Clemente
Ganz
Lúcio[1]
“Passa
mal a terra, de
lestos males presa
Onde se
acumula a
riqueza, e declinam os homens.”
Oliver
Goldsmith, The
Deserted Village (1770)
Citado
por Tony Judt, “Um
Tratado sobre os Nossos Actuais Descontentamentos”
Para além do medo e insegurança que
pairam sobre a
vida moderna, cresce a sensação de que há algo que segue mal. O
que soma,
diminui e o que é mais, nos faz menor! Cresce a desumanização no
processo
civilizatório. O trabalho urgente de reflexão complexa perde
espaço para instantaneidades
vaporizadas de um clic.
No pós-guerra (meados dos anos 40)
acelerou-se o
processo, que no ocidente ocorria desde meados do século XIX, de
redução das
desigualdades.
“Graça
ao imposto
progressivo, subsídios estatais para os pobres, fornecimento
de serviços
sociais e garantias contra infortúnios mais severos, as
democracias modernas
libertavam-se dos extremos da riqueza e pobreza.”[2]
As sociedades foram incorporando à sua
cultura econômica,
social e política a intolerância à desigualdade, para a qual
desenvolveu, como
antídoto à insuficiência privada, os amplos sistemas de
seguridade, proteção e
promoção social. Acreditou-se que era possível,
progressivamente, avançar nesse
caminho de redução das desigualdades, sem recuos, pois a
democracia sustentaria
o percurso e os resultados alcançados. Ledo engano!
Desde os anos 70 o movimento de
redução da
desigualdade se inverteu em diferentes países. Como registra
Judt[3],
a título de exemplo, em 1968 o diretor-geral da GM recebia como
remuneração e
benefícios o equivalente a 66 vezes o salário médio do peão da
fábrica. Em 2005
estima-se que essa equivalência saltou para 900 vezes! Que
produtividade!
Estudo recente divulgado pela Oxfam[4]
revela que atualmente a desigualdade segue crescendo. A
comparação da evolução
da riqueza nos países que compõem o G20[5]
indica que no último ano a riqueza desses países aumentou em 17
bilhões de
dólares, 1/3 apropriada por 1% dos mais ricos, o equivalente a
6,2 bilhões de
dólares. Outro exemplo: nos EUA, no início da década de 80, 1%
mais ricos se
apropriavam de 8% da renda, em 2012 essa participação subiu para
19%. A Oxfam
estimou que a evasão fiscal nos países em desenvolvimento
promovida pelas
grandes empresas é da ordem de 100 bilhões de dólares por ano,
recursos
suficientes para escolarizar todas as crianças do mundo quatro
vezes!
A desigualdade é um fenômeno complexo
de disparidades
de renda e riqueza, de poder, de oportunidade, de condições,
observada entre
homens e mulheres (gênero), entre negros e não-negros (ou com
outro recorte
racial ou populacional), entre países; entre continentes, entre
regiões dentro
dos países, entre os que vivem no centro e na periferia das
cidades, entre o rural
e o urbano, contra os deficientes, contra os povos indígenas. A
lista segue e é
longa. Como insiste Judty: “A
desigualdade é corrosiva. Ela apodrece as sociedades a partir
de dentro... O
legado da criação da riqueza não regulada é realmente amargo[6].
Será verdade que processos de redução
da desigualdade
levam as sociedades a quererem reduzi-la ainda mais? O processo
de concentração
da riqueza torna-a invisível ou uma “condição divina e natural
da vida”. A
subjetividade coletiva do mal estar tem causa!
O desafio é descortinar as ilusões do
crescimento, da
prosperidade e da geração de bem estar material. Primeiro,
porque o bem-estar
material não é homogêneo (há enormes desigualdades de condições,
capacidades e
oportunidades); segundo porque bem-estar material não conduz,
necessariamente,
à qualidade de vida; terceiro, porque bem-estar material e
qualidade de vida
estão predominantemente em desacordo com o equilíbrio ambiental;
quarto, porque
o bem viver é um paradigma que requer outro equilíbrio entre
bem-estar material,
qualidade de vida e sustentabilidade ambiental.
Recolocar a centralidade da igualdade
de
oportunidades, condições e capacidades para todos, ampliar os
limites da
regulação econômica dos mercados, qualificar o debate público
sobre as escolhas
coletivas e construir unidade em torno dessas questões são
algumas das nossas tarefas!
[1] Sociólogo, diretor técnico
do DIEESE, membro do CDES -
Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social.
[2] JUDT, Tony, “Um
Tratado sobre os Nossos Actuais Descontentamentos”, Lisboa,
Portugal, Edições 70, 2010, p (26).
[4]
“Revertir la
tendência: Por qué el
G20 debe impulsar una reforma fiscal internacional más justa
para luchar la creciente
desigualdade”, in www.oxfam.org.
[5] Os países do G20
são: África do
Sul, Alemanha, Arábia Saudita, Argentina, Austrália, Brasil,
Canadá, China,
Coreia, Estados Unidos da América, França, Índia, Indonésia,
Itália, Japão,
México, Reino Unido, Rússia e Turquia. Esses 20 países
concentram mais da
metade da população mundial total que está distribuída em
mais de 190 países.
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