quarta-feira, 21 de janeiro de 2015

“O combate ao terrorismo é usado como desculpa para afirmação dos interesses geoestratégicos dos EUA a aliados no mundo”

Entrevista com Marcelo Zero,  transcrito do site Viomundo

por Rennan Martins
Na semana passada ocorreu em Paris o terrível ataque a redação do Charlie Hebdo, como todos sabem. Desencadeou-se então uma enormidade de discussões que vão desde se somos ou não Charlie, passando pela liberdade de expressão versus o discurso de ódio, desembocando na história e geopolítica que envolve o ocidente e os povos muçulmanos.
Muitas das opiniões caíram no intolerante e fácil julgamento que atribui ao Islã a responsabilidade pelo terrorismo. Este tipo de posicionamento é o que mais contribui para a violência, seja por meio do revanchismo ou pela legitimação de intervenções militares.
Para além das interpretações superficiais e buscando uma visão abrangente dessa problemática, entrevistei Marcelo Zero, sociólogo e especialista em relações internacionais. Zero considera que o terrorismo cresceu “exponencialmente” após as guerras que visavam combatê-lo e que as posições da extrema-direita saem fortalecidas após esse atentado. Ele  nos alerta para o fato de que o terror é um conceito usado ao bel-prazer dos EUA a fim de conduzir intervenções que atinjam seus objetivos geopolíticos e econômicos.
Confira:
Com a ocorrência de mais este terrível atentado, dessa vez em Paris, o que se espera dos países da OTAN como resposta?
Até pouco tempo, a OTAN não se envolvia de forma significativa em atividades de contraterrorismo. O entendimento era o de que a organização existia para proteger o Atlântico Norte de ameaças externas, e não de ameaças internas. Além disso, a OTAN entendia o terrorismo como um método de luta, e não como um inimigo concreto e definido a ser combatido.
Entretanto tudo isso mudou com o 11 de setembro. A OTAN entendeu que os EUA foram atacados de fora, por forças da Al-Qaeda ligadas ao Taleban do Afeganistão. O atentado contra as Torres Gêmeas fora, assim, um agressão externa perpetrada por um inimigo concreto e identificável.
A partir desse evento, a OTAN passou a se envolver cada vez mais em atividades de contraterrorismo e na chamada Guerra Contra o Terror.
Em 2010, na reunião de Cúpula de Lisboa, a OTAN definiu seu novo Conceito Estratégico. Conforme essa nova estratégia, o terrorismo não é mais um simples instrumento operacional e tático de conflitos assimétricos difusos, mas sim uma “ameaça direta aos cidadãos dos países da OTAN e à estabilidade e prosperidade internacionais”. Dessa forma, desde 2010 que o terrorismo tem, clara e formalmente, absoluta centralidade na ação estratégica da OTAN.
A resposta da OTAN, em linha com a da França e dos EUA, será, sem dúvida, fortalecer e intensificar suas atividades de contraterrorismo, tanto no plano interno dos países que compõem a organização, tanto no plano externo, particularmente no Iêmen e na Síria.
Que propostas e forças políticas ganham projeção agora? Haverá uma onda islamofóbica na Europa?
Do ponto de vista político, as forças que ganham com esse atentado são, sem dúvida, as forças ligadas à direita e à extrema direita, tradicionalmente islamofóbicas e racistas. Marine Le Pen, em particular, que cresceu bastante nas últimas eleições, deve se fortalecer ainda mais.
Na realidade, a recessão vem provocando um recrudescimento dos sentimentos anti-imigrantes e xenófobos em toda a Europa.
O atentado, obviamente, tende a intensificar essa onda de intolerância contra outras religiosidades, culturas e etnias.
O problema maior não é, contudo, a onda de intolerância e islamofobia, que parece minoritária, mas sim a reação dos governos a ela. No caso da  França, o governo socialista de Hollande provavelmente incorporará algumas medidas típicas da direita, como forma de conter o avanço eleitoral e político dessas forças.
Qual o significado do ato ocorrido em Paris que reuniu diversas lideranças mundiais? É possível uma resposta bélica por parte do ocidente?
A resposta bélica já existe. A Guerra ao Terror é constante e sistemática, embora oculta da grande mídia ocidental. Praticamente toda semana algum “alvo” dessa guerra é bombardeado ou atacado de alguma forma, seja no Paquistão, no Afeganistão, na Síria, no Iraque, na Palestina, no Iêmen, etc.
Somente no Iêmen houve 117 ataques, nos últimos 5 anos, com a morte de mais de 1.100 pessoas, pelo menos. A maior parte desses ataques foi feita com o uso de dos chamados drones, veículos não-tripulados controlados por operadores em território norte-americano.
Evidentemente é de esperar uma intensificação desses ataques, particularmente no Iêmen, sede mais relevante da chamada Al-Qaeda da Península Arábica, invocada pelos irmãos Kouachi no atentado, e que se responsabilizou pelo ato.
Não acredito, no entanto, numa operação militar convencional, pois o governo corrupto do Iêmen coopera com os EUA na Guerra contra o Terror.
Porque Netanyahu recebeu tanto destaque na passeata e no evento ocorrido em seguida na Grande Sinagoga de Paris? Há algum significado nisso?
Embora tenha se afirmado que Hollande não queria Netanyahu na passeata, o fato concreto é que Israel é visto como um grande aliado das potências ocidentais na Guerra Contra o Terror. A contrainteligência e o contraterrorismo da França, dos EUA, etc. precisam dos serviços e da expertise fornecidos por Israel. Israel é o grande parceiro estratégico dos EUA e da Europa no Oriente Médio.
Como podemos entender o conceito de terrorismo? Procedem as alegações de que os governos fazem uso político do termo?
O combate ao terrorismo é usado como desculpa para afirmação dos interesses geoestratégicos dos EUA a aliados no mundo.
Até hoje, a ONU não conseguiu produzir uma conceituação sobre o que é, de fato, o terrorismo. Grupos que são considerados terroristas por Israel e os EUA, como o Hamas e Hezbollah, são muitas vezes considerados como “combatentes da libertação”, por outros.
Tecnicamente, o terrorismo é somente uma tática de luta. Ele não tem um conteúdo político específico.
Qual o esquema de operação da Al-Qaeda? Existe uma estrutura centralizada que coordena as ações do grupo?
Não, não há. A Al-Qaeda reúne, na realidade, diversas organizações difusas e descentralizadas. Não há uma hierarquia e uma estrutura organizacional fixa. Seria mais preciso se falar em “Al-Qaedas”, e não numa só organização. Daí a dificuldade em combatê-la. Esses grupos têm autonomia política e operacional. Há também disputas internas entre eles. O Estado Islâmico, por exemplo, surgiu como dissidência da Al-Qaeda na Síria.
Quanto à dita Guerra ao Terror, ela conseguiu sufocar o terrorismo em alguma medida? Quais são os reais objetivos dessa guerra?
Os fatos mostram que não. Ao contrário, a Guerra contra o Terror e as invenções militares no Oriente Médio a ela associadas só fizeram aumentar a violência e as atividades dos grupos fundamentalistas. São os casos, por exemplo, das intervenções desastradas no Iraque e na Síria. Nesses países, as mortes já ascendem, em conjunto, a 700 mil pessoas e as atividades terroristas dos grupos islâmicos fundamentalistas aumentaram exponencialmente.
Reforço: o combate contra o terrorismo na realidade é usado como escusa para a derrubada de regimes que são considerados hostis pelas potências ocidentais, particularmente os EUA. Nesse processo, muitas vezes se incentivam grupos fundamentalistas que fazem oposição a esses regimes. Foi o caso do Estado Islâmico, grupo terrorista financiado e incentivado pelos EUA porque esteve e está envolvido na guerra contra o regime sírio de Al-Assad.
Convém lembrar que o Taliban é resultado, em grande parte, do apoio que os EUA deu aos mujahedin que, na década de 80, combatiam os soviéticos no Afeganistão.
Trata-se de um padrão repetitivo e preocupante de intervenção que desestabiliza politicamente a região e incentiva a violência e o terrorismo.
É possível atribuir o terrorismo à filosofia muçulmana em si?
Não, claro que não. A religião muçulmana já deu grandes exemplos históricos de tolerância. Numa época em que os cristãos promoviam Cruzadas, o Islã abrigava pacificamente, em muitas de suas grandes cidades, bairros judaicos e cristãos.
Na Espanha, que esteve durante séculos sob domínio muçulmano, houve convivência pacífica entre cristãos, judeus e árabes, nas cidades controladas pelos califados. Os cristãos não eram obrigados a se converter à religião muçulmana e existiam templos cristãos que funcionavam livremente, assim como sinagogas.
Os judeus eram particularmente valorizados, pois dominavam o árabe e o castelhano, além do idioma hebreu. A Inquisição, recorde-se, é uma invenção do cristianismo.
De onde provém a interpretação fundamentalista do islã que rege o Estado Islâmico e a Al-Qaeda?
Como toda grande religião que se espraia no tempo e no espaço, o Islã produziu muitas interpretações, variantes, seitas e cismas. O mesmo aconteceu e ainda acontece com o cristianismo, por exemplo. No Islã, há sunitas, xiitas, salafistas, alauítas, etc. No cristianismo, há católicos e uma infinidade de variantes do protestantismo.
A interpretação fundamentalista do Islã, ou melhor, as interpretações fundamentalistas do Islã nascem de uma leitura rigorosa e literal do Corão e da Sunnah, combinada, muitas vezes, com leis e costumes tribais. Em alguns países, como a Arábia Saudita, a lei religiosa, a sharia ou charia, é aplicada totalmente, sendo a única fonte do direito. Já em vários outros países, a fonte do direito é secularista. Em outros, há uma mistura.
É controverso, no entanto, se essas interpretações fundamentalistas dão realmente suporte religioso ou moral às atividades violentas de grupos como o Estado Islâmico.
Do ponto de vista social e cultural, no entanto, essa violência está muito ligada às condições socioeconômicas de muitas populações islâmicas, excluídas do desenvolvimento, bem como aos conflitos políticos e geopolíticos presentes, sobretudo, no Grande Oriente Médio.
A violência não nasce da religião em si. A religião é apenas usada para justificá-la.
Nos últimos dias muito se falou sobre a Al-Qaeda do Iêmen, que seria uma das células mais ativas. Que interesses o ocidente tem naquele país?
De fato, há muita atividade desse tipo no Iêmen. Esse país é, na realidade, bastante pobre. Sua renda per capita, segundo o critério PPP, é de apenas US$ 2.500 dólares, uma ninharia na afluente Península Arábica. Suas fontes de petróleo são escassas e estão diminuindo, embora ainda sejam responsáveis por cerca de 25% do PIB ienemita. A economia do Iêmen sofreu muito com a Guerra do Golfo, já que seus trabalhadores que estavam no Iraque e no Kuwait, responsáveis pelo envio de divisas para o país, tiveram que retornar à casa com o conflito.
A importância do Iêmen para o Ocidente tange à sua localização estratégica no estreito de Ormuz, rota entre a Ásia e a Europa por onde passam diariamente 17 bilhões de barris de petróleo, e à necessidade de manter a Península Arábica sob a órbita geopolítica ocidental e longe do extremismo islâmico.

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