terça-feira, 23 de setembro de 2014

Celso Furtado, golpe de 1964 e as eleições de 2014


Pedro Paulo Zahluth Bastos no Carta Maior

postado em: 23/09/2014

Celso Furtado é provavelmente o mais conhecido economista brasileiro. Seus livros contam com várias edições, foram traduzidos em diversos idiomas e são redescobertos ainda hoje, dez anos após sua morte, por estudantes universitários e cidadãos interessados. Como é também uma referência para aqueles que lutam por desenvolvimento com maior autonomia nacional e justiça social, não surpreende que Furtado seja periodicamente o alvo de economistas neoliberais.

Em 2006, Eduardo Gianetti dividia mesa em um simpósio na PUC-SP sobre os 50 anos do Plano de Metas comigo e Francisco de Oliveira, quando fomos forçados a ouvir dele que Celso Furtado nunca escrevera uma linha sobre a importância da educação para o desenvolvimento. Depois de ouvir respostas fundamentadas em leituras mais atentas de Furtado, desconheço se Gianetti escreveu alguma linha sobre o assunto. Essas linhas abundam, no entanto, na lavra de Samuel Pessoa, economista da FGV ligado ao PSDB, e agora de Alexandre Rands, professor e empresário do setor de telemarketing, coordenador do programa econômico de Marina Silva.

Sobre Furtado, Pessoa já afirmou que “em nenhum momento da vida produtiva dele, de 50 anos, achou que havia qualquer relação entre falta de educação e subdesenvolvimento” (Época, 10/09/2012). Pessoa considera que, com doses suficientes de educação, a especialização produtiva do país nada importa para seu potencial de crescimento. Rands chama Furtado diretamente para a campanha eleitoral:

“Na visão de Marina, as reformas institucionais são importantes, mas mais importante ainda é o impulso da educação... Na visão de Dilma, desenvolvimento é feito por demanda (consumo). É impressionante porque, mesmo com pleno emprego, ainda mantêm isso, junto com a visão estruturalista de privilegiar um ou outro setor com políticas discricionárias... É um modelo econômico altamente inflacionário, baseado no Celso Furtado.” (O Globo, 14/09/2014).

As duas assertivas são caracterizações extremamente empobrecedoras da riqueza do pensamento de Furtado. É difícil afirmar que seus autores tenham lido Furtado com atenção, como mostrarei, nesse primeiro artigo, para a relação entre consumo, inflação e desenvolvimento. Como se sabe, a obra de Furtado influenciou internacionalmente na direção da ampliação dos temas relativos ao desenvolvimento econômico em pelo menos duas direções.

Primeiro, Furtado demonstrou a inexistência de leis universais que descrevam e expliquem a trajetória de desenvolvimento de diferentes economias. Fascinados pelas ciências da natureza, economistas liberais viviam e ainda vivem à procura de explicações simples e universais, a-históricas, para o desenvolvimento econômico, entendido como aumento da produtividade e da riqueza das nações: livre concorrência (local e internacional), preços livres de intervenção estatal ou conluio monopolista, um Estado garantidor de contratos e ofertante apenas das poucas externalidades que o mercado não oferece adequadamente (como educação, infraestrutura e, pelo menos depois de 2008, regulação financeira...). Qualquer país poderia trilhar o caminho dos países desenvolvidos caso repetisse a mesma fórmula liberal que supostamente tinham seguido, mesmo que não copiasse também seus ramos intensivos em ciência e tecnologia e mantivesse a especialização em ramos de menor valor agregado.

Desenvolvimento e subdesenvolvimento

Furtado rejeitou essa fórmula fácil e incorporou o tempo e o espaço na equação do desenvolvimento, aprofundando ideias do economista argentino Raul Prebisch e outros. Propôs pensar desenvolvimento e subdesenvolvimento como polos de um mesmo sistema: o sistema Centro-Periferia, herdeiro direto do antigo sistema colonial. Os países desenvolvidos, a partir da industrialização precoce, eram os centros criadores de tecnologias cada vez mais complexas, emitiam moedas fortes e controlavam serviços financeiros, produtivos e de comercialização de alto valor agregado. Desde sua origem, os países subdesenvolvidos foram periferias subordinadas que se especializaram em ramos de menor valor agregado, particularmente commodities primárias demandadas pelas antigas metrópoles coloniais que se transformaram nos países desenvolvidos industrializados.

Comparados à indústria, os ramos produtores de commodities tinham demanda menos dinâmica a longo prazo, menores barreiras à entrada de novos concorrentes e horizontes de progresso tecnológico bastante restrito. O horizonte tecnológico limitado não resultava apenas da precariedade do sistema de ciência, educação e tecnologia nos países pobres e da falta de recursos excedentes para financiar sua transformação: não se pode desconsiderar as próprias restrições físicas do objeto natural cultivado ou extraído, que limitam a agregação possível de valor, e a geração de excedentes, antes de sua transformação industrial. O setor primário nunca gerará excedentes nem será tão intensivo em ciência, tecnologia e educação quanto as inovações que transformam o setor industrial e, em menor medida, os serviços a ele associados.

Ao contrário das narrativas lineares do liberalismo, Furtado demonstrou que os países subdesenvolvidos não estavam simplesmente atrasados no mesmo percurso trilhado pelos desenvolvidos: ocupavam uma posição integrada a um sistema favorável aos países desenvolvidos. A estes interessava difundir o mito liberal da harmonia entre países que controlavam ramos e tecnologias tão assimétricos, a agropecuária e a extração mineral, de um lado, a indústria de transformação e serviços elaborados, de outro. Um país subdesenvolvido não estava, portanto, apenas atrasado, mas fadado a reproduzir sua pobreza relativa e sua heterogeneidade interna (entre ramos, regiões e populações) caso aceitasse passivamente os mitos liberais e não se libertasse das restrições estruturais determinadas por sua posição periférica.

Crescimento e desenvolvimento

A segunda contribuição notável de Furtado foi distinguir claramente crescimento e desenvolvimento econômico, de duas maneiras. Inicialmente, Furtado defendeu que, embora qualquer país subdesenvolvido pudesse crescer por algum tempo sem modificar sua estrutura econômica, o crescimento só seria sustentado caso mudanças estruturais fossem realizadas de modo planejado, uma vez que não resultariam espontaneamente das decisões de agentes guiados pelos incentivos de preços relativos em livre mercado.

A principal restrição ao crescimento dos países subdesenvolvidos é a de balanço de pagamentos, que se manifesta sempre que não conseguem pagar importações de maior valor agregado e serviços financeiros e produtivos externos, com suas exportações de menor valor agregado e preços instáveis. A receita liberal padrão, imposta ainda hoje pelo Fundo Monetário Internacional, é a do ajuste recessivo com desvalorização cambial, doa a quem doer. Abstraindo por ora a que grupos sociais se destinam as dores e os ganhos, Furtado alegava que o ajuste recessivo pode ter resultados a curto prazo, mas não assegura que a restrição não retorne assim que o país volte a crescer. Para aumentar o potencial de crescimento, portanto, é necessária uma diversificação da estrutura produtiva que, a longo prazo, aumente exportações e substitua importações.

Ao contrário do que as narrativas liberais veiculam, a chamada industrialização por substituição de importações não foi iniciada pelo conluio de planejadores estatistas e empresários predadores de rendas, a partir da década de 1930 para alguns países subdesenvolvidos, e pós-Segunda Guerra para outros. Resultou, sim, da resposta espontânea de agentes de mercado à mudança de preços relativos provocada por crises cambiais. A cada crise cambial, contudo, a substituição de importações simples aumentava a demanda por bens de produção e serviços importados cuja substituição posterior era mais difícil. De fato, a nova pauta de importações tendia a concentrar-se em bens e serviços cuja oferta interna era barrada por exigências de tecnologia, financiamento e escala de mercado que afastavam empresas nacionais e estrangeiras, umas por incapacidade, outras por cálculo de rentabilidade e risco.

Como o livre mercado não resolvia espontaneamente a situação, não bastava ao Estado oferecer externalidades, como infraestrutura ou educação, sem influenciar indiretamente na alocação dos recursos privados através de impostos e subsídios ou mesmo alocar diretamente recursos através de empresas e bancos públicos. Furtado compreendeu que não havia solução duradoura para as restrições ao crescimento senão através da orientação de investimentos em ramos específicos e a superação de estrangulamentos de oferta com apoio estatal. Isso significa estimular a demanda e o consumo indiscriminadamente, como sugere os ortodoxos?

Muito pelo contrário, Furtado argumentou que a abertura comercial indiscriminada – defendida por neoliberais como Pessoa e Rands – desperdiçaria reservas cambiais escassas com importações de bens de consumo supérfluos ou bens necessários na produção de bens de consumo supérfluos. Logo, era necessário inibir tanto sua importação quanto sua produção local. Por quê? Exatamente para canalizar recursos escassos para investimentos que ampliam a capacidade de produção local de bens essenciais. O que seria essencial para superar o subdesenvolvimento? Insumos e bens de capital que realimentam o potencial de crescimento, assim como bens de consumo básico e infraestrutura social para reduzir desigualdades de acesso ao consumo e de capacitação entre os cidadãos.

A escolha política na destinação do excedente social

Isto nos leva à segunda forma de distinguir crescimento e desenvolvimento. Ao longo de sua obra, Furtado estendeu o significado de desenvolvimento para abarcar não apenas mudanças na estrutura econômica e nas instituições políticas que alargassem o potencial de crescimento econômico, mas que apontassem na direção da homogeneidade socioeconômica e justiça social. Furtado não era contrário ao crescimento econômico acelerado, porém tampouco defendia qualquer estilo de crescimento. Seu ideal era uma sociedade com menor concentração da propriedade e da renda, que eliminasse a pobreza extrema e superasse racionalmente os desequilíbrios e estrangulamentos inerentes ao processo de desenvolvimento.

Como direcionar investimentos para a superação de estrangulamentos e, ao mesmo tempo, não comprimir a capacidade de consumo dos desfavorecidos? Furtado não se colocou a questão apenas abstratamente, mas no embate contra um sistema político conservador e uma potência estrangeira que boicotaram o Plano Trienal em 1963. O Trienal ocorreu em uma conjuntura de desaceleração cíclica trazida pela maturação dos investimentos do Plano de Metas do governo JK, que internalizara ramos novos de material elétrico, mecânico e de transporte, e ampliara ramos de insumos básicos e a infraestrutura de energia e transporte, colocando a economia brasileira em estágio superior de incorporação de progresso técnico.

A desaceleração foi acompanhada por restrições de balanço de pagamentos, em vista de nova fase de declínio de preços do café, da incompressibilidade das importações essenciais e do aumento das remessas de juros, lucros e dividendos em razão do passivo externo acumulado contra filiais e bancos estrangeiros. A desvalorização cambial também teve forte impacto inflacionário, seja ao encarecer importações seja ao induzir elevação de margens de lucro de empresas endividadas externamente ou interessadas em remeter lucros em moeda forte. Ontem como hoje, a ortodoxia liberal desconsiderava pressões de custo e explicava a inflação pelo excesso de demanda monetária, culpando sobretudo os bancos e o déficit públicos pelo excesso e propondo o corte de crédito e gasto (preferencialmente ao aumento de impostos).

Furtado não negava que o déficit público pudesse ser um motivo da inflação, mas alegava que a existência de estrangulamentos de oferta era mais importante que o nível de demanda agregada para explicar a inflação – o que era correto na conjuntura de desaceleração. O problema era que o processo de diversificação produtiva de uma economia periférica era heterogêneo e desequilibrado: a oferta em certos ramos não era facilmente ampliada por causa da existência de barreiras financeiras e tecnológicas, de modo que, para um certo nível de demanda agregada, diferentes ramos teriam diferentes graus de capacidade ociosa. Por isto, uma política de contenção da demanda agregada para combater a pressão inflacionária, que se localizava apenas em certos ramos onde havia estrangulamento de oferta (industrial ou agrícola), deixaria a economia como um todo crescendo muito aquém de seu potencial. Isto significava que controles de demanda podiam unicamente comprar tempo para as reformas que propiciariam a adequada programação do desenvolvimento.

Para uma solução duradoura, seria preferível orientar a destinação de investimentos públicos e privados para superar estrangulamentos de oferta, e influenciar o estilo de consumo dispendioso de reservas cambiais por meio do sistema de impostos e subsídios. Em geral, a arrecadação tributária deveria aumentar, com a maior justiça distributiva possível, para financiar necessidades de investimento exigidas pelo desenvolvimento e pela estabilidade de preços. Em outras palavras, a programação do desenvolvimento seria o único remédio estrutural contra a inflação. A curto prazo, contudo, sem uma reforma tributária preliminar, e sem renegociação dos prazos de pagamento da dívida externa, os desequilíbrios não podiam sequer começar a ser enfrentados.

O maior obstáculo ao Plano Trienal foi a incapacidade política de destinar o excedente para investimentos tal como propunha Furtado, educador incapaz de educar nossas elites. O Congresso Nacional, controlado por partidos conservadores, vetou até a correção monetária de impostos, para não falar do aumento da progressividade da tributação. Os mais ricos não estavam dispostos a moderar seu consumo diferenciado para financiar o planejamento de investimentos e a infraestrutura de bens públicos. O governo estadunidense não apoiou reescalonar a dívida externa exatamente para desestabilizar o governo Goulart, com sucesso.

Os economistas que apoiaram a ditadura militar, por sua vez, afirmavam que a raiz dos problemas eram o abuso de demandas salariais acima da produtividade do trabalho, preços relativos definidos politicamente e a sobrecarga de serviços públicos acima da capacidade de poupar, pressionando lucros e reduzindo investimentos. Vetos conservadores à reforma tributária, margens de lucro crescentes, desaceleração cíclica ou crise cambial? Não, o culpado último pela crise seria um sistema político em que as decisões eram influenciadas por pressões democráticas e por um governo “irresponsável” às leis da economia.

Desse diagnóstico, deduziu-se outra escolha de destinação do excedente: reduzir o salário de base à força (administrado, o salário mínimo real caiu 35% entre fevereiro de 1964 e março de 1967), liberar preços administrados para elevar lucros, criar uma poupança compulsória formada a partir da folha salarial para subsidiar a construção de subúrbios que segmentavam burguesia e camadas médias, de um lado, e a população desprovida de condições adequadas de moradia e serviços públicos, do outro lado do muro. Os latifúndios aumentaram e receberam subsídios para a modernização técnica, enquanto o êxodo rural inchou a periferia insalubre das grandes cidades e rebaixou o salário dos trabalhadores desqualificados.

Furtado considerou, inicialmente, que o agravamento da concentração da renda e da propriedade levariam à estagnação. Sua maior discípula, Maria da Conceição Tavares, demonstrou que a concentração de renda animou a construção civil, a automobilística e a indústria de bens duráveis, gerando um estilo de crescimento excludente e acelerado mas quase antípoda ao desenvolvimento furtadiano, estilo esse que nada tinha de “tecnicamente” necessário, eis que resultado de uma escolha imposta pela ditadura.

Ajuste para quem?

O “milagre” econômico, contudo, não nos legou apenas uma infraestrutura urbana e de serviços talhada para uma minoria: também deixou uma dívida externa que quebrou o Estado brasileiro, produziu hiperinflação e agravou a concentração de renda. Para rolar a dívida externa, a ditadura nos legou também uma dívida pública interna que, na década de 1990, os neoliberais afirmavam ser possível pagar com a venda de patrimônio público, apenas para deixar-nos sem o patrimônio mas com uma dívida várias vezes maior.

É evidente que, uma vez que a economia voltasse a crescer depois das crises financeiras e cambiais provocadas pelos “milagres” da ditadura e dos neoliberais, como faz desde 2004, a infraestrutura social construída para minorias seria pressionada pela demanda, explicitando seus estrangulamentos.

Isso não significa que o investimento tenha crescido, desde 2004, a taxas menores que o consumo, muito menos que isso ocorresse porque a poupança foi “estrangulada” pela ampliação do consumo. O mito foi usado em 1964 para justificar a política de rendas da ditadura militar: seus economistas diziam que os salários de base precisavam cair para que os lucros aumentassem e, com eles, o investimento. Durante o “Milagre”, contudo, o consumo de bens duráveis e o investimento residencial (financiados a crédito além da poupança corrente) anteciparam e induziram o investimento produtivo privado. Lucros e ordenados de classe média foram direcionados antes para comprar casas, automóveis e eletrodomésticos do que para ampliar capacidade de produção.

A experiência histórica pouco importa aos herdeiros ideológicos dos economistas da ditadura que repetem, hoje, os mitos convenientes de 1964. A repetição do mito tampouco procede: durante o ciclo de expansão com redução das desigualdades de renda da última década, “no acumulado entre 2005 e 2013, o investimento cresceu 89% em termos reais, período este em que consumo cresceu 61%” [1]. Mesmo na automobilística, objeto de incentivos à sustentação da demanda que são alvos de crítica, os investimentos crescem bem adiante da demanda e devem levar a excesso de capacidade no ramo, o que provavelmente o obrigará a exportar para defender rentabilidade.

É inegável que a infraestrutura social ainda precisa crescer, uma vez que foi constituída para minorias que experimentam, hoje, a concorrência de milhares de cidadãos que passaram a auferir renda suficiente para migrar da rodoviária para os aeroportos, do SUS (desfinanciado pela CPMF) para planos de saúde privados, ou do transporte coletivo para o sonho acalentado desde a modernização excludente da ditadura: o veículo individual.

Qual o ajuste entre oferta e demanda é proposto por aqueles inspirados por Furtado e por seus críticos?

O horizonte furtadiano é, a meu ver, o do desenvolvimento que não se confunda meramente com crescimento, que incorpore a demanda crescente por direitos sociais e bens públicos como alavanca de investimentos, na direção de uma sociedade de consumo de massas com maior homogeneidade socioeconômica e justiça social. Rejeita o mito ortodoxo de que a expansão dos salários não possa, via ocupação e expansão da capacidade produtiva, implicar elevação simultânea dos lucros. Tampouco aceita passivamente o mito liberal que a especialização produtiva do país nada importa para seu potencial de crescimento.

Isso implica intervenção do Estado, democrático e republicano, para alocar excedentes dos mais ricos e recursos extraordinários gerados não por “milagres”, mas inovações tecnológicas – como o Pré-Sal - para financiar a construção da infraestrutura de bens públicos; reduzir impostos dos mais pobres, assim como desigualdades de acesso ao consumo (inclusive residências) e de capacitação (não apenas educação) entre os cidadãos; eliminar a pobreza extrema; e influenciar a ampliação do investimento em capacidade produtiva, para superar racionalmente os desequilíbrios e estrangulamentos inerentes ao processo de desenvolvimento, sem confiança cega no livre mercado. A receita neoliberal padrão continua a ser ajuste recessivo com abertura comercial e desvalorização cambial, doa a quem doer, daí a necessidade de blindar um Banco Central Independente. É claro que doerá menos aos portadores da dívida pública, proprietários de excedentes que renderiam juros maiores: um Banco Central Independente “... teria subido os juros antes. Não teria reduzido o compulsório,” nos informa o empresário que é coordenador do programa econômico de Marina Silva.

A crítica neoliberal é que os estímulos ao investimento (desoneração fiscal, juros subsidiados, compras governamentais) e à demanda (elevação de salários reais e do gasto social, defesa do emprego e isenção de impostos) têm impacto inflacionário: em uma situação de “pleno emprego... é um modelo econômico altamente inflacionário”, segundo o mesmo empresário. O neoliberalismo também é contrário a incentivos seletivos aos investimentos para superar gargalos específicos de oferta. Assim, sem qualquer ponderação de choques de custo independentes do nível de atividade, propõe-se o banco central independente, capaz de gerar desemprego para assegurar a estabilidade de preços.

Os neoliberais também são contrários a reduções compensatórias de alguns preços administrados ou custos tributários para complementar e limitar a austeridade que, alegam, o BC independente deve promover. Logo, toda a economia teria que operar abaixo de sua capacidade se apenas poucos setores sofressem estrangulamentos de oferta ou choques de custos. Defendem, por exemplo, elevação de preços de energia elétrica e petróleo, ou seja, que não haja qualquer administração compensatória de preços mesmo em momento de choque agrícola e desvalorização cambial, alegando que a elevação de juros e o corte do gasto público devem “compensar” sozinhos o impacto dos choques. Dado o “tarifaço” proposto, não surpreende que Rands afirme ser necessário elevar o centro da meta de inflação para 6,5% no primeiro ano do governo Marina, antes do esforço do Banco Central Independente para reduzi-lo até 3% no final do governo. [2]

É claro que uma economia muito aquecida pode ter mais gargalos de oferta que pressionem custos e preços, mas hoje os neoliberais já dizem que o crescimento potencial (máximo) da economia teria caído para algo entre e 1,0% e 1,5% ao ano! Ou seja, mais do que isso, teríamos pressão inflacionária que deveria ser contida com aumento do desemprego:

“Se olharmos para inflação alta, desemprego baixo e déficit em conta corrente elevado e amplo, de fato parece que o PIB potencial do país caiu bastante e não deve estar distante de 1% a 1,5%... O fato é que 2015 será um ano de ajuste e vamos partir de uma economia estagnada... O ajuste fiscal é essencial. Tem que achar um ponto percentual de receita de forma recorrente... O Brasil vem subsidiando consumo, com desoneração da cesta básica, da tarifa de energia elétrica, em cerca de 1 ponto percentual do PIB. Não dá para manter essa política e o grau de investimento. São medidas que tiram 1,7 ponto da inflação, mas não sem custo, e não dá para sustentar impacto fiscal indefinidamente.” (Valor Econômico, 01/09/2014).

Quem afirma é Mário Mesquita, sócio do Banco Brasil Plural e polemista que considera, como outros, que ideais antigos precisam ser arejados “sob a luz do sol”. Agradecemos o conselho, mas o fato de que neoliberais preservem antiga fixação em criticar Celso Furtado e seus herdeiros é, para estes, provavelmente um dos maiores elogios que podem receber.

(*) É professor associado (Livre Docente) do Instituto de Economia da Unicamp e ex-presidente da Associação Brasileira de Pesquisadores em História Econômica (ABPHE).

NOTAS

[1] Ver o excelente artigo de Laura Carvalho, “A mística das expectativas e a retomada do investimento privado” no site Brasil Debate, 25/08/2014.

[2] Folha de São Paulo, “Aliado de Marina propõe aumentar meta de inflação”, 14/09/2014. Nas palavras de Eduardo Gianetti, o principal consultor econômico de Marina Silva, “eu tendo a crer que vale a pena fazer o que precisa ser feito rapidamente. Em relação a preços administrados, por exemplo, se não convencer de que o que tinha que ser feito foi feito, a expectativa do que falta fazer vai alimentar a expectativa de inflação futura, o que dificulta fazer as expectativas convergirem de novo para o centro da meta.” (Valor Econômico, “Programa de Marina será cumprido quando conta fiscal permitir”, 08/09/2014). Para Samuel Pessoa, “o próximo presidente receberá inflação entre 6,5% e 7%, com serviços rodando a 8,5%, com atraso tarifário que aumentará no momento de sua correção a inflação em 1,5 ponto percentual... Para piorar a situação, para um déficit de transações correntes acumulado em 12 meses de 1,6% do PIB em dezembro de 2002, temos hoje 3,7%, a caminho de 4%. Serão necessárias novas rodadas de desvalorização do câmbio, além, evidentemente, de outras medidas para conter a demanda, para trazer esse déficit para mais próximo de 1,5% do PIB. A desvalorização do câmbio colocará nova pressão sobre a inflação... Se considerarmos o primário líquido de receitas extraordinárias, neste ano o Tesouro entregará resultado de 0,8% do PIB. Será necessário em 2015 recompormos o superávit primário para algo entre 2,5% e 3% do PIB. Diversas medidas de desoneração tributária terão que ser desfeitas, além de, possivelmente, ser necessário criar novas bases tributárias. Ambas as medidas pressionarão a inflação. Por esses motivos, afirmo que os 6,5% de inflação de dezembro de 2014 serão mais difíceis de trazer de volta para a meta do que os 12,5% de dezembro de 2002.” (Folha de São Paulo, “A conta ficou salgada”, 04/05/2014).




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