Devemos
confessar certa nostalgia pelo que ainda se pode
chamar "idade de ouro da segurança", ou seja, por uma
época em que mesmo os horrores eram ainda
caracterizados por certa moderação e controlados por
certa respeitabilidade e podiam, portanto, conservar
alguma relação com a aparência geral de sanidade
social". Hanna Arendt, Origens do Totalitarismo,
Companhia das Letras, São Paulo, 2004, p:153
Menos de
dois meses depois da queda do voo MH-17 da Malaysia
Airlines, no leste da Ucrânia, o relatório preliminar da
Junta Holandesa de Segurança chegou à conclusão que o
Boeing 777, da Malaysia, "explodiu no ar como resultado
de danos estruturais provocados por um grande numero de
objetos de alta energia ("high energy objects") que
penetraram no aparelho desde o exterior".
Segundo
especialistas, ao contrário do que se pensou
inicialmente, o avião da Malaysia Airlines teria sido
atingido, portanto, por um míssil ar-ar de fragmentação
que ao explodir disseminou milhares de objetos
semelhantes a balas. Um tipo de armamento altamente
sofisticado e de fácil identificação, que os
separatistas ucranianos não têm nem nunca tiveram.
Tratados
e convenções definem o "direito internacional da
guerra" segundo a ética das potências ocidentais
O relatório
final da junta holandesa só será publicado em meados de
2015, segundo sua porta-voz Sara Vermooij, mas seja qual
for o seu veredito, parece que nenhuma das potências
envolvidas no conflito está mais interessada nas
verdadeiras causas e nos verdadeiros responsáveis por
este homicídio coletivo de 298 pessoas estranhas à
guerra. Em grande medida, porque seus efeitos políticos
internacionais já foram logrados, com o afastamento
entre a Alemanha e a Rússia e com o endurecimento da
posição da UE, que vinha sendo defendido pelos EUA e
pela Grã Bretanha.
Em 1128, São
Bernardo de Clairvaux - admirado até hoje pelas igrejas
católica, anglicana e luterana - cunhou a expressão
"malecídio", para referir-se e para defender moralmente
o homicídio dos hereges, feito em nome de Deus. São
Bernardo estava pensando e justificando o extermínio dos
mouros pelas Cruzadas dos séculos XI e XII, mas, de uma
forma ou outra, esta mesma tese reaparece mais tarde na
teoria da "guerra justa", defendida pelos teólogos
espanhóis dos séculos XVI e XVII, que também
consideravam ético o extermínio dos indígenas americanos
que resistissem à fé e à civilização cristã.
Esta teoria
mudou sua fundamentação - depois de Hugo Grotius
(1583-1645) e de Samuel Pufendorf (1632-1694) - mas
manteve o mesmo princípio e a mesma distinção que segue
presente nos tratados e convenções dos séculos XIX e XX,
que definem o "direito internacional da guerra" segundo
a visão ética das potências ocidentais. Em todas as
épocas, esta chamada "ética internacional" foi definida
e aplicada pelas grandes potências de cada momento,
começando pela Igreja Católica, e sempre distinguiu e
opôs o assassinato dos "amigos", ou "homens de bem", ao
"malecídio" dos inimigos, ou "homens do mal", por meio
de matrizes binárias e muito simples. E foi sempre em
nome destas matrizes éticas que as grandes potências de
cada época arbitraram e executaram todo tipo de
"malecídios", com ampla liberdade e total convencimento
moral.
Durante a
Guerra Fria, por exemplo, em nome da "contenção
comunista", os Estados Unidos utilizaram-se do
"incidente do Golfo de Tonkin" para declarar guerra ao
Vietnã do Norte, em 1964. E depois de 40 anos, a Agência
de Segurança Nacional americana reconheceu - em 2005 -
que o incidente com as "torpedeiras norte-vietnamitas
nunca foi realmente confirmado"1. Da mesma
forma que os EUA e a Bélgica participaram da conspiração
que levou ao assassinato do líder nacionalista africano,
Patrice Lumumba, ocorrida em 1961, mas só reconheceram
sua co-responsabilidade, mais de 40 anos depois2.
Da mesmo
forma em que agora, no ano de 2014, uma comissão de alto
nível, formada por juristas e diplomatas de renome
internacional, convocados pelas Nações Unidas,
reconheceu que a morte do Secretário Geral da ONU, Dag
Hammarskjöld, em 1961, num acidente aéreo sobre a
Rodésia do Norte, pode ter sido causada por um atentado.
Como foi também o caso de outro líder africano, Samora
Machel, morto em 1986, num outro acidente aéreo que
teria sido organizado pelo serviço secreto soviético3.
Esta lista
de "malecídios" poderia seguir e seria quase infinita.
Mas neste caso qual seria a grande novidade deste novo
"incidente da Ucrânia"? Antes de mais nada, a Guerra
Fria parece que deixou o mundo ocidental sem uma baliza
ética binária e simples, de utilização automática, e a
nova tábua dos "direitos humanos" tem sido aplicada de
forma absolutamente arbitrária e seletiva pelos europeus
e americanos, sobretudo na sua lambança do Oriente
Médio.
E o que é
mais importante e novo, é que essa arbitrariedade tem
ficado mais visível - ao contrário dos tempos de Tonkin
- graças à instantaneidade da informação e ao vazamento
cada vez mais frequente dos "segredos de Estado" das
grandes potências, que revelam a existência de infinitos
pesos e medidas na aplicação das regras criadas pelos
próprios europeus e seus descendentes. Por último, como
consequência destas incoerências e arbitrariedades
explícitas das grandes potências, se pode dizer que está
em pleno curso um processo de "terciarização" do
arbítrio e da execução de "malecídios" banalizados como
instrumento de luta política local dentro dos países
considerados relevantes para a geopolítica das grandes
potências.
José Luís
Fiori, professor titular de economia política
internacional da UFRJ, é autor do livro "O Poder
Global", da Editora Boitempo, e coordenador do grupo
de pesquisa do CNPQ/UFRJ "O Poder Global e a
Geopolítica do Capitalismo". Escreve mensalmente às
quartas-feiras.
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