O
texto abaixo, de Gabriela Araújo, foi publicado em seu blog, gabinoica.
Eu
não vou conseguir ser linear, mas espero que entendam os
pormenores desta história íntima. Eu morei 10 anos em
Londrina, no norte do Paraná, em um bairro de periferia
chamado Jardim Leonor e estudava em uma escola estadual.
Na
época não era assim muito comum ter sonhos além de chegar ao
final do ensino médio, então a falta de credibilidade das
pessoas em mim já começava aí. As pessoas, menos a minha mãe.
Quando eu tinha 16 anos decidi mudar de período na escola,
indo do matutino ao noturno, para que assim tivesse um tempo
para trabalhar e pagar o cursinho pré-vestibular. E isso já
era uma audácia muito grande: desejar ingressar na
Universidade Estadual de Londrina.
A
minha mãe não deixou que eu seguisse com estes planos, dizia
que seria pesado demais conciliar trabalho e escola, e me
sobraria pouco ou quase nenhum tempo livre pra diversão e
coisas de adolescente. Por isso eu comecei a tentar estudar em
casa mesmo, só com os materiais da escola – internet era um
luxo inimaginável. Na verdade, nem computador eu tinha, e não
tinha vaga ideia de quando eu teria um. A minha mãe trabalhava
como costureira autônoma.
Tudo
isso para explicar que: era impossível pagar cursinho, era
impossível pagar escola particular e o que eu tinha era um
punhado de livros e o sonho de ingressar no curso de Relações
Públicas da UEL. Essa era uma situação risível no meio onde eu
vivia. O ensino superior não era um direito de todos. Nós, que
estávamos às margens da cidade, geralmente acabávamos por
servir os que estavam no topo. Era muita audácia da minha
parte.
Para
encurtar esta parte da história: Em fevereiro de 2005 eu fui a
uma festa promovida pela rádio pop local, que divulgaria o
resultado do vestibular ao vivo, e quando eles distribuíram o
jornalzinho do resultado (patrocinado pelo maior colégio
particular da cidade, risos), meu nome estava lá, e
naturalmente minha mãe chorou quando recebeu a notícia por
telefone, um celular que eu peguei emprestado de um amigo.
Estaria
tudo ok se não fosse um porém: eu era cotista. Isso aí é como
se eu carregasse alguma placa em neon piscante dizendo que eu
não pertencia àquele lugar. Desde o começo eu ouvi
manifestações hostis de pessoas que diziam abertamente que eu
não deveria estar ali, pelos seguintes motivos:
–
Elas estudaram muito, pagaram 2, 3, 4 anos do cursinho mais
caro da cidade justamente para terem mais chance.
– Um possível mau desempenho meu atrasaria a turma toda.
– É racismo inverso contra brancos (sic).
– Cria vagabundos.
– Um possível mau desempenho meu atrasaria a turma toda.
– É racismo inverso contra brancos (sic).
– Cria vagabundos.
Eu
queria explicar estes pontos de maneira ponderada e
organizada, mas não dá. A explicação vai vir bagunçada, tal
como a bola de ódio nutrida contra cotistas nas turmas de 2005
da Universidade Estadual de Londrina.
Pra
começar, vocês precisam entender que eu não acredito no
sistema de vestibulares como seleção de pessoas inteligentes e
aptas a esse grande portal de suposição de superioridade
intelectual chamado Universidade. Pra mim, o ensino deveria
ser universal. E para o vestibular nós nos matamos para
compreender ou decorar coisas que às vezes fazemos questão de
esquecer o mais rápido possível, porque temos (ou deveríamos
ter) direito de escolher as áreas que gostamos mais.
Meus
conhecimentos em química evaporaram tão rápido quanto perfume
ao sol. Mas em mim ficou a Geografia Política, que eu fazia
questão de ser a melhor aluna da sala, História, Literatura e
os idiomas. E era isso que eu queria continuar estudando. O
vestibular é um funil desgraçado e cruel.
As
escolas moldam crianças e adolescentes para passarem em provas
“difíceis”, abordando questões pouco compreensíveis e
ignorando toda a realidade social, só para estampar a cara do
aluno vencedor e fazer dele uma mídia espontânea, que trará
mais alunos para a escola e, assim, mais dinheiro.
Conhecimento
pode ser adquirido, mas não deveria ser tão difícil. Desde
mensalidades, até preços de livros, é tudo um grande
obstáculo. Quem trabalha com educação sabe disso ainda melhor
do que eu, por ter uma visão global e maior conhecimento sobre
a influência econômica no sistema educacional. Mas a prática
não deixa muita dúvida: educação é para quem pode comprar.
Sobre
o racismo inverso a gente finge que não ouviu, pro bem da
nossa saúde mental. E se insistirem, uma aula explicando o
massacre das populações negras deveria ser suficiente. Se não
for, é porque o ouvinte é mau-caráter, mesmo. E também me
surgia a dúvida: a pessoa estuda 4 anos em escola particular e
culpa uma cotista de ter roubado a vaga? Não soa razoável. Mas
dinheiro ainda importava.
Aí
vem a nova parte da minha novela.
Sobre
a vagabundagem cotista: possivelmente a acusação mais
esdrúxula neste mar de chorume racista. O curso de Relações
Públicas não é dos mais caros. Os livros saem por cerca de 40
reais. A exceção são os livros de Economia e Marketing que, às
vezes, passam dos 100. Mas todo aquele volume de xérox começou
a falir a conta bancária que eu já não tinha. E, em certos
dias, eu precisava escolher entre pagar 3 reais de passagem de
ônibus ou usar estes mesmos 3 reais para comprar comida.
Dentro do ambiente acadêmico, porém, o desempenho era
equivalente. Eu não sentia que era menos capaz do que meus
colegas oriundos de escolas particulares.
Então
eu ingressei em um projeto chamado Afroatitude, que unia
alunos cotistas de 10 universidades públicas:
“O
Programa Nacional Afroatitude propicia aos alunos negros
bolsas para desenvolverem projetos com os temas: Cultura e
População Negra/Discriminação Racial, Vulnerabilidade Social,
Prevenção das DST/AIDS e Direitos Humanos. Na UEL, o relatório
final dos bolsistas Afroatitude que participaram de projeto de
iniciação científica (2005-2007) deu-se com a entrega de um
artigo sob supervisão do orientador.
Os
trabalhos foram surpreendentes, considerando que se tratavam
de alunos da primeira série, que descortinavam um mundo
extremamente novo em relação ao seu cotidiano, quer como
vivência em sala de aula, quer como participação em projetos.”
Com
este projeto eu entrei em contato com a cultura negra, o que
me era inédito, usei o dinheiro da bolsa pra comprar o
primeiro computador da minha vida, estudei a vulnerabilidade
da população negra e isso serviu de estopim pra tudo o que eu
sou hoje. Apoiados pela Secretaria dos Direitos Humanos do
Governo Federal, nós tivemos a chance de estudar a influência
e as carências das populações negras das regiões em que
vivíamos, e pudemos finalmente ter a noção do tanto de
trabalho que ainda havia a ser feito.
Eu
não sei se consigo ser objetiva neste ponto e explicar direito
a importância deste projeto em minha vida. Digamos que minha
intelectualidade ganhou na loteria acumulada. Muita riqueza de
informação. Em paralelo a isso, eu queria entender por que
alguns colegas insistiam que eu e meus demais amigos cotistas
éramos inúteis e tão dispensáveis, e por que não deveríamos
estar ali.
Na
época era algo que eu não conseguia nem começar a explicar, e
me restava ficar calada em situações constrangedoras, como
quando pessoas riram ao assistir “Quanto Vale? Ou é por
quilo?”, chamando objetos de tortura de escravos de “enfeite
pra cara”.
Me
deem um desconto, eu era uma piveta de 17 anos sem muito
acesso à informação. Felizmente, 4 anos foram suficientes pra
provocar uma tormenta em mim, que me deixou cada dia menos
tolerante a provocações racistas.
Eu
me formei em 2008, sem ter a minha foto de criança exposta no
painel da festa, como meus outros colegas, por eu não ter
conseguido pagar a festa. Eu fui como convidada de uma amiga.
Eu me formei odiando festas de formatura e me sentindo deslocada.
Eu me formei odiando festas de formatura e me sentindo deslocada.
Mas
o que é importante dizer que cotas funcionam, sim. E
incomodam, também. Incomodam porque provam que vestibular não
serve mais pra nada, e porque “mescla” um ambiente que, até 10
anos atrás, era homogêneo. Branco.
As
cotas provam que elite intelectual é um termo inventado para
deprimir e assustar aqueles que não possuem grandes quantias
de dinheiro para serem gastas em escolas que vendem mais
imagem do que conhecimento. Ou para manter estas pessoas longe
da preocupação da escola pública, porque afinal, pra que se
preocupar com a escola da filha da empregada se a tua cria
pode estudar no palácio do centro?
Como
costureira, empregada e babá, a minha mãe passou a vida
construindo sonhos comigo. O sistema de cotas me ajudou a
realizar um deles, Mas esta é a visão individualista, e vocês
precisam entender o impacto global disto. Sendo cotista, eu
ingressei em um excelente curso de uma excelente instituição,
recebi um tsunami de cultura negra que me empoderou de uma
forma que eu nem imaginei que fosse possível.
Já
formada, eu passei a me preocupar em ser uma multiplicadora,
levando pra frente o que eu aprendi com o Afroatitude, e faço
questão de empoderar cada jovem negro que passa pela minha
vida. Com o sistema de cotas eu enfrentei a sociedade mimada,
acostumada a ser bem dividida entre os que nasceram pra servir
e os que nasceram pra serem servidos, e eu trabalho até hoje
contra segregação racial. E vou continuar trabalhando enquanto
meu corpo e minha mente permitirem.
Como
profissional de Relações Públicas, aos 24 anos eu alcancei a
posição de gerência da empresa onde trabalhei. Não me soa nada
ruim.
Eu
voltei a estudar em 2010, desta vez escolhi aprender a ler,
escrever e falar árabe coloquial e árabe clássico. Estudei
cinema árabe, literatura árabe, filosofia árabe, história
árabe.
O
sistema de cotas para negros é bem simples de entender, ele é
feito para a inserção de pessoas negras na universidade. Ele
não substitui a necessidade de repensarmos a educação de base,
mas impede que a disparidade racial do país aumente. O sistema
de cotas não é outra coisa, senão um sistema inclusivo.
Também
é leviano chamá-lo de “esmola governamental”, porque uma das
obrigações do governo é justamente zelar pelo bem estar de
seus cidadãos, e os cotistas estão apenas utilizando um
direito, que é o de estudar. Errado é achar que, porque estas
pessoas não tiveram 1.500 reais por mês durante 15 anos, não
merecem entrar pelos portões da frente do ensino superior. O
sistema de cotas incomoda porque mostra que dinheiro pode
comprar coisas, pode até comprar gente, mas não pode comprar
humanidade.
E,
por falar em conhecimento, um sem-número de artigos já
explicaram a real eficiência desta solução, então não é
difícil a compreensão.
Há
também quem busque invalidar toda a experiência dos cotistas,
afirmando que a única solução correta e eficiente seria a
reforma total do ensino de base, apenas. Eu talvez preste
atenção nisto no dia que todos os pais puderem educar seus
filhos com as mesmas condições econômicas, e isso inclui os
empregados de quem desqualifica os cotistas.
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