lá embaixo, porque a Judite não pode mais subir escada, e eu pude comprar um apartamentozinho do tamanho desse aqui. Mas aqui que nós viemos, criamos dois filhos aqui e eu trouxe uma geladeira lá de fora, de São Luiz, que ela já tinha sido adaptada para a energia elétrica.
 
Onde eu morava lá em São Luiz não tinha energia elétrica. Só vivi mais tarde, já tinha recomposto e eu cheguei aqui, tinha oficina ali do outro lado da rua, e adaptou a geladeira. Eu não ia comprar outra. Instalou ali e ela tinha um barulho, um rumor, era uma coisa estrondosa, (pausa telefonema). Então, esse barulho abafava as conversas aqui de dentro. Tu viu o corredor aqui, é um corredor largo, dos primeiros prédios construídos pelo BNH. Então o corredor não é a estreiteza que é hoje, um corredor que as crianças até brincava, os vizinhos também tinham crianças. Então, aí os companheiros, conversando comigo e tal, uma vez vieram aqui, e tal, e, “Olívio, nós estamos com dificuldade de ter um porto, um local para se reunir”. E eu digo, “olha, aqui é um prédio, 219 condôminos e tal, eu moro aqui”. “Pois é, mas tu sabe que esses dias nós verificamos que esse rumorzinho aqui abafa o que se conversa aí dentro, claro nós conversamos baixo também”. E então me pediram se poderiam vir aqui. “Claro companheiro! O que eu posso fazer nessa luta que é grande aí…” Aí, eu e a Judite combinávamos, quando tinha as reuniões aqui, nos finais de semana, eles preferiam, sábado, ou domingo, a gente pegava as crianças e íamos para o Parque Farroupilha. Voltávamos no final da tarde do domingo, do sábado e na segunda-feira aparecia um companheiro aqui, para nos relatar o que o grupo tinha discutido. Foi este companheiro, que uma vez protegemos. A repressão estava pra apanhá-lo. Fiquei encarregado de arrumar um local para ele ficar isolado. Dei um jeito e arrumei a casa de um companheiro bancário no Menino Deus. Protegemos esse companheiro. Ele não caiu. E bem mais tarde tive a alegria de vê-lo. Olhei assim, “mas eu conheço esse companheiro”… ele tinha feito parte do governo do Valdir Pires na Bahia, ele era baiano, era essa personalidade. Daquele povo que participava aqui, tem uns no PMDB, tem outros no PSB, tem grande parte no PCdoB, tem no PT, isso era lá no principio da década de 70. Então, termina o mandato daquela direção do sindicato…
 
Da qual você foi eleito como quarto suplente?
 
Isso. Termina e tem eleição em 1975. Assumi a cabeça daquela chapa e teve oposição, de novo.
 
Você foi candidato a presidente?
 
À presidência do Sindicato. Fomos eleitos. Foi nessa época, em 1975, que conheci o Lula. Na época, o Delfim Neto, ministro da Fazenda, tinha surrupiado um percentual enorme do reajuste do salário de todo mundo e o Dieese flagrou isso e podemos, tecnicamente, dizer que não dava para engolir aquilo como uma coisa que foi calculada. Tecnicamente poderia ser desmontado. Politicamente tínhamos razões para fazer o movimento que se espraiou pelo Brasil a fora. Nessa ocasião, convidamos o Lula para vir aqui. Aí já tínhamos uma relação intersindical, uma relação que retomava um velho movimento que tinha aqui, em Porto Alegre, entre várias categorias. Houve um encontro dos que tinham lá em São Paulo, São Bernardo, no Rio de Janeiro, na Bahia, noutros pontos do país e tinha a luta das oposições sindicais. Apoiávamos as oposições sindicais. Éramos desse campo, das oposições sindicais.
 
Por que esse movimento do sindicalismo autêntico desemboca na CUT, depois de ter desembocado uma parte dele no PT? Ou seja, por que não houve uma progressão sindicato-central-partido? Por que foi o contrário, o que levou a isso?
 
Tinha debate em torno disso. Confesso que vacilei em várias ocasiões em que esse debate surgia. Já tinha uma discussão anterior sobre o Dieese, sustentado pelos sindicatos e os maiores sindicatos do país, inclusive o Sindicato dos Metalúrgicos de São Paulo, do ABC, Sindicato do Rio de Janeiro e os bancários também de São Paulo. Evidentemente que os bancários de São Paulo sempre tiveram uma direção combativa, mas a receita que sustentava o Dieese era 70% ou 80% de três ou quatro sindicatos e que não estavam nas mãos de direções, digamos das oposições sindicais, que as oposições sindicais lutavam para chegar, mas, no entanto, eles mantinham. Lembro que numa eleição para o Dieese, tal questão veio à tona: vamos romper com os caras. Digo: vai sustentar o Dieese como? Temos condições? Não temos condições? Entendia que não tínhamos condições, sem ter aqueles sindicatos compondo a direção do Dieese. Inclusive lembro bem, votei diferente do Lula nessa questão.
 
Fui o primeiro organizador duma ponta do Dieese aqui, inclusive ia coletar o preço das coisas na feira, nas datas, naquela papeleta que o Dieese propunha, segundo a região, segundo a sazonalidade das coisas, e cumpria à risca aquilo. Então, o Dieese, naquele momento, exerceu um papel de enorme influência política e queria que ele pudesse não ser contaminado. E aí, quando do movimento, eu fiz parte da Comissão Pró-PT, lá de 1978 já, a nível nacional, mas antes militando no movimento sindical, na questão de como organizar horizontalmente o movimento sindical. Como romper com a estrutura das confederações e federações e ter uma construção pela base? Essas coisas estavam antes de 1978, antes da Comissão Pró-PT. Mas as coisas se precipitaram. A conjuntura, o processo todo das lutas sociais, da questão política contra a Ditadura e contra as estruturas partidárias que tinham essa ideia de uma direção de cima pra baixo da classe trabalhadora, através dos partidos que poderiam sair dali, daquele processo. Lembro bem que o Fernando Henrique, ele andou circulando o país, esteve aqui no Rio Grande do Sul. Não só uma vez, mas uma vez eu fui convidado pelo Tarso, que não era do PT, era uma ala do, era PMDB já, eu acho, pra ir num papo que estaria o Fernando Henrique, lá na casa do Tarso, no Bairro Conceição. Era um dirigente sindical, de certa nomeada já e fui convidado. Chego lá vejo que tem várias pessoas que são importantes, advogados, professores, mas não vejo lideranças de outras categorias, de sindicatos. Sento e fico quieto num canto ouvindo. Vejo que a conversa era muito em torno de um partido político, que fosse um partido que não caísse num viés classista, categorial, uma conversa assim, um partido popular, era um discurso já se preparando para um debate tipo um partido tipo PT. A ideia já estava circulando, não sei se tinha ocorrido aquele congresso dos metalúrgicos lá em Osasco, que tinha lá numa assembleia surgido aquilo, da proposta de um partido da classe trabalhadora, acho que já tinha ocorrido. As coisas foram, penso, se precipitando, e se dando, a liderança do Lula inquestionável, a presença dele no cenário político-sindical. Acho que quando se foi para uma reunião, as reuniões sindicais, as coisas se contaminaram com essa discussão de um partido que fugisse do esquema dos partidos tradicionais, claro que se incluíam, também, os partidos tradicionais da esquerda, tipo o PC, o PCB, com direção vertical, centralismo. O PT era também uma crítica a isto, não no conteúdo, mas na forma de conduzir a política, essa coisa toda. Então, a nossa discussão sobre liberdade e autonomia sindical, de certa forma não era consenso no campo da esquerda. O PCB nunca aceitou o fim do imposto sindical, ou a liberdade de autonomia sindical, o sindicato por ramo de produção. Essa foi sempre uma discussão incompleta ou com posição contrária dos companheiros e companheiras do PCB, que nós respeitávamos muito, eu particularmente, um partido com tradição, com história. Acabou que no final da década de 70 estávamos com o PT já formalizado e registrado no TSE, e dois anos depois que se sai para a CUT. E ali já, naquele congresso de Praia Grande, teve um Conclat. Lembro que tive vacilações no decorrer daquele congresso, um enorme congresso, o maior que conheço até hoje na história da classe trabalhadora. Centenas, dois mil, três mil ou mais trabalhadores; lideranças de toda a parte do Brasil, categorias organizadas, desorganizadas, pré-organizadas. A definição por uma central única dividiu o encontro. Não foi uma coisa que, digamos, dali pudesse se pensar que estava resolvida a questão de uma central fora da estrutura sindical, com relações horizontais com as entidades. Não, ali se abriu a possibilidade, evidente, por conta do debate político e das evidências ali de ter mais centrais, como de fato veio ocorrer, logo mais adiante, dali mais um ano, naquele mesmo ano, surgiram outras centrais. Se não me engano, hoje, temos umas seis centrais. Algumas estão assim, digamos, decorativas, como também tem alguns partidos que são a sigla. Então, na Constituinte, foram eleitos dois constituintes pelo PT do Rio Grande, dois sindicalistas e participantes desse debate sobre estrutura sindical, das categorias metal/mecânica e bancária/serviço terciário. Bom, na Constituinte, essa questão da liberdade, de autonomia sindical, as resoluções da OIT, nunca tiveram unanimidade no campo progressista, popular e nem no núcleo de esquerda, porque o PC, PCB sempre teve posição de que isto geraria uma atomização, estilhaçamento do movimento sindical, do imposto sindical, que deixaria o pessoal segurado no pincel, enfim, tem argumentos.
 
Achamos que toda a força tem que vir da base, que se tinham necessidades, seriam superadas depois, com uma base se assumindo como sujeito político da entidade. Na Constituinte não conseguimos acabar com o imposto sindical. Teve um setor da esquerda que se aliou com os representantes da Confederação Nacional da Indústria. O sindicato patronal também não quer saber, quer estar com o imposto sindical. Então, nessa questão, teve um entendimento entre uma parte da esquerda e do movimento sindical, com o patronato e as suas entidades, e está aí mantido o imposto sindical. É uma vinculação que mantêm os sindicatos como uma extensão do Estado, uma repartição pública. As Delegacias Regionais do Trabalho, que fiscalizam a contabilidade dos sindicatos, no que gastou e no que não gastou, por que gastou, apoiando esse ou aquele movimento e não tem que gastar nisso…É uma ingerência do Estado que vem desde o tempo do Getúlio Vargas, do tempo da Ditadura Vargas, que passou depois a democratização em 1945 e que se mantém aqui até depois da Constituição de 1988. Na greve de 1978, que fomos presos, a direção do Sindicato, eu presidente, nós não fomos presos com base em um artigo de um AI do Regime, não. Fomos presos com base em artigos do capítulo IV da CLT, que vem desde a década de 40. São entulhos autoritários. Isso dá a ideia de que não rompemos ainda com uma cultura centralizadora, ditatorial, que diz respeito ao controle das elites. Que diz que tem a máquina de estado na sua mão sob a organização dos trabalhadores. Então tem composições; uma hora frouxa um pouco aqui, segundo o interesse das elites, mas quando precisar apertar, não precisa de nenhum ato de exceção, tá ali, na CLT, as formas do Estado manter sobre o seu controle a organização sindical.
 
Houve um tempo que, num processo de debate grande dessa questão, aumentou enormemente a sindicalização. Tivemos, penso, numa ocasião, 80% da categoria sindicalizada. Tinha uma relação na base por conta do debate, e isso possibilitava ter atividades no sindicato mais independentes do imposto sindical, que ficava para aqueles custos de manutenção da coisa, que a DRT fiscaliza e exige isso e aquilo. Então, acho uma discussão não esgotada, não resolvida do ponto de vista democrático. Um sinal que a democracia no nosso país tá aquém do que ainda deve avançar. Além disso, isso é apenas um dos tantos exemplos de coisas que na estrutura do Estado brasileiro não foram mexidas.
 
Acaba a Constituinte e logo em seguida você é eleito prefeito. Aí vem um longo período, os anos 90. O que dizer de 20 anos, onde você deixa de ser um dirigente sindical e ocupa, ou posições de dirigente partidário, ou mandatário público? Como é que você, dessa posição, olha o movimento sindical, passada aí essa trajetória tão turbulenta que teve neoliberalismo e dez anos de governo Lula?
 
Acho que tenho muito que aprender ainda e tenho aprendido com a nova safra de dirigentes sindicais, porque a conjuntura para eles é mais complicada que a conjuntura que vivíamos, naquelas décadas de 70, 80 em que o – digamos, vamos usar uma palavra forte – inimigo de classe ou o adversário de classe, era nítido na nossa frente. Claro, e hoje, por tudo que tem aí, de governos inclusive do campo democrático popular, nos municípios, nos estados, no governo federal, nos mandatos do Lula, agora da Dilma, que tenho certeza que é importante que sejam reeleitos para poder fazer o que não puderam fazer ainda, ou fazer melhor, aperfeiçoar o projeto estratégico, mas isso cria para os movimentos sindicais uma situação nada fácil de operar com autonomia, com independência, com força própria.
 
Parece que, claro, a história não se repete, a não ser em termos de farsa, mas tem situações em que tem direções sindicais ou dirigentes que estão muito bem acomodados, inclusive em cargos nos nossos governos, estaduais, federais, Ministério do Trabalho, Sebrae, conselhos daqui, conselhos dali, lideranças sindicais que foram trazidas de dentro dos movimentos sindicais para isso e não substituídas, porque não tinha ainda condições de formação de quadros, um agito, para que essa saída de lá não representasse um desgaste ou até a ideia de que está participando do governo. Nossos governos, o mandato do Lula e da Dilma, evidente que tem o apoio, o respaldo popular, e devem ter, mas eu acho que não, essa discussão entre o que é governo e o que é movimento, ou o partido e o governo, o mandato do Executivo e Legislativo e o projeto estratégico não eleitoral, essas são discussões que precisam ser feitas para serem bem apropriadas e trabalharmos nas diferenças uma forma de ter avanços consistentes sem subordinação, ou redução, ou neutralização da pressão de baixo para cima dos movimentos. O movimento social, os movimentos sindicais, tem dificuldade de se situar e tem também uma tradição de que o Estado brasileiro é o grande protetor. Vejo um campo de luta aberto e que só muda se tiver pressão de baixo pra cima, e essa pressão não é uma mágica, não é messiânica, nenhuma liderança carismática vai fazer isso acontecer. Isso depende de tantas e muitas coisas, mas acho de também perseverança, ciência, e os partidos do campo democrático popular e um partido como o PT e os PCs, tem enorme responsabilidade de conduzir esse processo.
 
A gente às vezes usa uma expressão que é assim: surgiu uma nova classe trabalhadora. Geracionalmente, porque tem mais mulheres hoje trabalhando no mercado de trabalho, ou porque ela é uma classe trabalhadora que não viveu a experiência anterior, enfim, se usa muito essa expressão. Queria lhe fazer a pergunta do ponto de vista da cultura: você, que começou a tua experiência profissional nos anos 60, como bancário, do que conhece hoje, a classe trabalhadora brasileira, do ponto de vista do seu modo de vida, da sua cultura, da sua visão de mundo, o que apontaria como grande diferença e que tem que ser levada em conta para a atividade político-sindical no jeito de existir da classe?
 
Acho que a classe trabalhadora não é mais uma categoria em especial. Antes tínhamos uma ideia, de que a classe trabalhadora é o operário, o que produz, o que mexe na matéria e transforma dali, cria outros bens. A classe trabalhadora é uma imensidão de atividades e de possibilidades, de vocações que precisam ser estimuladas. Então, evidentemente, acho que tem hoje na classe trabalhadora brasileira uma visão mais universal do que antes, talvez, compreensão de o que o sindicato não é o sindicato de uma categoria. É um sindicato cidadão que tem que lidar com questões do trabalhador e da trabalhadora no seu cotidiano de vida. Não só na relação com o seu empregador, a sua empresa. Ele tem que usar o transporte coletivo, a educação, a formação, o lazer, a cultura, enfim, a relação holística com a natureza, com os bens da lida. Há uma compreensão, digamos, mais desabrochada, uma visão mais holística. Mas há situação em que milhares de homens e mulheres nem condições têm para refletir sobre isso. Eles não têm no cotidiano, garantido o básico. Temos 17 milhões de brasileiros abaixo do nível de miséria, que têm pela manhã de pensar o que vai comer de tarde, onde é que vai colocar os seus panos para dormir, se debaixo da ponte, na casa de alguém, etc. Bueno, os nossos adversários, o projeto neoliberal, diz não, que não adianta ter políticas como Bolsa-Família, que são coisas que, como é que eles chamam, assistencialistas. Melhor ensinar a pescar do que dar o peixe. Tem que ter o Estado, e o Estado sobre controle público, não sobre controle privado ou pessoal de ninguém, com políticas públicas eficazes para atender diretamente essas situações. Acho importantes as políticas que desenvolvemos nos dois governos do Lula e da Dilma. Mas, fico preocupado quando temos um número crescente de famílias dependendo ainda dessas políticas. Já tem um número razoável que já está deixando de depender da Bolsa-Família e de outras políticas beneficentes, vamos usar essa palavra, mas penso que tem uma consciência alastrada, espraiada, de que a luta social vale a pena, que é preciso se organizar, não só nos sindicatos, mas nas associações, nas cooperativas, nas pequenas entidades culturais, para o povo se enxergar a si mesmo, se manifestar, romper com a impostura da opinião feita de cima para baixo pelas grandes empresas de comunicação e de imprensa. Há um sentimento grande disso. Mas há espaços ainda não conquistados para isso transitar, isso, enfim, se espraiar mais, ganhar mais consciências e corações.
 
Acho que nós, o próprio PT, embora o Orçamento Participativo não seja uma bondade do PT, uma obra do PT, o Orçamento Participativo é uma conquista da cidadania, o que nós fizemos aqui em Porto Alegre foi dar asas a esse sonho, a essa demanda que era antiga, que é o povo participar da discussão de uma coisa que é essencialmente pública, o orçamento, receita e despesa. E nós mesmos não fomos a fundo nessa experiência de ampliar espaços para as pessoas serem sujeitos e não objetos da política. Nós mesmos, os partidos do campo democrático popular, o PT, vamos até um ponto e depois recuamos. São raras as experiências de Orçamento Participativo que radicalizam a democracia. Começa uma imitação do Orçamento Participativo para ficar bem com o Banco Mundial, ficar bem com os financiadores, mas não se vai a fundo, de como é que se estrutura a receita pública num município. Quem é que está pagando imposto? Quem deixa de pagar? Por que tem renúncia fiscal? Por que tem privilégio tributário? Como é que vem do Governo Federal para o município? Ora, isso tem que ser no mínimo do conhecimento do cidadão, para depois ele poder começar elaborar as suas demandas, de médio e de longo prazo, mas também estruturantes no espaço onde mora. Nós temos um Orçamento Participativo que é mais a organização das demandas da população e não há discussão de como se estrutura a receita púbica, aí qual é o papel do poder público, estadual, federal, municipal na apropriação dessa receita, que é oriunda do pagamento de impostos, desses serviços e de taxa.
 
Qual é o papel do poder público? Fazer desse dinheiro a possibilidade dos grandes negócios empresariais? Qual é a estrutura tributária que nós queremos, e que pode ser uma parte na distribuição de renda do país, na descentralização das coisas nesse país? O Orçamento Participativo era pra um debate sobre isso e não um mero arranjo das demandas. E cataloga aqui, faz um cronograma, e passa não ter depois condições de cumprir aquilo, por que os recursos, que são a outra ponta, são desconhecidos da receita pública, são desconhecidos da população. Como é que ela se monta e por que o poder público tem que aceitar um empreendimento numa região à custa deste empreendimento não pagar imposto, ou pagar menos que os empreendedores pequenos e médios que já estão instalados nessa região pagam? Quem define isso? Por que isso acontece aqui numa região e não outra? E acaba tu esvaziando regiões e inviabilizando pequenas comunidades, empurrando o povo para as periferias urbanas, cada vez mais conturbadas, e todas as condições das mais difíceis de sobrevivência digna para milhares de pessoas.
 
Quer dizer, tem coisas que nós não fomos a fundo, porque é preciso ganhar eleições, e é evidente que é preciso ganhar eleições. Mas mais do que isso, é importante criar uma consciência de que o povo vai se sentindo protagonista de um processo de mudanças. Isso implica, às vezes, em perder algumas eleições, mas não perder o rumo. Penso que até hoje as elites não engoliram o fato de ter tido um presidente da República, caso do Lula, que não veio das famílias nobres, aristocráticas, fora disto. Até hoje a gente sente resquícios desses preconceitos, desse desprezo. Mas não basta chegar lá com uma pessoa não vinda desses estamentos da nobreza, da aristocracia e dos ricos, e depois se cercar por esses interesses. Penso que fizemos até muito, mas estamos devendo muito mais ainda. Acho que não mexemos ainda nas estruturas injustas, centralizadoras de poder e de riqueza que existem há séculos.

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