terça-feira, 16 de dezembro de 2014

Manifesto sobre a esquerda-caviar



Não, eu não vim aqui defender as ovas de peixes. Isso seria tão ridículo como insultuoso. Mas sim, eu vim aqui reivindicar a abundância, a distribuição de renda e o direito ao prazer.
O termo “esquerda caviar”, ao tentar associar a esquerda ao voto de pobreza, não é apenas intelectualmente falho, como também é moralmente desonesto. A expressão procura vender a ideia de que a esquerda deveria ser paupérrima, uma vez que defende um regime igualmente paupérrimo. Dupla mentira.
Para quem orquestra essa ideia, o objetivo é requentar velhas mitologias que procuram espalhar o medo, conter a identificação com o socialismo e deslegitimar seus integrantes por meio da acusação de um comportamento contraditório. Quando alguém te chama de esquerda-caviar, esta pessoa está amedrontada, mas também revoltada pelo sentimento de uma suposta traição de classe.
Para começar, eu gostaria de retomar uma frase que citei no passado, a qual causou alvoroço entre alguns setores da direta: "a pobreza é uma invenção do capitalismo". Acrescentei, ironicamente, que, se essa afirmação é válida, faz todo o sentido ter uma direita-coxinha e uma esquerda-caviar. Não é de admirar que, após esse tipo de declaração, além do clichê de me mandar para Cuba, tive que enfrentar uma verdadeira caça às bruxas, com direito a telefonemas em meu local de trabalho, caixa de e-mail lotada de insultos, vida pessoal vasculhada, fotos expostas, ameaça de estupro e o sincero desejo de que eu morresse – pobre e podre – na Coreia do Norte. Foi aí que entendi que não se toca em pontos sensíveis impunemente...
Ao associar a pobreza ao capitalismo, eu não apenas questionava o monopólio do deleite  que a direita usa como trunfo simbólico para vender o sonho da distinção (a cenourinha inalcançável que se coloca lá na frente na corrida de classes) – , como também lembrava que esse sonho, inescapavelmente, apenas se concretizaria entre muitos poucos. Afinal, a pobreza – para qual toda a esquerda deveria sacramentar seus votos –, é uma condição necessária da desigualdade estrutural do capitalismo global: a miséria de muitos sustenta a riqueza de poucos.
Teria sido interessante, àquela altura, ter repassado a lição que aprendemos na oitava série: a de que o bem-estar dos países ricos foi construído sobre espoliação violenta – física e psicológica – de continentes inteiros, de povos nativos que desconheciam a miséria e que se mantinham por meio de regimes autossustentáveis e autorregulados. Mesmo com o fim do colonialismo, as formas de dependência econômica e cultural continuaram agindo para manter um aparato de intervenção sobre a pobreza que, em última instância, visa o seu controle disciplinar e a sua manutenção. Infelizmente, não há nenhuma previsão de que o mundo esteja mudando positivamente neste sentido. Ao que tudo indica, estamos adentrando em um dos piores cenários já produzidos pelo capitalismo global.
O resultado desse sistema que se regenera e se renova é o aumento da produção da riqueza e a pobreza concomitantemente. O mundo nunca foi “tão rico” e desigual. Segundo o último relatório da Credit Suisse, nos últimos dez anos, a riqueza global dobrou (USD 263 trilhões). O problema é que a desigualdade também é recorde: 1% da população mundial detém praticamente 50% dessa riqueza. Essa fotografia vai ao encontro do badalado relatório da Oxfam de 2013, que constatou que 85 famílias detêm a mesma renda que 3,5 bilhões de pessoas, isto é, a metade da população mundial.
Temos, hoje, evidências poderosas de que a desigualdade é extrema e crescente. O modelo vigente é duplamente falho, seja porque é insustentável e destrói os recursos naturais do planeta, seja porque é incapaz de lidar com a miséria que ele mesmo produziu. Mas há quem prefira viver na fantasia dessa riqueza virtual. Ao contrário do argumento liberal – de que a riqueza produzida gera mais riqueza em forma de crescimento econômico, trabalho e oportunidades – o capital não tem retornado ao mercado, mas tem se concentrado nos cofres privados de poucas famílias, o que nos leva a uma forma de capitalismo patrimonial, como mostra o economista Thomas Piketty.
Em vez de promover uma apologia à pobreza, a esquerda reivindica a distribuição de riqueza e o direito a abundância, que é gerada tanto pelo trabalho coletivo quanto pela própria natureza.
O imaginário da esquerda “franciscana” é totalmente equivocado porque vai de encontro ao próprio princípio da luta de classes: de que é preciso encontrar um equilíbrio entre os poucos que têm muito e os muitos que têm pouco. O direito ao prazer deve ser uma bandeira central no socialismo também porque isso vai contra a cultura cristã ocidental que valoriza o sofrimento, a punição e a culpa, resultando na subordinação do mundo material ao imaterial. A luta é pela possibilidade de corpos mais livres, por experiências sensoriais diversas e por menos biopoder. O problema, portanto, não é – nem deve ser  o desfrute da vida, dos sabores, dos cheiros, das texturas, dos lugares. O problema é justamente a privatização dos prazeres.
Para alguns, o direito ao deleite tem sido a bandeira do lulismo, que se caracteriza pela a inclusão dos setores populares na sociedade de consumo. Para mim, trata-se de coisas diferentes. Esse modelo de consumo desenfreado que se baseia na acumulação de bens é insustentável. Eu me alio aos movimentos de compartilhamento e aos teóricos do decrescimento econômico, pois acredito que seja possível perseguir estilos de vida mais humanos e recíprocos em economias de dádivas, que possam culminar em plenitude física e material.
Dito tudo isso, por fim, parece-me que diante de um mundo em que 85 famílias concentram a metade de renda global, preocupar-se com a marca do computador de Leonardo Sakamoto ou com o restaurante que Gregório Duvivier frequenta é um ato não apenas de mesquinharia, mas também de covardia intelectual. Afinal, é preciso muita coragem para imaginar e lutar por um mundo fora de nossa casinha e zona de conforto. Grandeza e ousadia epistêmicas são qualidades necessárias para enfrentar o monstro gigante que detém uma centena de trilhões de dólares.

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