domingo, 30 de agosto de 2015

Crise na China? Que crise é essa mesmo?


Elias Jabbour*, extraído de O Cafezinho.

Há quase um mês a China virou manchete dos editoriais dos principais periódicos de economia do mundo. Não mais noticiando recordes de crescimento. Ao contrário, as preocupações giram em torno da sustentabilidade do crescimento, para quanto mesmo irá cair seu crescimento e quanto o mundo sentirá esta queda de índice. A presente instabilidade no gigante devolve ao centro do debate a sustentabilidade, de fato, do chamado “modelo chinês”. Não demorou muito para que o debate tomasse contornos ideológicos com os ortodoxos colocando a cabecinha de fora, opinando como se o problema do mundo fosse o excesso de Estado na China e não o contrário (falta de Estado) em outros países, inclusive o Brasil.
Evidente que a questão a ser respondida é se o país continuará a crescer ou não. Ou até onde vai a capacidade do Estado chinês em continuar dando as rédeas do processo e até onde deverá ser encaminhada uma reversão de papéis interna com o mercado tomando posições. Daí a vaticinar uma nova crise financeira tendo como epicentro a China é um exagero razoável. Mais honesto seria colocar os olhos sobre a quantas andam as operações de derivativos no sistema financeiro norte-americano, pois é de lá que os podres do padrão financeirizado de acumulação continuarão a brotar, não na China. É do mercado autorregulado que devemos ter medo. E desde 1929 é isso o que a história tem demonstrado.
A China decide em 1978 implementar uma política de profundas reformas econômicas e de abertura à tecnologia exterior, mantendo o caráter socializando do regime. Esse movimento não se deu isoladamente. Motivos de ordem externa e interna aceleraram esta opção. A decadência do fordismo, levando consigo seus clones socialistas, na década de 1970 acrescido pelo surgimento de um novo paradigma tecnológico no Japão, a ascensão dos Tigres Asiáticos às suas portas e com performance econômica capaz de demonstrar a iniquidade do modelo soviético e a suposta superioridade do socialismo. Afora isso, persistiam pendências históricas não solucionadas (Taiwan, Hong-Kong, Macau), além – internamente – dos dissabores de um modelo de crescimento marcado por desiguais relações entre campo e cidade (modelo soviético) e suas imensas repercussões, entre elas o da sustentação política de uma força que chega ao poder em 1949 como expressão de uma grande revolta camponesa.
Em mais de 35 anos, pode-se dizer que a China enfrentou com sucesso grande parte de todos os desafios elencados acima. Sua produção agrícola continua a crescer, camponeses enriqueceram, o país se transformou numa potência financeira capaz de proscrever os imperativos de dominação intrínsecos às instituições forjadas no âmbito de Bretton Woods. A fusão, em 1978, do Estado Revolucionário fundado por Mao Tsétung em 1949 e o Estado Desenvolvimentista de tipo asiático internalizado por Deng Xiaoping, tem determinado o poder de transformação e desafio aos paradigmas impostos pelo Consenso de Washington.
Porém, o peso da indústria nacional (oficina do mundo) e de seu respectivo efeito demanda sobre economias de todo planeta, um crescimento pautado por altas taxas de investimento e, consequentemente, com variável consumo sobre o PIB muito baixa, além de uma crescente interação financeira com o resto do mundo têm posto o país diante de óbices nada pequenos: o momento é de mudança de modelo. O consumo deverá tomar a dianteira do processo. Não somente isso, o próprio mercado deverá tender a ganhar mais peso e importância na alocação de fatores de produção e determinação de preços. Evidente que uma transição deste nível não ocorrerá sem grandes percalços, afinal o próprio desenvolvimento soluciona e engendra contradições. Ninguém cresce durante 35 anos consecutivos, “impunemente”, ainda mais num modelo onde a prática de tentativa e erro é parte essencial da metodologia.
A crescente internacionalização da economia do país coloca no centro da agenda a conversibilidade de sua moeda, além disso os efeitos de um pacote de US$ 600 bilhões implementado em 2009 para enfrentar os efeitos domésticos da crise financeira internacional provocaram injeção demasiada de liquidez na economia doméstica, além de forte endividamento interno no nível provincial. Ao adentrar na era do mercado de capitais é preciso saber que é no mercado de capitais onde estas contradições se esgarçam, o que não significa que esteja ocorrendo uma grave crise financeira por lá (o alcance de mercado de capitais ainda é muito pequeno em comparação com as congêneres europeias e norte americana), porém é sugestivo o desafio da nova era à governança chinesa e mesmo aos países dependentes de seu mercado doméstico, incluindo o Brasil.
Não vejo uma crise na China. O país deverá cumprir sua meta de crescimento aos próximos anos de algo entre 6,5% e 7%. Também se foi o tempo do crescimento quantitativo, aquela loucura de dois dígitos. O país está diante do desafio de trânsito de modelo, justamente num país em que o investimento é quase um vício, não somente isso: o próprio investimento é elemento de avaliação política e ascensão de dirigentes municipais e provinciais na hierarquia do PCCh. Num ambiente deste é muito difícil uma transição, mesmo que suave, pois demanda profunda mudança de mentalidade política e empresarial. Além do mais, o sucesso da transição demanda imensa mobilização das maiores taxas de poupança represada do mundo, ao consumo. O que significa, na outra ponta, o desafio de construção de um poderoso Welfare State, cujo sucesso de implementação poderá ser principal objeto de comparação entre o sucesso e, real, superioridade do socialismo ante um capitalismo em estado rápido de putrefação.
Por fim, o desafio do Estado e do mercado. Um processo de liberalização financeira está na ordem do dia das autoridades de Pequim, o que não redunda na adoção de uma noção neoclássica de autorregulação mercantil, longe disso. Na outra ponta está o desafio do Estado Nacional chinês de ampliar o alcance de seu próprio Estado e do papel do planejamento, muito além do planejamento soviético e das novas formas surgidas no âmbito das reformas econômicas. Formas superiores de planejamento como instrumento de relação com as instabilidades anexas aos mercados financeiros. Nunca o exercício da estratégia foi tão necessário quanto na China de nossos dias, sentindo as dores do parto de um complexo e difícil processo de mudança de modelo e paradigma internos.
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* Professor Adjunto da Faculdade de Ciências Econômicas da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (FCE-UERJ) e autor de “China Hoje: Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado” (Anita Garibaldi/EDUEPB, 2012)

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