quarta-feira, 24 de setembro de 2014

Jogo bruto






Por José Luís Fiori
Devemos confessar certa nostalgia pelo que ainda se pode chamar "idade de ouro da segurança", ou seja, por uma época em que mesmo os horrores eram ainda caracterizados por certa moderação e controlados por certa respeitabilidade e podiam, portanto, conservar alguma relação com a aparência geral de sanidade social". Hanna Arendt, Origens do Totalitarismo, Companhia das Letras, São Paulo, 2004, p:153
Menos de dois meses depois da queda do voo MH-17 da Malaysia Airlines, no leste da Ucrânia, o relatório preliminar da Junta Holandesa de Segurança chegou à conclusão que o Boeing 777, da Malaysia, "explodiu no ar como resultado de danos estruturais provocados por um grande numero de objetos de alta energia ("high energy objects") que penetraram no aparelho desde o exterior".
Segundo especialistas, ao contrário do que se pensou inicialmente, o avião da Malaysia Airlines teria sido atingido, portanto, por um míssil ar-ar de fragmentação que ao explodir disseminou milhares de objetos semelhantes a balas. Um tipo de armamento altamente sofisticado e de fácil identificação, que os separatistas ucranianos não têm nem nunca tiveram.
Tratados e convenções definem o "direito internacional da guerra" segundo a ética das potências ocidentais
O relatório final da junta holandesa só será publicado em meados de 2015, segundo sua porta-voz Sara Vermooij, mas seja qual for o seu veredito, parece que nenhuma das potências envolvidas no conflito está mais interessada nas verdadeiras causas e nos verdadeiros responsáveis por este homicídio coletivo de 298 pessoas estranhas à guerra. Em grande medida, porque seus efeitos políticos internacionais já foram logrados, com o afastamento entre a Alemanha e a Rússia e com o endurecimento da posição da UE, que vinha sendo defendido pelos EUA e pela Grã Bretanha.
Em 1128, São Bernardo de Clairvaux - admirado até hoje pelas igrejas católica, anglicana e luterana - cunhou a expressão "malecídio", para referir-se e para defender moralmente o homicídio dos hereges, feito em nome de Deus. São Bernardo estava pensando e justificando o extermínio dos mouros pelas Cruzadas dos séculos XI e XII, mas, de uma forma ou outra, esta mesma tese reaparece mais tarde na teoria da "guerra justa", defendida pelos teólogos espanhóis dos séculos XVI e XVII, que também consideravam ético o extermínio dos indígenas americanos que resistissem à fé e à civilização cristã.
Esta teoria mudou sua fundamentação - depois de Hugo Grotius (1583-1645) e de Samuel Pufendorf (1632-1694) - mas manteve o mesmo princípio e a mesma distinção que segue presente nos tratados e convenções dos séculos XIX e XX, que definem o "direito internacional da guerra" segundo a visão ética das potências ocidentais. Em todas as épocas, esta chamada "ética internacional" foi definida e aplicada pelas grandes potências de cada momento, começando pela Igreja Católica, e sempre distinguiu e opôs o assassinato dos "amigos", ou "homens de bem", ao "malecídio" dos inimigos, ou "homens do mal", por meio de matrizes binárias e muito simples. E foi sempre em nome destas matrizes éticas que as grandes potências de cada época arbitraram e executaram todo tipo de "malecídios", com ampla liberdade e total convencimento moral.
Durante a Guerra Fria, por exemplo, em nome da "contenção comunista", os Estados Unidos utilizaram-se do "incidente do Golfo de Tonkin" para declarar guerra ao Vietnã do Norte, em 1964. E depois de 40 anos, a Agência de Segurança Nacional americana reconheceu - em 2005 - que o incidente com as "torpedeiras norte-vietnamitas nunca foi realmente confirmado"1. Da mesma forma que os EUA e a Bélgica participaram da conspiração que levou ao assassinato do líder nacionalista africano, Patrice Lumumba, ocorrida em 1961, mas só reconheceram sua co-responsabilidade, mais de 40 anos depois2.
Da mesmo forma em que agora, no ano de 2014, uma comissão de alto nível, formada por juristas e diplomatas de renome internacional, convocados pelas Nações Unidas, reconheceu que a morte do Secretário Geral da ONU, Dag Hammarskjöld, em 1961, num acidente aéreo sobre a Rodésia do Norte, pode ter sido causada por um atentado. Como foi também o caso de outro líder africano, Samora Machel, morto em 1986, num outro acidente aéreo que teria sido organizado pelo serviço secreto soviético3.
Esta lista de "malecídios" poderia seguir e seria quase infinita. Mas neste caso qual seria a grande novidade deste novo "incidente da Ucrânia"? Antes de mais nada, a Guerra Fria parece que deixou o mundo ocidental sem uma baliza ética binária e simples, de utilização automática, e a nova tábua dos "direitos humanos" tem sido aplicada de forma absolutamente arbitrária e seletiva pelos europeus e americanos, sobretudo na sua lambança do Oriente Médio.
E o que é mais importante e novo, é que essa arbitrariedade tem ficado mais visível - ao contrário dos tempos de Tonkin - graças à instantaneidade da informação e ao vazamento cada vez mais frequente dos "segredos de Estado" das grandes potências, que revelam a existência de infinitos pesos e medidas na aplicação das regras criadas pelos próprios europeus e seus descendentes. Por último, como consequência destas incoerências e arbitrariedades explícitas das grandes potências, se pode dizer que está em pleno curso um processo de "terciarização" do arbítrio e da execução de "malecídios" banalizados como instrumento de luta política local dentro dos países considerados relevantes para a geopolítica das grandes potências.
José Luís Fiori, professor titular de economia política internacional da UFRJ, é autor do livro "O Poder Global", da Editora Boitempo, e coordenador do grupo de pesquisa do CNPQ/UFRJ "O Poder Global e a Geopolítica do Capitalismo". Escreve mensalmente às quartas-feiras.

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