quarta-feira, 26 de novembro de 2014

A cômoda desigualdade naturalizada





Clemente Ganz Lúcio[1]


“Passa mal a terra, de lestos males presa
Onde se acumula a riqueza, e declinam os homens.”
Oliver Goldsmith, The Deserted Village (1770)
Citado por Tony Judt, “Um Tratado sobre os Nossos Actuais Descontentamentos”



Para além do medo e insegurança que pairam sobre a vida moderna, cresce a sensação de que há algo que segue mal. O que soma, diminui e o que é mais, nos faz menor! Cresce a desumanização no processo civilizatório. O trabalho urgente de reflexão complexa perde espaço para instantaneidades vaporizadas de um clic.

No pós-guerra (meados dos anos 40) acelerou-se o processo, que no ocidente ocorria desde meados do século XIX, de redução das desigualdades.

Graça ao imposto progressivo, subsídios estatais para os pobres, fornecimento de serviços sociais e garantias contra infortúnios mais severos, as democracias modernas libertavam-se dos extremos da riqueza e pobreza.”[2]

As sociedades foram incorporando à sua cultura econômica, social e política a intolerância à desigualdade, para a qual desenvolveu, como antídoto à insuficiência privada, os amplos sistemas de seguridade, proteção e promoção social. Acreditou-se que era possível, progressivamente, avançar nesse caminho de redução das desigualdades, sem recuos, pois a democracia sustentaria o percurso e os resultados alcançados. Ledo engano!

Desde os anos 70 o movimento de redução da desigualdade se inverteu em diferentes países. Como registra Judt[3], a título de exemplo, em 1968 o diretor-geral da GM recebia como remuneração e benefícios o equivalente a 66 vezes o salário médio do peão da fábrica. Em 2005 estima-se que essa equivalência saltou para 900 vezes! Que produtividade!

Estudo recente divulgado pela Oxfam[4] revela que atualmente a desigualdade segue crescendo. A comparação da evolução da riqueza nos países que compõem o G20[5] indica que no último ano a riqueza desses países aumentou em 17 bilhões de dólares, 1/3 apropriada por 1% dos mais ricos, o equivalente a 6,2 bilhões de dólares. Outro exemplo: nos EUA, no início da década de 80, 1% mais ricos se apropriavam de 8% da renda, em 2012 essa participação subiu para 19%. A Oxfam estimou que a evasão fiscal nos países em desenvolvimento promovida pelas grandes empresas é da ordem de 100 bilhões de dólares por ano, recursos suficientes para escolarizar todas as crianças do mundo quatro vezes!

A desigualdade é um fenômeno complexo de disparidades de renda e riqueza, de poder, de oportunidade, de condições, observada entre homens e mulheres (gênero), entre negros e não-negros (ou com outro recorte racial ou populacional), entre países; entre continentes, entre regiões dentro dos países, entre os que vivem no centro e na periferia das cidades, entre o rural e o urbano, contra os deficientes, contra os povos indígenas. A lista segue e é longa. Como insiste Judty: “A desigualdade é corrosiva. Ela apodrece as sociedades a partir de dentro... O legado da criação da riqueza não regulada é realmente amargo[6].

Será verdade que processos de redução da desigualdade levam as sociedades a quererem reduzi-la ainda mais? O processo de concentração da riqueza torna-a invisível ou uma “condição divina e natural da vida”. A subjetividade coletiva do mal estar tem causa!

O desafio é descortinar as ilusões do crescimento, da prosperidade e da geração de bem estar material. Primeiro, porque o bem-estar material não é homogêneo (há enormes desigualdades de condições, capacidades e oportunidades); segundo porque bem-estar material não conduz, necessariamente, à qualidade de vida; terceiro, porque bem-estar material e qualidade de vida estão predominantemente em desacordo com o equilíbrio ambiental; quarto, porque o bem viver é um paradigma que requer outro equilíbrio entre bem-estar material, qualidade de vida e sustentabilidade ambiental.

Recolocar a centralidade da igualdade de oportunidades, condições e capacidades para todos, ampliar os limites da regulação econômica dos mercados, qualificar o debate público sobre as escolhas coletivas e construir unidade em torno dessas questões são algumas das nossas tarefas!




[1] Sociólogo, diretor técnico do DIEESE, membro do CDES - Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social.
[2]  JUDT, Tony, “Um Tratado sobre os Nossos Actuais Descontentamentos”, Lisboa, Portugal, Edições 70, 2010, p (26).
[3] Idem, (27).
[4] “Revertir la tendência: Por qué el G20 debe impulsar una reforma fiscal internacional más justa para luchar la creciente desigualdade”, in www.oxfam.org.
[5] Os países do G20 são: África do Sul, Alemanha, Arábia Saudita, Argentina, Austrália, Brasil, Canadá, China, Coreia, Estados Unidos da América, França, Índia, Indonésia, Itália, Japão, México, Reino Unido, Rússia e Turquia. Esses 20 países concentram mais da metade da população mundial total que está distribuída em mais de 190 países.
[6] Judt, Ibdem, p (34).

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