segunda-feira, 26 de outubro de 2015

'Se repudiamos nosso passado de esquerda, desistimos do nosso futuro'

Sensor disponibiliza matéria de Marcelo Justo extraído do site Carta Maior.


Autor de uma dúzia de livros essenciais, entre eles “A esquerda ausente – crise, sociedade do espetáculo, guerra”, recém apresentado em Barcelona, Domenico Losurdo é uma referência da esquerda italiana e europeia, capaz de questionar não só as limitações analíticas de um marxismo vulgar como também o eurocentrismo que domina com frequência a reflexão europeia. Em diálogo com a Carta Maior, o filósofo italiano vinculou seu último livro com um dos grandes mistérios da história dos nossos dias: o impacto político do colapso financeiro de 2007-2008.

A quebra do banco Lehman Brothers e a crise do sistema financeiro internacional gerou um debate sobre o capitalismo como não se via desde a queda do muro de Berlim e o fim da União Soviética. Na cúpula do G20 de abril de 2009, em Londres, o então presidente estadunidense Barack Obama criticou os excessos de Wall Street, enquanto seu colega francês Nicolas Sarkozy falou da necessidade de refundar o capitalismo e acabar com a era dos paraísos fiscais.

Hoje, esse discurso parece uma alucinação de uma memória com febre. A recuperação liderada pela China, com o gigantesco investimento estatal que ativou sua economia e insuflou a demanda mundial, criou a ilusão de um capitalismo capaz de ressurgir eternamente das cinzas. A esquerda, que ainda não havia se recuperado da desorientação deixada pela queda do muro de Berlim, não pode ou não soube aproveitar aquele momento. “Mas a crise não acabou. Não é questão de pensar em paralelos simples, mas recordemos que a de 29 só terminou com a segunda guerra mundial. Hoje, vemos também que a crise não é só econômica, mas também política, como se vê com a União Europeia. Além disso, há um estado de guerra, como vemos na Síria e na Líbia, que tem levado muitos observadores a pensar que existe um grande perigo bélico. A esquerda tem que lidar com todas essas situações ao mesmo tempo: a econômica e social, a política e a bélica”, comentou Losurdo à Carta Maior.


Por quê a esquerda está “ausente”?


O grande problema é que, como diz Losurdo já no título do seu último livro, a esquerda está “ausente”, ou seja, que fugiu do debate público, deixando em seu lugar “o pensamento único neoliberal e neocolonialista”. Em outras palavras, o mesmo sistema de pensamento e práxis que gerou a crise está encarregado de explicá-la, graças a essa “ausência” da esquerda.

Losurdo reconhece que, nos últimos anos, essa esquerda “ausente” começou a despertar na Europa. O Syriza na Grécia, o Podemos na Espanha e Jeremy Corbyn no Reino Unido são expressões desse primeiro despertar. “Mas acho que, em todos os casos, ainda não compreenderam a fortaleza do ataque contra o Estado de bem-estar. É um ataque furibundo, que requer uma resposta coordenada”, afirmou ele.

Em sua análise, o bem-estar se tornou o equivalente a um bastão essencial numa guerra, a praça que não pode se render, porque levaria à queda de todas as outras. “É paradoxal, porque o bem-estar surgiu como resultado de uma situação nacional e internacional, como uma tentativa de frear as forças de esquerda. No final da Segunda Guerra Mundial, tínhamos uma União Soviética muito prestigiada e forças de esquerda com muito poder em diversos países europeus. O Estado de bem-estar foi a resposta capitalista a esses dois fenômenos. A situação atual é outra. Não existe União Soviética, a esquerda está ausente e a burguesia não tem nenhuma razão para manter esta instituição, por isso a está desmantelando”.

Diferente de outros pensadores da esquerda europeia, Losurdo é muito consciente do problema neocolonial. Em seus textos, qualificou a luta anticolonial como uma “luta de classes” e reclamou do fato de a própria esquerda não prestar a devida atenção ao tema. “Necessitamos um novo bloco histórico que lute contra o neocolonialismo que vemos nas guerras que estão acontecendo no Oriente Médio. Uma união de forças, da classe trabalhadora e de países emergentes como China, Brasil, Rússia e outras nações que devem se unir para combater o projeto capitalista-imperialista”, analisou Losurdo.


América Latina e a sociedade do espetáculo


Com relação à América Latina, que tem estado na vanguarda deste questionamento do pensamento único neoliberal no Século XXI, Losurdo vê luzes e sombras. “Há uma ofensiva imperialista na América Latina. Os Estados Unidos não quer abandonar a Doutrina Monroe, da América para os americanos. O golpe na Venezuela, em 2002, é um exemplo. Mas a esquerda latina também cometeu erros. O caso que conheço melhor é o mesmo caso venezuelano. Creio que Chávez fez algo muito importante, ao acreditar num Estado de bem-estar com o dinheiro do petróleo que antes era administrado pela oligarquia venezuelana, mas o seu limite foi ter se centrado na redistribuição, sem mudar o modelo de produção de riqueza. Nisso, a América Latina deveria olhar melhor o exemplo chinês”, afirma.

O livro de Losurdo tem como subtítulo “crise, sociedade do espetáculo, guerra”. O conceito de “sociedade do espetáculo” vem de um pensador francês, Guy Debord – que, em 1967, captou o surgimento de um fenômeno que nasceu com a televisão e o consumo, que começava a transformar a realidade na representação-espetáculo. Debord não sabia da internet e mal podia suspeitar do predomínio brutal que o mundo da imagem alcançaria sobre o da palavra décadas mais tarde. “É um obstáculo que a esquerda tem que superar para manter a solidariedade e o Estado de bem-estar. É algo que analiso em meu livro. A classe dominante conquistou não só o monopólio da riqueza e das ideias, mas também o das emoções. Nesse aspecto, creio que esta sociedade do espetáculo é ao mesmo tempo a sociedade da guerra em que se manipula a opinião pública. A situação do Oriente Médio deve ser entendida neste sentido”.

Na longa conversa telefônica com a Carta Maior, fica claro, porém, que o centro da reflexão de Losurdo é esta misteriosa “ausência” da esquerda, capaz de convertê-la num “fantasma” que, longe de percorrer a Europa para mudá-la como na frase inicial do “Manifesto Comunista” de Marx e Engels, busca se acomodar no interior da União Europeia neoliberal para não ficar de fora. Segundo o intelectual italiano, esse é o grande desafio. “Um dos problemas do Podemos na Espanha é quando se colocam como algo além da esquerda e da direita. Não dizem algo novo. Mas dizem algo perigoso. Se repudiamos nosso passado de esquerda, desistimos do nosso futuro. Quando o pensamento dominante busca que a esquerda tenha a mesma visão do Século XX que eles, essa esquerda deve perceber que isso se trata de uma grave capitulação histórica e ideológica, que prepara uma capitulação política para a transformação do presente”, disse ele à Carta Maior.

Tradução: Victor Farinelli



Nenhum comentário:

Postar um comentário