Não, eu não vim aqui defender as ovas de peixes. Isso
seria tão ridículo como insultuoso. Mas
sim, eu vim aqui reivindicar a abundância, a distribuição de renda e o direito ao
prazer.
O termo “esquerda caviar”, ao
tentar associar a esquerda ao voto de pobreza, não é apenas
intelectualmente falho, como também é moralmente desonesto. A expressão procura
vender a ideia de que a esquerda deveria ser paupérrima, uma vez que
defende um regime igualmente paupérrimo. Dupla mentira.
Para quem orquestra essa ideia, o
objetivo é requentar velhas
mitologias que procuram espalhar o medo, conter a
identificação com o socialismo e deslegitimar seus
integrantes por meio da acusação de um comportamento contraditório. Quando
alguém te chama de esquerda-caviar, esta pessoa está
amedrontada, mas também revoltada pelo sentimento de uma suposta
traição de classe.
Para começar, eu gostaria de
retomar uma frase que citei no passado, a qual causou alvoroço entre alguns
setores da direta: "a pobreza é uma invenção
do capitalismo". Acrescentei, ironicamente, que, se essa afirmação é válida, faz todo o
sentido ter uma direita-coxinha e uma esquerda-caviar. Não é de admirar
que, após esse tipo de declaração, além do clichê de me mandar para
Cuba, tive que enfrentar uma verdadeira caça às bruxas, com
direito a telefonemas em meu local de trabalho, caixa de e-mail lotada de insultos,
vida pessoal vasculhada, fotos expostas, ameaça de estupro e
o sincero desejo de que eu morresse – pobre e podre – na
Coreia do Norte. Foi aí que entendi que não se toca em pontos sensíveis
impunemente...
Ao associar a pobreza ao
capitalismo, eu não apenas questionava o monopólio do deleite – que a direita
usa como trunfo simbólico para vender o sonho da distinção (a
cenourinha inalcançável que se coloca lá
na frente na corrida de classes) – , como
também lembrava que esse sonho, inescapavelmente, apenas se
concretizaria entre muitos poucos. Afinal, a pobreza – para qual toda
a esquerda deveria sacramentar seus votos –, é uma condição necessária
da desigualdade estrutural do capitalismo global: a miséria de
muitos sustenta a riqueza de poucos.
Teria sido interessante, àquela
altura, ter repassado a lição que aprendemos na oitava série: a de
que o bem-estar dos países ricos foi construído sobre espoliação
violenta – física e psicológica – de continentes inteiros, de povos
nativos que desconheciam a miséria e que se mantinham por meio de
regimes autossustentáveis e autorregulados. Mesmo com o fim do
colonialismo, as formas de dependência econômica e cultural
continuaram agindo para manter um aparato de intervenção sobre a
pobreza que, em última instância, visa o seu controle disciplinar e a sua
manutenção. Infelizmente, não há nenhuma previsão de que o mundo
esteja mudando positivamente neste sentido. Ao que tudo indica,
estamos adentrando em um dos piores cenários já produzidos pelo
capitalismo global.
O resultado desse sistema que se
regenera e se renova é o aumento da produção da riqueza e a pobreza
concomitantemente. O mundo nunca foi “tão rico” e desigual. Segundo o
último relatório da Credit Suisse, nos últimos dez anos, a riqueza
global dobrou (USD 263 trilhões). O problema é que a desigualdade
também é recorde: 1% da população mundial detém praticamente 50%
dessa riqueza. Essa fotografia vai ao encontro do badalado relatório
da Oxfam de 2013, que constatou que 85 famílias detêm a mesma renda que
3,5 bilhões de pessoas, isto é, a metade da população mundial.
Temos, hoje, evidências poderosas
de que a desigualdade é extrema e crescente. O modelo vigente é
duplamente falho, seja porque é insustentável e destrói os recursos
naturais do planeta, seja porque é incapaz de lidar com a miséria que
ele mesmo produziu. Mas há quem prefira viver na fantasia dessa
riqueza virtual. Ao contrário do argumento liberal – de que a
riqueza produzida gera mais riqueza em forma de crescimento econômico,
trabalho e oportunidades – o capital não tem retornado ao mercado, mas
tem se concentrado nos cofres privados de poucas famílias, o que
nos leva a uma forma de capitalismo patrimonial, como mostra o
economista Thomas Piketty.
Em vez de promover uma apologia à pobreza, a esquerda
reivindica a distribuição de
riqueza e o direito a abundância, que é gerada tanto pelo trabalho coletivo quanto pela
própria natureza.
O imaginário da esquerda “franciscana” é totalmente
equivocado porque vai de encontro
ao próprio princípio da luta de classes: de que é preciso encontrar um equilíbrio
entre os poucos que têm muito e os muitos que têm pouco. O direito ao
prazer deve ser uma bandeira central no socialismo também porque
isso vai contra a cultura cristã ocidental que valoriza o
sofrimento, a punição e a culpa, resultando na subordinação do mundo material
ao imaterial. A luta é pela possibilidade de corpos mais
livres, por experiências sensoriais diversas e por menos biopoder. O
problema, portanto, não é – nem deve ser – o
desfrute da vida, dos sabores, dos cheiros, das texturas, dos lugares. O problema é justamente a
privatização dos prazeres.
Para alguns, o direito ao deleite tem sido a bandeira do
lulismo, que se caracteriza pela a
inclusão dos setores populares na sociedade de consumo.
Para mim, trata-se de coisas diferentes. Esse modelo de consumo desenfreado que se baseia
na acumulação de bens é insustentável. Eu me alio aos
movimentos de compartilhamento e aos teóricos do decrescimento
econômico, pois acredito que seja possível perseguir estilos de vida mais
humanos e recíprocos em economias de dádivas, que possam culminar em
plenitude física e material.
Dito tudo isso, por fim, parece-me que diante de um mundo
em que 85 famílias concentram a metade
de renda global, preocupar-se com a marca do
computador de Leonardo Sakamoto ou com o restaurante que
Gregório Duvivier frequenta é
um ato não apenas de mesquinharia, mas também de covardia
intelectual. Afinal, é preciso muita coragem para imaginar e lutar
por um mundo fora de nossa casinha e zona de conforto.
Grandeza e ousadia epistêmicas
são qualidades necessárias para enfrentar o monstro
gigante que detém uma centena de trilhões de dólares.
Nenhum comentário:
Postar um comentário