terça-feira, 13 de janeiro de 2015

Charlie Hebdo: Terror de Paris pode ter origem na Argélia de 1954

Robert Fisk no Carta Maior

postado em: 12/01/2015
Muito antes da polícia francesa revelar a identidade dos suspeitos do assassinato – inclusive, antes de eu ter ouvido os nomes de Cherif e Said Kouachi –, murmurei a palavra “Argélia” a mim mesmo. Tão logo escutei os nomes e vi as faces, disse outra vez a palavra “Argélia”. E então a polícia francesa disse que os homens eram de “origem argelina”.

Pois a Argélia continua sendo a mais dolorosa ferida no corpo político da República – exceto, talvez, por sua contínua autoanálise da ocupação nazista – e proporciona um contexto temeroso para cada ato de violência árabe contra a França. A guerra argelina pela independência, que durou seis anos, e na qual talvez 1 milhão de muçulmanos árabes e muitas milhares de mulheres e homens franceses morreram, continua sendo uma agonia sem fim e sem resolução para ambos os povos. Há pouco mais de meio século, quase teve início uma guerra civil francesa.

Talvez todos os informes jornalísticos e televisivos devessem conter um “pedaço de história”, uma pequena recordação de que nada – absolutamente nada – ocorre sem um passado. Massacres, derramamento de sangue, fúria, tristeza, caçadas policiais (“aumentando” ou “diminuindo”, como subeditores gostam) ganham manchetes. Sempre é o “quem” e o “como” – mas raramente o “porquê”. Peguem o crime de lesa-humanidade em Paris esta semana – as palavras “atrocidade” e “barbárie” de alguma forma diminuem a selvageria deste ano – e suas consequências imediatas.

Nós conhecemos as vítimas: jornalistas, caricaturistas e policiais. E como morreram. Homens armados e encapuzados, fuzis automáticos Kalashnikov, indiferença cruel, quase profissional. E a resposta ao “porquê” foi proveitosamente dita pelos assassinos. Queriam vingar “o Profeta” pelas irreverentes e (para os muçulmanos) e altamente ofensivas caricaturas. E, é claro, devemos repetir o mantra: nada – nada mesmo – poderia justificar esses atos cruéis de assassinato em massa. E não, os assassinos não podem recorrer à história para justificar seus crimes.

Mas há um contexto importante que, de alguma forma, esteve fora da história desta semana, o “pedaço de história” que muitos franceses e argelinos preferem ignorar: a batalha (1954-1962) de um povo inteiro por liberdade contra um regime imperial brutal, uma guerra prolongada que continua sendo a briga fundacional de árabes e franceses até os dias de hoje.

A crise desesperada e permanente nas relações franco-argelinas, como a recusa de um casal divorciado em aceitar uma narrativa acordada de sua tristeza, envenena a convivência desses dois povos na França. No entanto, Cherif e Said Kouachi justificaram suas ações, eles que nasceram em um tempo no qual a Argélia havia sido invisivelmente mutilada por 132 anos de ocupação. Talvez 5 milhões dos 6,5 milhões de muçulmanos na França sejam argelinos. A maioria é pobre, e muitos se consideram cidadãos de segunda classe na terra da igualdade.

Como em todas as tragédias, a Argélia ilude a explicação de um só parágrafo dos despachos das agências de notícias, e inclusive as histórias mais curtas escritas por ambos os lados após os franceses terem abandonado a Argélia, em 1962.

Diferente de outras importantes colônias francesas, a Argélia foi considerada como uma parte integrante da França metropolitana, enviando representantes ao parlamento francês em Paris, e até mesmo fornecendo a Charles de Gaulle e aos aliados uma “capital” francesa por meio da qual invadir o Norte da África e a Sicília, então ocupados pelos nazistas.

Mais de 100 anos antes, a França havia ela própria invadido a Argélia, subjugando sua população muçulmana nativa, construindo pequenas cidades francesas e castelos no interior, e até mesmo (em um século XIX de Renascimento católico, que deveria “recristianizar” o Norte da África) transformando mesquitas em igrejas.

A resposta argelina ao que hoje parece um monstruoso anacronismo histórico variou no curso das décadas entre a lassidão, a colaboração e a insurreição. Uma manifestação pela independência na população nacionalista e de maioria muçulmana de Setif, o Dia da Vitória – quando os aliados haviam liberado as nações europeias –, desembocou na morte de 103 civis europeus.

A vingança do governo francês foi impiedosa: até 700 civis muçulmanos – talvez muito mais – foram mortos por enfurecidos “colonos” franceses com um bombardeio das cidades próximas com aviões e também por um cruzeiro naval da França. O mundo prestou pouca atenção.

Mas quando uma insurreição em grande escala se iniciou em 1954 – a princípio, é claro, com poucas perdas de vidas francesas e logo ataques ao exército francês –, a sombria guerra de libertação argelina foi quase predeterminada.

Vencido nessa clássica batalha anticolonial do pós-guerra em Dien Bien Phu, o exército francês, logo após seu desastre em 1940, parecia vulnerável aos mais românticos nacionalistas argelinos, que notaram a nova humilhação da França em Suez, em 1956.

O que o historiador Alistair Horne descreveu com justeza em sua magnífica história da luta argelina como “uma selvagem guerra de paz” custou a vida de centenas de milhares. Bombas, minas, massacres por forças governamentais e guerrilheiros da Frente de Libertação Nacional (FLN) no bled – a campina no sul do Mediterrâneo – conduziram à brutal supressão de setores muçulmanos em Argel e ao assassinato, tortura e execução de líderes guerrilheiros por paraquedistas franceses, soldados, pessoal da Legião Estrangeira – entre eles, ex-nazistas alemães – e policiais paramilitares. Inclusive, franceses brancos simpatizantes dos argelinos foram “desaparecidos”. Albert Camus se pronunciou contra a tortura e funcionários civis franceses ficaram com asco da brutalidade empregada para manter a Argélia como território francês.

De Gaulle parecia apoiar a população branca, e disse isso em Argel: “Je vous ai compris”, ele lhes disse, e logo começou a negociar com representantes da FLN na França. Os argelinos compunham a maioria dos habitantes muçulmanos franceses e, em outubro de 1961, até 30 mil deles fizeram uma marcha proibida pela independência em Paris – de fato, a apenas 1,5 km do cenário da recente matança –, atacada por unidades da polícia francesa que assassinaram, como agora se sabe, até 600 manifestantes.

Argelinos foram mortos a pancadas em quartéis da polícia ou arremessados ao Sena. O chefe da polícia que supervisionou as operações de segurança e que, ao que parece, dirigiu o massacre em 1961 não foi outro senão Maurice Papon, que, quase 40 anos depois, foi condenado por crimes de lesa-humanidade cometidos durante o regime de Petain, em Vichy, durante a ocupação nazista.

O conflito argelino terminou com um banho de sangue. Colonos franceses pied-noirs se negaram a aceitar a retirada, apoiaram os ataques da Organização do Exército Secreto (OAS, em sua sigla em francês) a muçulmanos argelinos e encorajaram unidades militares francesas a se amotinar. Houve um momento em que De Gaulle temeu que paraquedistas franceses tentassem tomar Paris.

Quando chegou o fim, em que pesem as promessas da FLN de proteger cidadãos franceses que haviam escolhido permanecer na Argélia, houve assassinatos em massa em Orã. Até um milhão e meio de homens, mulheres e crianças franceses – diante da opção de “maleta ou caixão” – fugiram para a França, junto com milhares de leais combatentes harki argelinos que lutaram com o exército, mas que em sua maioria foram depois abandonados a sua própria sorte por De Gaulle. Alguns foram obrigados a engolir suas medalhas francesas e foram jogados em valas comuns.

Mas os antigos colonos franceses, que ainda consideravam a Argélia parte do território da França – junto com uma exausta ditadura da FLN, que tomou conta da nação independente –, instituíram uma fria paz na qual a raiva residual dos argelinos, na França e igualmente na sua pátria, se assentou em um ressentimento de muitos anos. Na Argélia, a nova elite nacionalista embarcou em uma inviável industrialização de estilo soviético em seu país. Ex-cidadãos franceses demandaram copiosas reparações; de fato, durante décadas, os franceses detiveram todos os mapas do deságue das cidades argelinas, de modo que os novos donos do país tinham que escavar quilômetros quadrados de ruas a cada vez que arrebentava uma tubulação.

E quando começou a guerra civil argelina da década de 1980 – logo que o exército argelino cancelou um segundo turno de eleições na qual era certa a vitória dos islâmicos –, o corrupto poder da FLN e os rebeldes muçulmanos se envolveram em um conflito tão espantoso como a guerra com a França das décadas de 1950 e 1960. As torturas, os desaparecimentos e as matanças haviam voltado. A França apoiou discretamente uma ditadura cujos líderes militares acumularam milhões de dólares em bancos suíços.


Uma nova causa


Muçulmanos argelinos que voltavam da guerra contra os soviéticos no Afeganistão se uniram aos islâmicos nas montanhas e mataram alguns dos poucos cidadãos franceses que restavam no país. E muitos partiram depois para combater nas guerras islâmicas, no Iraque e mais tarde na Síria.

Entram em cena os irmãos Kouachi, em especial Chérif, que esteve na prisão por recrutar franceses para combater norte-americanos no Iraque. E os Estados Unidos, com o apoio francês, agora respalda o regime da FLN em sua contínua batalha contra os islâmicos nos desertos e nos bosques das montanhas da Argélia, armando um exército que torturou e assassinou a milhares de homens na década de 1990.

Como disse um diplomata norte-americano pouco antes da invasão ao Iraque, em 2003, os Estados Unidos “têm muito o que aprender” com as autoridades argelinas. Pode-se ver por que alguns argelinos foram lutar pela resistência iraquiana. E encontraram uma nova casa...


Tradução de Daniella Cambauva



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