Paulo Moreira Leite, em seu site.
A partir de artigo de 2004 é possível demonstrar
que há onze anos Sérgio Moro já pretendia fazer uma operação espetacular
que iria "deslegitimar" o sistema político brasileiro
Um dos aspectos mais curiosos da Operação Lava Jato
reside em seu caráter totalmente previsível. Desde que, sob orientação
do juiz Sérgio Moro, as primeiras prisões foram efetuadas e os primeiros
depoimentos foram colhidos, já era possível adivinhar que o país iria
assistir a uma operação-monstro, pré-destinada a fazer história pela
quantidade de empresários e políticos denunciados.
Essa convicção prévia não se baseia em simples
impressões nem se explica pelo conhecimento de testemunhos e provas
reunidos nos últimos meses. Apoia-se num artigo publicado em julho de
2004, chamado “Considerações sobre a Operação Mani Puliti,” disponível
na internet. Num texto de apenas seis páginas, escrito antes que Roberto
Jefferson tivesse denunciado o mensalão que gerou a AP 470, quando a
compra da refinaria de Pasadena pela Petrobrás sequer havia sido
efetivada, Sérgio Moro deixa claro que há onze anos já estava decidido a
repetir, no Brasil, uma operação semelhante a Mãos Limpas.
Nas palavras do jornalista Elio Gáspari, o primeiro a
fazer uma ampla divulgação do documento, naquele artigo Moro “disse
tudo.” Entenda-se o “tudo”: a partir da Mãos Limpas italiana, operação
contra corrupção política realizada nos anos 1990, encerrada em ambiente
de euforia com mais de 1200 condenações, Sérgio Moro define um modelo
de trabalho para o futuro próximo e deixa claro que acha necessário
repetir uma investigação semelhante no Brasil — a questão é encontrar a
oportunidade.
Longe da postura equilibrada e distante que se espera
de um juiz, ou mesmo de um trabalho acadêmico, o artigo de Sérgio Moro é
um roteiro de agitação política. Transpira voluntarismo, pede ação e
discute estratégias para atingir seus objetivos. O texto confirma que o
conhecimento jurídico de Sergio Moro não merece reparos. O que se debate
é o uso político que pretende fazer desse conhecimento — pois se trata
de uma ideia em busca de uma chance de virar realidade, ou de um esquema
mental à espera de um recheio.
Como ponto de partida, o juiz procura estabelecer
várias semelhanças entre o Brasil e a Itália — recurso obrigatório para
quem quer justificar a aplicação, aqui, do mesmo remédio que foi
empregado por lá. Escreve:
“No Brasil, encontram-se presentes várias das
condições institucionais necessárias para a realização de uma ação
judicial semelhante. Assim como na Itália, a classe política não goza de
prestígio junto à população, sendo grande a frustração pela quantidade
de promessas não-cumpridas após a restauração democrática.”
Como sempre acontece numa situação descrita de forma
tão clara, cabe perguntar se é assim mesmo. Até porque um diagnóstico
tão definitivo sobre o sentimento da população (“grande frustração pela
quantidade de promessas não-cumpridas após a restauração democrática”)
resume uma visão frequentemente veiculada por comentaristas sempre
nostálgicos do regime militar. A “grande frustração …após a restauração
democrática” é um argumento essencial para justificar medidas
anti-democráticas, não é mesmo?
ITÁLIA À BEIRA DA DISFUNCIONALIDADE
Em julho de 2004, quando o artigo foi publicado, o governo Luiz Inácio Lula da Silva completava um ano e seis meses.
Com seus altos e baixos, o governo FHC, que se
prolongou por dois mandatos, deixou um benefício inegável — a
estabilidade da moeda. A partir de 2003, ano difícil, já com Lula, teve
início um processo que pode ser definido como reconhecimento relativo da
democracia pelos brasileiros.
Em 2004, a economia disparou e cresceu 5,7%. Em 2006,
onze milhões famílias já eram atendidas pelo programa Bolsa Família,
que logo se tornaria o maior programa de distribuição de renda do mundo.
Numa atitude incompatível com uma postura de “grande frustração,” o
eleitor reelegeu os candidatos do Partido dos Trabalhadores nas três
campanhas presidenciais que vieram a seguir, totalizando quatro vitórias
consecutivas, feito jamais ocorrido no país em periodos democráticos.
Uma série histórica de pesquisas do Ibope nesta época aponta para uma
elevação crescente da aprovação dos brasileiros à democracia. No último
levantamento, no final de 2014, a satisfação com a democracia subiu 13
pontos, chegando a 46%, contra 20% de insatisfeitos.
Ponto de partida ideológico para a Lava Jato, a
semelhança entre o que se passava com a política italiana e com a
política brasileira é um exercício de vontade e não uma situação real.
Em meio século de pós-Guerra, a Itália conviveu com
um sistema político particularmente instável, que em várias
oportunidades esteve à beira da desfuncionalidade. Entre 1946 e 1992,
quando teve início a Mãos Limpas, a Itália teve 28 governos diferentes,
que duraram um ano e sete meses cada um, em média. Em dez casos, os
governos duraram menos de um ano. Poucos duraram mais de quatro anos.
Vários sobreviveram por seis meses ou menos mas em 1954, o
democrata-cristão Amintore Fanfani bateu um recorde: seu governo durou
20 dias.
Essa permanente dança de cadeiras tinha origem numa
ambiguidade política que se prolongou por quatro décadas de Guerra Fria.
Neste período, os italianos usufruíam de uma democracia real mas
parcial: ao mesmo tempo em que admitia a mais ampla liberdade política
na vida cotidiana dos cidadãos, o país era tutelado por Washington, que
mantinha um veto ao Partido Comunista. O PCI tinha o direito de existir
como partido e disputar eleições em todos os níveis, mas deveria ser
impedido de qualquer maneira de conquistar o governo da Republica
Italiana, ainda que tenha chegado a receber até 34% dos votos. Ao longo
dos anos, construiu-se até um dispositivo militar clandestino, com ajuda
da CIA e que incluía dezenas de generais e várias organizações
clandestinas, inclusive a loja maçonica P-2, que poderia entrar em ação
caso fosse necessário.
Como é notório, a Itália abrigava já naquele período
um submundo criminoso construído pelas organizações mafiosas, com uma
estrutura e uma articulação política sem paralelo possível no Brasil.
Em sua raiz, aquilo que os italianos chamavam de
corrupção política — que eram contribuições ilegais aos partidos — tinha
origem nos volumosos recursos clandestinos, internos e externos,
destinados a fortalecer as campanhas e estruturas dos adversários do
PCI, que precisava ser impedido, de todas as maneiras, de formar seu
próprio governo.
Essa situação explica por que, em seus primeiros
anos, a Mãos Limpas tenha recebido apoio da esquerda italiana, em
particular sob influência comunista. Naquela fase, as denúncias atingiam
exclusivamente seus adversários politicos. Mais tarde, foi denunciado
que, para não perder sustentação entre aliados iniciais, se fizera vista
grossa para donativos que o partido comunista recebia em função de
negócios do pais com a antiga URSS.
A partir de citações de acadêmicos que se dedicaram
ao estudo da Operação Mãos Limpas, a leitura do texto de Sergio Moro
permite concluir que é necessário acentuar a “deslegitimação do sistema
político” brasileiro, como condição para que a operação tenha eficácia.
Avaliando as várias etapas da Operação Mãos Limpas, o
juiz sublinha: “a desligitimação, ao mesmo tempo em que tornava
possível a ação judicial, era por ela alimentada.”
O contexto desse termo-chave, “deslegitimação,” deve
ser bem entendido. Pode adquirir significados diferentes de um país para
outro.
É em primeiro lugar surpreendente que se tente
promover a “deslegitimação” de instituições democráticas no Brasil, país
que entre 1964 e 1985 enfrentou 20 anos de regime militar.
ECONOMIA PIOR QUE A GREGA
É curioso que, em vez de buscar fortalecer
instituições que se considera fragilizadas procure-se seu
enfraquecimento. O leitor tem todo direito de pergunta aonde se quer
chegar por esse caminho, concorda?
Escrevendo sem rodeios num país onde a Constituição
fala da separação entre poderes, que devem ser autônomos mas harmônicos,
Sergio Moro argumenta que um dos fatores principais para o sucesso das
ações judiciais na Italia residiu na “maior legitimação da magistratura
em relação aos políticos profissionais.”
Neste ambiente, a “deslegitimação” contribui para um
esforço maior: apresentar os políticos de forma criminalizada, como
profissionais aparentados a atividades criminosas, sem compromissos de
nenhuma espécie fora o próprio bem-estar. Fica aceitável que sejam
submetidos a um tratamento sem qualquer relação com os direitos
individuais, na avaliação de Anthony Scalia, da Suprema Corte dos
Estados Unidos, que visitou a Italia nas Mãos Limpas e ficou
escandalizado, como registrou o embaixador norte-americano em Roma,
Reginald Bartholomew.
O saldo da “desligitimação” do sistema político
italiano é conhecido e dificilmente será descrito de forma positiva.
Como sempre acontece quando a democracia é modificada de fora para
dentro, o que sempre envolve algum grau de truculência que passa por
cima da soberania popular, a Mãos Limpas devastou o sistema político e
permitiu uma integração subordinada do país à ordem econômica da União
Européia, sob poder do FMI, do Banco Central Europeu e do governo
alemão. Do ponto de vista criminal, nem as crianças sugerem que a
corrução tenha acabado.
Uma das justificativas assumidas por Sérgio Moro para
explicar a Operação Mãos Limpas foi a “integração européia, que abriu
os mercados italianos a empresas de outros países europeus, elevando os
receios de que os italianos não poderiam, com os custos da corrupção,
competir em igualdade de condições com seus novos concorrentes.” A
promessa era que a Mãos Limpas iria ajudar a modernizar a economia
italiana, criando condições para um ambiente de crescimento e
prosperidade . A vida prática mostrou o caráter enganoso dessa visão.
Não há sinal real de que a economia italiana tenha
recolhido benefícios da Mãos Limpas. Pelo contrário: enfrenta, há muitos
anos, um dos piores momentos de sua história. Há uma década, tem o pior
desempenho da Europa, incluindo a Grécia, informa a revista Economist
na edição de 3/1/2015: “em valores constantes, a economia italiana
afundou nos primeiros 14 anos do século (mesmo o PIB da Grécia é maior
hoje do que era em 1999). ”
Depois da Mãos Limpas, o procurador Antonio Di
Pietro, que obteve na Operação o mesmo destaque obtido por Joaquim
Barbosa na AP 470, ingressou na carreira política. Como recorda Sergio
Moro, Di Pietro costumava referir-se ao sistema político italiano como
uma “democracia vendida.”
O próprio Di Pietro tentou seguir carreira política.
Fez um partido próprio, que não atingiu o quociente mínimo para ter uma
cadeira no parlamento. Também foi acusado de ter embolsado indevidamente
a rica herança de uma viuva que admirava suas ideias.
A necessidade de se investir na “deslegitimição”
explica a necessidade dos juizes cultivarem ótima convivência com os
meios de comunicação. Não se trata de relações públicas, mas de força
política: o que se busca é transformar a mídia em braço auxiliar e
instrumento de mobilização social favorável.
OPINIÃO PÚBLICA OU PUBLICADA?
Moro refere-se aos jornais como sinônimo da ” opinião
pública,” ignorando a distinção necessária entre “opinião pública” e
“opinião publicada,” que permite considerar que os meios de comunicação
são empresas privadas, respondem a acionistas, procuram sustentação no
mercado publicitário, desenvolvem interesses comerciais e preferências
políticas — e é dessa forma que publicam determinadas notícias e
eliminam outras, apresentam os fatos sob o ângulo x e ignoram o ponto de
vista y e assim por diante.
Numa afirmação que chama atenção, Moro reconhece que a
punição de agentes públicos é sempre dificil “pela carga de prova
exigida para alcançar a condenação em processo criminal”.
Nesta circunstância, ele atribui à mídia uma exótica
função punitiva, papel que, nos regimes democráticos, deveria ser uma
exclusividade da Justiça — e jamais de empresas privadas que exploram o
mercado de notícias, no qual circulam informações confiáveis mas também a
mentira e a desonra.
Ele afirma que os jornais e revistas podem servir
como um “salutar substitutivo” à punição judicial, pois têm “condições
melhores de impor alguma especie de punição a agentes corruptos,
condenando-os ao ostracismo.”
Num país onde o fantasma do bolivarianismo faz parte
da crítica mais vulgar a toda tentativa de ampliar a pluralidade dos
meios de comunicação, este raciocínio conduz a uma visão preocupante
sobre o trabalho dos jornalistas. Estes deveriam abrir mão da
indispensável independência de sua atividade para assumir o dever de
distribuir castigos suplementares a pessoas condenadas pela Justiça. Não
custa lembrar que uma visão democrática do trabalho dos jornalistas
tenta asssegurar a repórteres e editores a liberdade para julgar e
avaliar todo fato social por seus próprios critérios. Isso inclui,
naturalmente, as decisões do Poder Judiciário, sujeitas a apreciações
positivas ou negativas como todas as outras. Sem essa liberdade, a
humanidade não teria conhecido, por exemplo, a verdade sobre o caso
Dreyfus, revelada por Émile Zola, condição para que um erro histórico da
Corte Militar francesa no final do século XIX pudesse ser denunciado e
corrigido, na medida do possível.
Em 2014, os vazamentos sobre a Lava Jato serviram
para colocar o mundo político brasileiro numa posição precária e frágil
perante o Judiciário, demonstrando quem tinha “maior legitimação.”
Depois que o deputado André Vargas (PT-PR) ergueu o
punho fechado durante a passagem de Joaquim Barbosa por uma solenidade
no Congresso, num gesto solidário com parlamentares e dirigentes
petistas presos pela AP 470, sua cassação foi procurada sem descanso
pelas lideranças da Casa. Você pode até achar que o punho fechado do
parlamentar foi um gesto malcriado e mesmo desrespeitoso.
Mas a degola de André Vargas ganhou prioridade sobre
outro deputado, Luiz Argolo (PP-BA). Integrante, ele também também, da
base governista, a proximidade de Argolo com o esquema investigado pela
Lava Jato era pública, notória e preocupante. Envolvia diversos diálogo
comprometedores, e até entrega de dinheiro vivo em sua residência. Mas
ele não cometera um gesto político considerado desafiador contra o então
presidente do Supremo Joaquim Barbosa — e salvou o mandato.
Um ponto importante no plano de trabalho
“Considerações sobre a Operação Mani Puliti” reside na utilização dos
meios de comunicação na obtenção de delações premiadas, base para
acusações fortíssimas, assinadas na esperança de serem recompensados por
penas leves. Numa afirmação que lança dúvidas sobre sua visão quanto
aos direitos de cada prisioneiro, Sergio Moro chega ser ironico e
permite que um juizo político influencie uma decisão jurídica.
Diz que, nestes casos de corrupção política, “não se está traindo a pátria ou alguma espécie de resistência francesa.”
Quem for atrás de estudos clássicos do Direito Penal
reunidos em torno de uma situação conhecida como Dilema do Prisioneiro
irá descobrir que estamos diante de uma situação estudada pela teoria
dos jogos, cujo resultado pode ser programado com relativa segurança
conforme a situação de cada pessoa presa, suas possibilidades de
comunicar-se com outros envolvidos e o acesso aos termos do inquérito
policial.
Detidos que se comunicam entre si tendem a combinar
versões mutuamente favoráveis, obtendo penas menores. Presos mantidos em
regime de isolamento são facilmente convencidos a fazer revelações
inéditas se forem levados a imaginar que estão apenas confirmando aquilo
que já foi informado. Num comentário que sublinha a importância de se
manter um fluxo contínuo de vazamentos para os jornais, Moro fala da
importância da “disseminação de informações sobre uma corrente de
confissões ocorrendo atrás das portas fechadas dos gabinetes dos
magistados.” Seja divulgando informações verdadeira, seja apenas
espalhando rumores de interesse da polícia, os meios de comunicação
assumem um papel auxiliar na acusação, de valor ético questionável
sempre que não são capazes de comprovar a veracidade daquilo que é
publicado. A compreensão desse jogo permite entender que envolve as
prisões preventivas, situação em que são mantidos os principais acusados
da Lava Jato. Originalmente, elas deveriam servir de uma punição prévia
de acusados, passível de aplicação quando o juiz está inteiramente
convencido de sua culpa e considera que não há necessidade de aguardar o
julgamento. Outra possibilidade é que, se ficasse solto, um acusado
poderia destruir provas e ameaçar testemunhas. Não é disso que se trata
aqui. Muitos presos ficam meses na cadeia, embora não exista prova
alguma contra ele. O que se espera é que um longo confinamento convença
os detidos a confessar os crimes que a Polícia e o Ministério julgam que
cometeram.
Neste ambiente, o que se pergunta é o impacto da Lava
Jato na política e também na economia. As 23 empresas citadas no
inquérito empregam 350 000 funcionários. Com R$ 70 bilhões anuais em
investimentos, a Petrobrás está no coração da investigação e alimenta
6000 empresas fornecedoras. Um cálculo da consultoria LCA, divulgado
pela revista Exame, sustenta que uma queda de 10% nos investimentos da
Petrobrás pode um impacto de meio no crescimento do PIB, que atravessou
2014 contornando o marco zero.
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