Clemente
Ganz
Lúcio[1]
Madrugada. Em duas horas, o sol se
apresentará para encaminhar
a noite, colocando-a para descansar, em um vigoroso gentil
espetáculo de larga
beleza. Ainda no escuro da noite, a natureza silencia à espera
da troca. Quando
finalmente o dia rende a noite, o silêncio explode em um
vibrante espetáculo de
luz e som.
Hoje, como ontem, ainda dominado pela
noite, meu dia
começa cedo. Já no carro que me leva ao destino longínquo, a
notícia me faz
pensar durante as horas da viagem. Um jovem faz a seguinte
declaração ao
repórter: “Não aceito traição!”
Simples, não? Claro, pois as pessoas
não gostam de
ser enganadas nem gostam de alguém que não cumpre acordos ou
compromissos, ou de
quem entrega por traição.
Na sequência, o repórter completa a
notícia: o rapaz,
de 19 anos, desconfiado de que a namorada, de 16, o traía,
convidou a jovem para
sua casa e, com uma faca, matou-a. Na sequência, a esquartejou.
Lembrei-me daquele pensamento que diz:
por trás de
problemas complexos, há soluções simples, infelizmente erradas
ou equivocadas. A
racionalidade desse jovem é de uma estúpida irracionalidade ou a
irracionalidade desse jovem representa a ignorância da nossa
estúpida
racionalidade?
O silêncio da madrugada me oprimia e
eu queria expirar
até que nada mais restasse além da energia original.
Quilômetros deixam paisagens.
Racionalidades! Lembrei-me
do jogador do meu time que, depois da quinta derrota seguida e,
com a tatuagem
“Deus é fiel” inscrita no braço, não ofereceu ao seu deus aquela
derrota. Sim,
porque há alguns meses, esse mesmo jogador dizia ao repórter que
deus era
responsável pela vitória do time. Chama-me a atenção que os
goleadores remetem
ao céu o feito, ajoelhando-se, elevando as mãos ao alto ou
mostrando a
tatuagem. Interessante que o goleiro vazado não tenha naquele
instante o mesmo
gesto. Pelo jeito, deus tem um lado, o lado do vitorioso!
O que diria a jovem esquartejada? O
que pensa o
goleiro vazado?
Ainda fresca na memória, a conversa
que tive no dia anterior
fez-se presente. Disse-me uma amiga, depois de uma palestra que
eu fizera: “Na
medida em que você fala, meu peito vai contraindo e vou ficando
agoniada,
porque é tudo verdade, é tudo muito duro e é assim mesmo. Mas
nós temos que ter
saída! Você é muito pessimista!”
Na subida da serra, Saramago me faz
companhia, dizendo-me
na memória: “A doença mortal do homem como homem é o egoísmo”.
Pessimista? Ele
respondia: “Meu olhar é pessimista, mas esse é o olhar de quem
quer mudar o
mundo” (2001). Em 2005, ele avançou: “Ultimamente, gosto de
dizer outra coisa:
eu não sou pessimista, o mundo é que é péssimo”.
Imagino-me em 1880, no balneário de
Ramsgate,
Inglaterra, em agosto. Conta Mary Gabriel que Karl Marx e
família ali estavam e,
“de forma surpreendente, Marx convidou John Swinton, um
jornalista reformista
liberal de Nova York para visitá-lo... Swinton diria que ficara
aguardando a
tarde inteira o momento de fazer uma pergunta a Marx sobre o que
o jornalista
chamou de “a lei definitiva do ser”. Por fim, surgiu uma
oportunidade e ele
perguntou: “E qual é essa lei?” Marx olhou para o mar agitado e
a multidão na
praia e respondeu: “A luta!”
Chego ao meu destino, diferente.
[1] Sociólogo, diretor técnico do DIEESE, membro do CDES – Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social.
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