Texto de Paulo Moreira Leite, de seu blog
É conveniente evitar toda ilusão com a
investigação aberta pelo Conselho Nacional do Ministério Público em
torno de Valtan Timbó, o procurador que decidiu iniciar um Procedimento
Investigatório Criminal contra Luiz Inácio Lula da Silva a partir da
acusação de “tráfico de influência internacional.”
A medida contra Valtan tem um efeito disciplinador.
Será
útil se for capaz de esclarecer aos brasileiros por que um procurador
que nada tinha a ver com o caso decidiu interferir numa apuração já em
andamento, que cumpria seus prazos, sob cuidados de uma procuradora já
escolhida, Mirella Aguiar. É possível que se possa explicar por que um
procurador, que responde a 254 acusações de negligência, decidiu
envolver-se num caso contra um ex-presidente da República.
Apesar da decisão disciplinar, que pode ter consequências para Valtan, do ponto de vista de Lula o serviço já foi feito.
O Procedimento Investigatório já foi aberto e não pode ser desfeito de uma hora para outra.
Será
preciso que a própria Mirella Aguiar, a quem o caso já foi devolvido,
chegue à conclusão de que não cabe levar o Procedimento adiante e pedir
seu arquivamento. Ela já disse que tudo se baseia em “parcos elementos
desprovidos de suporte probatório.” Tradução: não há provas para
sustentar o que se diz contra Lula.
Depois disso, ela solicitou
ao Instituto Lula que ofereça um calhamaço de informações que pessoas
familiarizadas com investigações de alto teor político comparam a uma
devassa. Mesmo assim, não será preciso encontrar nada muito consistente.
Basta uma dúvida para o caso continuar.
Pelas regras do
Ministério Público, um procurador pode decidir, sozinho, se vai levar um
caso em frente, pedindo um indiciamento do acusado. Para mandar
arquivar, no entanto, é mais trabalhoso. Mesmo que Mirella tenha
concluído pelo arquivamento, será preciso aprovação da Câmara do
Ministério Público.
É uma regra oposta à noção “em dúvida, pró
réu”, que vigora nos julgamentos e faz parte das garantias individuais
de todo país civilizado.
Aqui, vale uma regra chamada “em
dúvida, pró sociedade.” O pressuposto desta visão é que as investigações
são sempre úteis a um país, e por isso só devem ser arquivadas após
muito debate e questionamento. Parece óbvio mas não é.
Se a
maioria das investigações cumpre a função social de prestar contas à
sociedade sobre crimes ocorridos, uma investigação pode se transformar
em perseguição, especialmente quando envolve personagem politicamente
delicados, onde a motivação política de investigadores pode estar à flor
da pele.
Qual o sentido de prosseguir uma investigação com base
em “parcos elementos desprovidos de suporte probatório?” Criar uma
dúvida. Basta isso.
Através da dúvida, forma-se um caldo de
cultura em torno da investigação que torna difícil qualquer iniciativa
para reconhecer “parcos elementos” e encerrar o caso, mesmo que se saiba
que é a decisão mais adequada a se tomar.
O importante é manter o
clima do “aí tem coisa,” mesmo que se evite dizer que coisa é essa, sem
a qual não se pode acusar ninguém.
Vamos combinar: uma denúncia
que nasceu nas páginas da Época está destinada a ser monitorada
cuidadosamente pelos meios de comunicação em cada detalhe. O objetivo é
constranger os juízes que, nas várias instâncias, serão chamados a dar
um veredito sobre o caso.
Nos Estados Unidos, informações sobre
um inquérito criminal não podem ser veiculadas por jornais nem pela TV.
Isso provoca — obrigatoriamente — a anulação do julgamento.
Vale a
convicção de que a mídia tem o poder de influenciar os cidadãos comuns
que irão compor o júri. Por isso, eles devem ser protegidos. No Brasil,
país onde o júri popular é uma ocorrência rara, vigora a visão —
ingênua, na minha opinião — de que os juízes que deliberam sobre um caso
estão acima daquilo que os jornais dizem e a TV mostra. Por isso, os
vazamentos podem ser tolerados e estimulados. Alguém acredita nisso
depois das cenas inesquecíveis da AP 470 e da glorificação precoce de
Sérgio Moro, herói de um julgamento que nem terminou?
Outro
pressuposto é que o Ministério Público é a instituição que neste caso
faz o papel de sociedade. Você pode achar estranho, porque, embora o
Brasil seja um país onde os poderes emanam do povo, como ensina a
Constituição, nunca votou para escolher esse representante.
Mas o
Ministério Público tem atuado desta forma desde a Constituição de 1988,
que garantiu sua autonomia funcional, após um esforço organizado de
pressão sobre os parlamentares que, conforme recorda o professor de
Direito Marcelo Figueiredo, da PUC de São Paulo, só ficou atrás de
militares, banqueiros e da bancada ruralista. Estes poderes foram
reforçados em maio, quando o Supremo Tribunal Federal aprovou, por 7
votos a 4, que o Ministério Público tem poderes de fazer uma
investigação criminal — desse tipo mesmo, que se pretende abrir contra
Lula.
Até então, juristas que ajudaram a elaborar a Constituição,
como o professor José Afonso da Silva, classificavam as tentativas dos
procuradores de assumir investigações criminais como “um desvio de
função, uma fraude contra uma Constituição que não lhe confere tal
poder.” A situação se modificou, como se compreende pelo voto do
ministro Marco Aurelio Mello, que ficou com a minoria, contra a mudança,
apontando uma distorção elementar na decisão: “é inverter a ordem
natural das coisas. Quem surge como responsável pelo controle não pode
exercer atividade controlada. O desenho constitucional relativo ao
Ministério Público na seara penal pauta-se na atividade de controle
externo da polícia. Deve ser tutor das garantias constitucionais.”
É
nesse ambiente, em que se “inverte a ordem natural das coisas”, que o
andamento da possível investigação sobre Lula será resolvido. Para
manter o caso ativo, basta uma dúvida. Você entendeu o que nos espera
daqui para a frente, não?
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