Por Milton Hatoum, no Conversa Afiada Oficial
Pescamos aracus e oranas, e devolvemos às águas do Negro os filhotes
de matrinxã e piranha-caju. Se fossem piranhas crescidas, dariam uma
deliciosa caldeirada com pirão apimentado.
As crianças, impressionadas com as piranhas, perguntaram se eram perigosas.
“Assim miudinhas, não”, disse Absalão. “Quer dizer, se tiver sangue na água, aí até essas miúdas atacam.”
Já
escurecia quando guardamos os caniços; depois Absalão foi limpar os
peixes. Nosso barco estava atracado numa ilha do Negro, uma das centenas
de ilhas que surgem no verão e sobrevivem até março ou abril, quando
são cobertas pela enchente e o rio torna-se um mundo de águas escuras e
nem sempre espelhadas.
Só às oito da noite vi na popa do barco um
rastro de sangue que sumia na escadinha que conduz ao porão das
máquinas. Desci para saber o que tinha acontecido.
“Tava amolando as facas e vacilei”, lamentou Absalão.
Vi
na mão esquerda do pescador o corte em cruz, profundo, que sangrava
muito. O posto de saúde mais próximo da ilha ficava numa vila que
visitei há mais de 20 anos, e à qual não havia retornado.
Absalão,
teimoso, quase intratável, só decidiu viajar até o posto da Vila porque
o sangue não estancava na mão enfaixada. Entramos no bote de alumínio,
motor pequeno, e navegamos em direção da Vila. O pescador me indicava a
rota, pois eu estava totalmente perdido na escuridão do rio, que se
confundia com a noite densa. No meio da viagem, a luz do luar revelou o
estirão branco da Praia Grande, e numa elevação próxima à margem
surgiram as cruzes de um pequeno cemitério. Luzes esparsas piscavam na
floresta como se fossem vaga-lumes; mais de uma hora depois, atracamos
na Vila, onde os moradores se reuniam nos bares para comemorar o ano
novo. O som de uma música tecnobrega vinha de um galpão distante, e na
varandinha de uma casa de madeira, dois curumins manuseavam um aparelho
com jogos eletrônicos.
O posto de saúde estava fechado. Absalão sugeriu que fôssemos à casa do médico.
“Tem um médico na Vila?”, perguntei, surpreso.
Um
homem silencioso e discreto destrancou a porta do posto, limpou a mão
ferida do pescador, deu 15 pontos no corte em cruz e fez o curativo.
Depois, preencheu uma ficha e falou pela primeira vez:
“Absalão? É esse mesmo o seu nome? É o título de um livro fabuloso”.
Pelo sotaque notei que o único médico daquela região do rio Negro era estrangeiro.
“Cubano”, ele disse. “De Camaguey, bem no centro da ilha.”
Não
conversamos sobre medicina nem política, mas sobre literatura, pois o
cubano era um excelente leitor. Ele disse, com a modéstia de um ser
insular, que na literatura cubana havia alguns narradores e poetas
legíveis. Mas o nome do pescador nos levou ao romance de Faulkner, cuja
obra o médico conhecia e admirava. Conversamos sobre Absalão, Absalão! e
a tragédia da família Sutpen, que, de algum modo, é a tragédia do Sul
dos Estados Unidos. O médico se lembrava de vários personagens, das
cenas mais escabrosas e delirantes, de frases que expressam a estranha e
poderosa poesia desse grande romance norte-americano.
O outro
Absalão, pescador, nos ouvia com interesse e, de vez em quando,
examinava o curativo que cobria sua mão. Enquanto o médico comentava a
ficção de Faulkner, eu pensava no poder da literatura, capaz de desarmar
os mais ferozes gladiadores da arena política. Diante de um
médico-leitor culto, percebi que a medicina social e a literatura eram
suas grandes paixões. E não pude deixar de citar dois grandes
médicos-escritores brasileiros, Pedro Nava e Guimarães Rosa, ambos
cultíssimos, sendo que o primeiro exerceu sua profissão até pouco antes
de morrer. Pensei: o estudante de medicina que ler Baú de Ossos será
mais do que um médico…
Às dez e meia, eu e o pescador saímos da
Vila e regressamos à ilha no rio Negro; o vento e o pequeno motor
retardaram nossa viagem de volta. Nos arredores da Praia Grande, um
barco tosco e iluminado passou perto do nosso bote, emitindo uma
algaravia alegre, que rompeu o silêncio e a solidão noturnos. E quando
deu meia-noite, vimos as luzes do nosso barco, atracado na ilha ainda
distante.
Ouvi a voz de Absalão: “Vocês conversaram sobre um romance ou sobre a bíblia?”.
“Sobre
um romance mais ou menos inspirado numa personagem bíblica”, eu disse.
“Histórias inventadas, Absalão. Tu sabes a origem do teu nome?”
“Mais ou menos”, ele disse. “História e nome é tudo doido…”
Não pude ver a expressão do rosto do pescador, que virou o rosto de lado e ergueu a mão costurada na noite que ventava.
* Publicado originariamente no jornal O Estado de São Paulo de 10 de abril de 2015
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