segunda-feira, 30 de novembro de 2015

Entrevista Paulo Henrique Amorim

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Ao PT só resta temer o próprio medo

É improvável que o desafio de reinventar o partido tenha êxito se ficar restrito a sua própria estrutura, hoje uma réplica do sistema político carcomido do país

por: Saul Leblon, na Carta Maior

Lula Marques
O PT não pode mais assistir ao seu próprio funeral acuado nas amarras da prostração e da perplexidade.

Forças que querem destruí-lo tem tido sucesso nesse intento, graças a um estratagema ardiloso.

Em nome dos erros do partido –que não são poucos— mira-se a desqualificação de suas virtudes e bandeiras

Uma resume todas as demais.

O PT ressuscitou a agenda da justiça social como motor e finalidade do desenvolvimento econômico, em contraposição ao exclusivismo mercadista atribuído às metas de inflação (leia-se juros reais elevados); ao superávit fiscal (leia-se arrocho e estado mínimo) e ao câmbio livre (leia-se, livre mobilidade dos capitais).

O partido não trocou uma coisa pela outra: trouxe o antagonismo capitalista para dentro do aparelho de Estado e tentou mediá-lo nos últimos 12 anos.

É esse o ciclo que agora se despede em ruidosa transição.

A dificuldade de se renovar na travessia –e assim reagir ao massacre que o desnorteia-- reside menos na incapacidade de enxergar tropeços e equívocos pregressos, do que no fato de que o PT se tornou uma réplica do sistema político que precisa combater para ressuscitar.

O sistema político brasileiro exige muito pouco dos quadros partidários em termos de identidade programática e coerência de princípios.

Mas premia a densidade dos vínculos com interesses tão ecumênicos quanto os que o poder do dinheiro consegue estabelecer na sociedade.

A naturalidade com o que o senador Delcídio Amaral  transitou nas últimas duas décadas da esfera do PMDB para a filiação ao PSDB e deste para o PT, sem mudar de referências políticas, nem abdicar do seu repertório ecumênico de apoios, é exemplar desse paradoxo.

Sua abrupta derrocada, após flagrante em gravações comprometedoras, reitera a distorção que está despedaçando a democracia e desmoralizando seu espectro partidário –mas sobretudo o PT, pelas razões sabidas.

Delcídio foi diretor de gás e energia da Petrobrás no governo Fernando Henrique, indicado pelo PMDB; filiou-se em seguida ao PSDB onde permaneceu até 2001; por conveniências regionais saltou então para o PT, que lhe facultou a vaga para eleger-se senador da República pelo Mato Grosso, em 2002.

Nesse vaivém de década e meia, manteve-se fiel a um mesmo círculo de interesses integrado entre outros pelos atuais delatores da Lava Jato, Paulo Roberto Costa e Nestor Cerveró.

Não teria sido muito diferente se ainda estivesse no PSDB, ou no PMDB.

É justamente essa indiferenciação que está matando a credibilidade na política como ferramenta de construção do país e do seu desenvolvimento.

Ela impede que a sociedade disponha de alternativas claras e confiáveis para tirar a economa da espiral descendente em que se encontra, empurrada pelo esgotamento de um ciclo de expansão.

O PT, pelas razões que só o juiz Moro pode explicar, foi o elo da corrente escolhido para arrebentar em meio a à geleia geral.

E está sendo arrebentado.

O episódio Delcídio aperta o cerco em torno de uma sigla que encontra dificuldade crescente para atuar em três frentes distintas mantendo algum grau convincente de coerência: 1) resistir à caçada conservadora que age por tentativa e erro na determinação de desossar o partido até alcançar a cabeça de sua principal liderança; 2) defender um governo embarcado numa trajetória recessiva que estreita a margem de manobra social do partido e agrava a crise política; 3) reinventar seu espaço e sua mensagem na disputa pelo poder nas eleições municipais de 2016 e nas presidenciais, em 2018.

A determinação de manter um rigoroso regime de autocrítica caso a caso diante do cerco policial-midiático promovido contra o partido tampouco tem se mostrado eficaz.

A solidariedade negada pela direção do PT ao senador Delcídio, por exemplo, gerou protestos de um pedaço da bancada, que acusou o comando petista de levar água ao moinho que tritura os ossos da sigla.

A  luta pela sobrevivência parece ter atingido aquele grau em que medidas incrementais de resgate da coerência e da identidade já não fazem mais efeito diante do tempo que encurta e do cerco que não cede.

A verdade é que todo o sistema partidário brasileiro  funciona hoje como um biombo do poder econômico que através do financiamento de campanha encabrestou direções, abastardou programas, manietou governos e semeou um arquipélago de fidelidades e acordos espúrios, unilaterais às siglas, que despedaçam sem coesão interna.

A desenvolta atuação de bastidores do banqueiro André Esteves, dono do Pactual,  com sugestiva fortuna de US$ 3 bilhões aos 43 anos de idade, ilustra a matéria-prima de que é feita essa retaguarda, onde raízes podres e sadias se entrelaçam.

O dono do Pactual  pagou a viagem de núpcias do amigo Aécio Neves. E prometeu ser tão generoso quanto com a família do delator  Nestor Cerveró –em troca da omissão ao nome do banco na delação premiada do ex-dirigente da Petrobrás.

Da reciprocidade combinada com Aécio não há relatos, tampouco investigações, embora seja presumível.

Estamos diante de uma captura.

Uma captura do sistema político que reflete a determinação mais geral e conhecida de sequestrar todas as instâncias e recursos do aparelho de Estado para servir a interesses que enxergam em figuras como a de André Esteves e assemelhados não apenas a validação do mito do ‘empresário matador’.

Mas o altar da proficiência capitalista, diante do qual as instituições e a sociedade devem inquestionável subordinação.

É essa a pegajosa narrativa martelada pelo jornalismo isento ao incensar figuras carimbadas como Eike, Agnelli (ex-Vale), Esteves, Staub e outros impolutos ícones, não raro flagrados em operações de sonegação e lavagem, como mostra a máfia do Carf.

A inexistência de uma verdadeira isonomia no sistema de comunicação para enfrentar a centralidade desse debate dificulta sobremaneira a tarefa do PT de contextualizar seus erros e repactuar os vínculos com a sociedade.

Transformar essa dificuldade em necrológio é o propósito dos interesses que não cessam de perfurar e purgar o metabolismo do partido para carimbar na sua pele –e na de suas maiores lideranças--  a marca de principal responsável pelo derrocada da economia e da política.

O pesadelo se aproxima perigosamente da fronteira do real.

É cada vez mais palpável o sonho da direita brasileira de matar historicamente o impulso nascido desde as grandes greves operárias do ABC paulista, nos anos 70/80, e que simbolizou a bandeira da luta contra a desigualdade e a injustiça social até os nossos dias.

Cerca de 60 milhões de brasileiros tiveram acesso ao mercado interno e à cidadania graças a esse estirão.

Ele esburacou fortemente a receita secular que permitia às elites revezarem-se no poder, mantendo o povo espremido no acostamento, à espera de caronas que nunca vem.

Recapear esse percurso agora pavimentando uma ampla avenida de regressividade social e política é o motor que move o garrote no pescoço do PT.

Supor que esse enfretamento poderia ter sido evitado por quem ousasse alterar a lógica do capitalismo brasileiro,  é acreditar em fábulas.

Uma das mais  deletérias é essa que hoje se  vende à sociedade na forma de um manual de boas maneiras a seguir para se obter um  desenvolvimento elegante, transparente e equilibrado.

Leia a bula: primeiro, você investe em infraestrutura, então fomenta as exportações, depois, com receitas e contas equilibradas, calibra harmoniosamente a demanda com a oferta prevalecente.

Enquanto isso, a senzala hiberna serena, resignada como num postal de lago suíço.

Quanto tempo?

Os séculos que forem necessários.

Até que os avanços incrementais permitidos pelo mercado produzam a boa sociedade, ancorada na mobilidade das meritocracias perfeitas, tutelada pelos sábios dos mercados não menos virtuosos.

As coisas não acontecem exatamente assim no capitalismo.

No caso brasileiro, a pasta de dente escapou do tubo.

A emergência dos excluídos escancarou a incapacidade do sistema econômico e político para realizar a prometida ascensão disciplinada dos desfavorecidos.

Mãos açodadas tentam devolve-la agora ao frasco, da forma que isso costuma ser feito nas república latino-americanas e com o fair play característico.

Inclua-se nessa determinação de ‘pôr ordem na casa’ jogar no lixo da história tudo e todos que contribuíram para o vazamento precoce e imprevidente.

É aí que entra o ingrediente crucial dedicado a desqualificar, sangra, picar e salgar em praça pública a ferramenta política que favoreceu a heresia: o PT.

Esse é o ponto em que estamos e nele as perguntas reverberam uma urgência de vida ou morte.

Um partido de trabalhadores consegue se despir dos vícios e desvios da política conservadora depois de passar pela experiência do poder no capitalismo?

Consegue sobreviver sem sucumbir aos limites e compromissos inerentes à correlação de forças desfavorável à qual se ajustou?

Pode recuperar o rumo sem o qual descansará sob a lápide dos sonhos perdidos?

Por mais que se martele o oposto, a tragédia do PT consiste justamente no fato de não se tratar aqui de um ‘bando’. Mas de um futuro em disputa.

Fosse o PT apenas aquilo que outras siglas se comprazem em personificar não haveria a tragédia.

Não se trata de dissimular decadência em retórica de heroísmo.

Mas de reafirmar que o PT  tem uma –e só uma-- finalidade na história brasileira.

Servir de instrumento dos interesses sociais amplos, de cuja vértebra nasceu o impulso  que agora  fraqueja.

Quando se mostrar incapaz de renovar esse pacto com a sua origem perderá o seu sentido histórico.

A busca de um chão firme para esse reatamento hoje é a questão crucial sobre a qual dirigentes, intelectuais e núcleos de base devem se debruçar febrilmente.

Com uma ideia  na cabeça uma certeza na ação: ao PT só resta temer o próprio medo de ir além dos limites que o sufocam.

Mais que isso.

É improvável que essa busca tenha êxito se ficar restrita aos limites de uma organização que, como se disse antes, tornou-se uma réplica do sistema político contra o qual terá que se reinventar.

Significa que a repactuação do PT com suas bases terá que nascer de um novo programa para um novo ciclo de lutas, que fatalmente exigirá uma nova estrutura: o partido será uma estaca em um conjunto formado por uma frente ampla de forças progressistas e democráticas da sociedade brasileira.

Nenhuma prioridade é mais importante que esse reatamento feito de depuração, renovação e abertura desassombrada para fora e para dentro.

Na virada recente que culminou com a eleição de uma presidência de esquerda, o Partido Trabalhista inglês oxigenou sua estrutura liberando a inscrição de eleitores, militantes e não militantes, mediante pequena taxa.

A campanha de filiação eleitoral se enraizou nas periferias e trouxe a juventude pobre maciçamente de volta à política: o marxista Jeremy Corbyn foi eleito.

Não é uma tarefa para aqueles que hoje não se reconhecem devedores desse aggiornamento.

Quem não estiver disposto não conta mais como protagonista do partido.

Portas escancaradas servem para quem quiser entrar e quem quiser sair.

Haverá  turbulência. Mas se for dada uma chance ao ar fresco, ele encontrará o caminho para transformar o medo em esperança e a prostração em luta pela democracia social brasileira.

O PRESIDENCIALISMO E A CONSPIRAÇÃO VERMELHA.

Mauro Santayama, em seu blog



  Informações publicadas pelo jornal O Estado de São Paulo, na semana passada, dão conta de que a Procuradoria Geral da República teria enviado ao STF pedido de reversão da decisão do Ministro Teori Zavascki, de afastar da órbita da Operação Lava Jato, ações que não pertencem à sua jurisdição, como a relacionada à Eletronuclear, já encaminhada para o Juiz Marcelo Bretas, da Sétima Vara Federal, no Rio de Janeiro.

O pedido estaria baseado em duas justificativas, a de que “aponta “ação” (sic) de uma “sistemática” (sic) criminosa igual à investigada na Petrobrás” e a de que um esquema único de “compra” de apoio político teria nascido na Casa Civil em 2004, com o objetivo de garantir a governabilidade e a permanência no poder. Para isso, segue o texto, “teriam sido distribuídos cargos em diferentes áreas do governo, gerando uma “máquina” “complexa” e estruturada de desvios para financiar partidos, políticos e campanhas eleitorais.”

Ora, se a questão é a “sistemática” ser igual, todos os crimes de latrocínio, por exemplo, deveriam ser investigados por um mesmo grupo e julgados pelo mesmo magistrado, já que têm uma mesma mecânica e um mesmo resultado.

Um único juiz ficaria responsável por todos os crimes de tráfico de drogas do país; a outro, seriam encaminhadas todas as ações relacionadas a estelionato, e vários inquéritos, envolvendo corrupção e financiamento indireto de candidatos e partidos, como o Mensalão “Mineiro”, o escândalo dos trens de São Paulo, e dezenas de outros, ainda dos tempos das privatizações, nos anos 90, também deveriam ser encaminhados ao Juiz Sérgio Moro, se – como demonstra a sua atuação no Caso Banestado – ele viesse a agir com o mesmo “rigor” e “empenho” com que está agindo agora.       

Neófitos em política – ou exatamente o contrário – os procuradores que encaminham o pedido ao STF (segundo a matéria, “ligados” ao Procurador Geral da República, Sr. Rodrigo Janot); assim como os seus colegas e o juiz que estão envolvidos com a “Operação Lava Jato” tentam, já há tempos,  transformar, aos olhos do país,  em uma sofisticada e acachapante conspiração, o que nada mais é do que o velho Presidencialismo de Coalizão em seu estado puro.

Um sistema com todos os defeitos e eventuais problemas de uma democracia em funcionamento pleno, que se desenvolve – como em qualquer lugar do mundo - na base da negociação de interesses de indivíduos, grupos de pressão, partidos políticos, funcionários públicos de confiança e de carreira e empresas estatais e privadas.

Sem obras – casas, pontes, estradas, refinarias, usinas hidrelétricas, ferrovias, navios, plataformas de petróleo - não há desenvolvimento e  não existem votos.

Desde que o mundo é mundo, e não desde 2004, como quer nos fazer acreditar a Operação Lava Jato, votam-se verbas para obras – aí estão as emendas parlamentares que não nos deixam mentir – indicam-se diretores de estatais, loteiam-se cargos entre partidos aliados, apresentam-se empreiteiras para a sua execução, realizam-se os projetos e as empresas – preventivamente - para evitar ficar de fora das licitações, ou antipatizar-se com gregos e troianos, financiam partidos e candidatos de todas as cores e de todos os matizes, porque não têm como adivinhar quem vai ganhar que eleição, ou qual será a correlação de forças que sobrevirá a cada pleito.

Esse esquema funciona, assim, desde os tempos do Império e da República Velha e se repete nos Estados, com as Assembléias Legislativas, e nos municípios, com os executivos e câmaras municipais, e, se o PT conspirou ou conspira para “manter-se no poder”, na essência e na lógica da atividade política, ele não faz mais do que faria qualquer outro partido;

Ou há alguém que acredite existir agremiação política que tenha como “objetivo” programático o abandono do poder?

Nisso, o PT, e os outros partidos, fazem o que sempre fizeram os chefes tribais, desde que deixamos de ser coletores e caçadores e nos reunimos em comunidades, ou os políticos gregos, ou os imperadores romanos, ou os reis medievais, ou os partidos e forças que antecederam a ascensão do próprio Partido dos Trabalhadores ao Palácio do Planalto, que, para manter-se nele, chegaram até mesmo a mudar o texto da Constituição Federal, para passar no Congresso – em polêmica e questionável manobra - o instituto da reeleição.

A Democracia - e o Presidencialismo de Coalizão, ou o Parlamentarismo, em que muito menos se governa sem negociação e conciliação de interesses - pode ter defeitos, mas ainda é o melhor sistema conhecido de governo.

Tendo, no entanto, problemas – e sempre os terá, em qualquer país do mundo, pois que se trata mais de um processo do que de um modelo acabado - cabe à classe política, que, com todas as suas mazelas, recebeu a unção do voto – todo poder emana do povo e em seu nome será exercido, ou já nos esquecemos disso? – resolvê-los e não ao Ministério Público, ou a um juiz de primeira instância fazê-lo.

E, muito menos, inventar com esse pretexto, uma teoria conspiratória cujo único objetivo parece ser o de garantir que se lhe transfira, a ele e ao seu grupo, cada vez mais poder e força.

Até mesmo porque, como todos os cidadãos, os jovens procuradores da PGR, assim como os da Operação Lava Jato e o juiz responsável por ela, têm, como qualquer brasileiro, suas preferências políticas, simpatias ocultas, idiossincrasias, seu time de futebol do coração, sua confissão religiosa, seu piloto preferido de Fórmula Um.

Afinal, como diz o ditado, o que seria do azul, se todos gostassem do amarelo?

O que não se pode esquecer é que, se quiserem fazer política, devem candidatar-se e ir atrás de votos e de um lugar no Parlamento, e não misturar alhos com bugalhos, ou querer exercer atribuições que não têm, e que não podem ter, nesta República, pois que não lhes foram conferidas por mandato popular.

Deve, portanto, quem está à frente da Operação Lava Jato, limitar-se, sem paixão, parcialidade, vaidade ou messianismo, tecnicamente, ao seu trabalho, que pode ser exercido por quaisquer outros policiais, procuradores ou juízes, em outros  lugares do país, respeitando-se a jurisdição, as regras e os limites impostos à sua atuação, porque nem mesmo a justiça pode se colocar - como muitos parecem ter se esquecido nos últimos tempos - acima da Lei e da Constituição, cujo maior guardião é, como reza o seu próprio nome, o Supremo Tribunal Federal.

Ninguém discute a necessidade de se combater a corrupção, de preferência - como nem sempre tem ocorrido – a de todos os partidos.

Ninguém também vai querer botar a mão no fogo com relação a partidos que, depois de chegar ao poder, deixaram entrar toda espécie de oportunistas, oriundos de outras agremiações, ou nomeados por governos anteriores, que depois fizeram falcatruas no cargo que estavam ocupando. 

Como quase todos os partidos políticos, o PT teve seus acertos e também seus eventuais erros nos últimos anos, e deve enfrentá-los de frente, até mesmo porque a imensa maioria de seus militantes é correta, nacionalista, mão entrou no partido de pára-quedas e não andou por aí prestando "consultorias".  
O que não se pode aceitar é pôr ao alcance de apenas uma pessoa, de um único juiz, um imenso universo de milhares de empresas que realizaram negócios com o governo federal nos últimos anos, em qualquer lugar ou circunstância, colocando automaticamente sob suspeição qualquer pessoa que tiver, em princípio, feito negócios com qualquer uma dessas empresas.

Também não se pode agir, como se partidos de oposição não tenham estado envolvidos, antes e depois de 2004, em alguns dos maiores escândalos de corrupção da história recente, dos mais antigos, como o do Banestado, passando pelos mais simbólicos, como o do Mensalão “Mineiro”, aos mais novos, como o do Trensalão Paulista – cujo inquérito está completando seu primeiro aniversário na gaveta do Ministério Público de São Paulo - todos abafados, ou conduzidos de forma a prescreverem, ou não se punirem os seus principais envolvidos, não lhes acarretando - por parte da justiça, ou da mídia, até agora - quase que nenhuma conseqüência.

Também não se pode acreditar que só o governo federal possa corromper, porque, como explicam os que acreditam nessa fantasiosa teoria conspiratória, é a União que teria a "caneta".

Como, se, por acaso, a oposição também não tivesse a sua, em alguns dos principais estados e municípios do país, como é o caso, emblemático, de São Paulo, unidade da Federação na qual arrecada – e administra - aproximadamente 150 bilhões de reais por ano em impostos, há mais de duas décadas.

Não podemos agir como se a corrupção, no Brasil, tivesse sido inaugurada com o estabelecimento de uma espécie de Protocolo dos Sábios do Sião, do PT, ao urdirem uma conspiração nordestino-bolchevista internacional, com estreitas ligações com o "bolivarianismo", e o "perigosíssimo" Foro de São Paulo, para dominar a América Latina, e, quem sabe - como o "Pink" e o "Cérebro" do desenho animado - o mundo.

Uma conspiração “comunista” que passou o país da décima-terceira economia do mundo, em 2002, para a oitava maior, agora; que pagou, rigorosamente, sem contestar, toda a dívida que tínhamos com o FMI; que emprestou generosamente – e por isso também tem sido acusada – dinheiro do BNDES para empresas privadas, não apenas nacionais, mas também multinacionais; que acumulou mais de 370 bilhões de dólares em reservas internacionais, aplicando-as majoritariamente em títulos do seu, teoricamente, arqui-inimigo,  Estados Unidos da América do Norte; que deu aos bancos alguns dos maiores lucros de sua história; que praticamente duplicou a porcentagem de crédito na economia; e diminuiu a dívida líquida pública pela metade nos últimos 13 anos.          

Como se, anteriormente, partidos não negociassem alianças e coligações, nem as financiassem, como fez o PT, no caso da Ação 470, ajudado em um empréstimo, pago, depois, a um banco, obtido pelo Sr. Marcos Valério, que, claro, para o Ministério Público, ao que parece, é como se nunca tivesse trabalhado para o PSDB antes.

Como se os 12 Sábios do Sião do PT, reunidos, bebendo cachaça, em algum boteco do ABC, tivessem resolvido, inédita e insidiosamente, em certo encontro secreto, primitivo e clandestino, corromper a pobre classe política nacional - tão ingênua e impoluta como um bando de carneiros - e também o empresariado brasileiro.

Como se, anteriormente, nenhuma empreiteira fizesse doação de campanha, ninguém fosse a Brasília para conseguir obras, não existisse lobby nem Caixa 2, políticos e ex-políticos não prestassem “consultorias” a empresas particulares, e nem se montasse a  negociação de partidos para aprovação de medidas provisórias, ou de emendas, como, por exemplo, lembramos mais uma vez, a da reeleição do Sr. Fernando Henrique Cardoso.

E a Nação dormisse, inocente e serena, sonhando com flores e passarinhos em berço esplêndido, e tivesse sido despertada violentamente, de repente, por um emissário do inferno, vermelho e barbudo como o diabo, que chegou do Nordeste de pau de arara, para acabar com o seu sono e conspurcar-lhe, covarde e impiedoso, a virginal moralidade que ostentava antes.

Finalmente, se formos nos deixar dominar pela imaginação e pelo delírio conspiratório, qualquer um poderá pensar e afirmar o que quiser.

Até mesmo que pode haver, mesmo, uma conspiração em curso.

Mas não para entregar o Brasil ao PT ou ao comunismo.

Mas para derrubar, usando como biombo uma campanha  anticorrupção pseudo moralista, seletiva,  dirigida e  paranoica, um governo legitimamente eleito há pouco mais de um ano.

Trabalhando deliberadamente para chegar, de qualquer forma, e o mais depressa possível, à Presidente da República, na tentativa de tirá-la do Palácio do Planalto da forma que for possível, com um jogo escalado e proposital de prisões sucessivas e de “delações”.


Uma espécie de “corrente” no qual uma pessoa é presa – seja por qual motivo for (na falta de provas, muitos podem imaginar que se estejam produzindo “armadilhas”, suposições, ilações, combinações) e delata outra, que também é presa e passa a participar, obrigatoriamente, da trama, delatando também o próximo da “fila” – ou o novo degrau de uma escada que até mesmo no exterior já se imagina aonde vai chegar - sob pena, caso se recuse, de permanecer anos e anos na cadeia sem nenhuma garantia ou perspectiva real de proteção por parte do direito ou da justiça, enquanto bandidos apanhados com contas de milhões de dólares no exterior vão sendo, paulatina e paradoxalmente, soltos.      

Tim Vickery: Minha primeira geladeira e por que o Brasil de hoje lembra a Inglaterra dos anos 60

Texto de Tim Vickery, da BBC. Transcrito do Conversa Afiada Oficial 

Acho que nasci com alguma parte virada para a lua. Chegar ao mundo na Inglaterra em 1965 foi um golpe e tanto de sorte. Que momento! The Rolling Stones cantavam I Can’t Get no Satisfaction, mas a minha trilha sonora estava mais para uma música do The Who, Anyway, Anyhow, Anywhere.


Na minha infância, nossa família nunca teve carro ou telefone, e lembro a vida sem geladeira, televisão ou máquina de lavar. Mas eram apenas limitações, e não o medo e a pobreza que marcaram o início da vida dos meus pais.

Tive saúde e escolas dignas e de graça, um bairro novo e verde nos arredores de Londres, um apartamento com aluguel a preço popular – tudo fornecido pelo Estado. E tive oportunidades inéditas. Fui o primeiro da minha família a fazer faculdade, uma possibilidade além dos horizontes de gerações anteriores. E não era de graça. Melhor ainda, o Estado me bancava.

Olhando para trás, fica fácil identificar esse período como uma época de ouro. O curioso é que, quando lemos os jornais dessa época, a impressão é outra. Crise aqui, crise lá, turbulência econômica, política e de relações exteriores. Talvez isso revele um pouco a natureza do jornalismo, sempre procurando mazelas. É preciso dar um passo para trás das manchetes para ganhar perspectiva.

Será que, em parte, isso também se aplica ao Brasil de 2015?

Não tenho dúvidas de que o país é hoje melhor do que quando cheguei aqui, 21 anos atrás. A estabilidade relativa da moeda, o acesso ao crédito, a ampliação das oportunidades e as manchetes de crise – tudo me faz lembrar um pouco da Inglaterra da minha infância.

Por lá, a arquitetura das novas oportunidades foi construída pelo governo do Partido Trabalhista nos anos depois da Segunda Guerra (1945-55). E o Partido Conservador governou nos primeiros anos da expansão do consumo popular (1955-64). Eles contavam com um primeiro-ministro hábil e carismático, Harold Macmillan, que, em 1957, inventou a frase emblemática da época: "nunca foi tão bom para você" ("you’ve never had it so good", em inglês).

É a versão britânica do "nunca antes na história desse país". Impressionante, por sinal, como o discurso de Macmillan trazia quase as mesmas palavras, comemorando um "estado de prosperidade como nunca tivemos na história deste país" ("a state of prosperity such as we have never had in the history of this country", em inglês).

Macmillan, "Supermac" na mídia, era inteligente o suficiente para saber que uma ação gera uma reação. Sentia na pele que setores da classe média, base de apoio principal de seu partido, ficaram incomodados com a ascensão popular.

Em 1958, em meio a greves e negociações com os sindicatos, notou "a raiva da classe média" e temeu uma "luta de classes". Quatro anos mais tarde, com o seu partido indo mal nas pesquisas, ele interpretou o desempenho como resultado da "revolta da classe média e da classe média baixa", que se ressentiam da intensa melhora das condições de vida dos mais pobres ou da chamada "classe trabalhadora" ("working class", em inglês) na Inglaterra.

Em outras palavras, parte da crise política que ele enfrentava foi vista como um protesto contra o próprio progresso que o país tinha alcançado entre os mais pobres.

Mais uma vez, eu faço a pergunta – será que isso também se aplica ao Brasil de 2015?

Alguns anos atrás, encontrei um conterrâneo em uma pousada no litoral carioca. Ele, já senhor de idade, trabalhava como corretor da bolsa de valores. Me contou que saiu da Inglaterra no início da década de 70, revoltado porque a classe operária estava ganhando demais.

No Brasil semifeudal, achou o seu paraíso. Cortei a conversa, com vontade de vomitar. Como ele podia achar que suas atividades valessem mais do que as de trabalhadores em setores menos "nobres"? Me despedi do elemento com a mesquinha esperança de que um assalto pudesse mudar sua maneira de pensar a distribuição de renda.

Mais tarde, de cabeça fria, tentei entender. Ele crescera em uma ordem social que estava sendo ameaçada, e fugiu para um lugar onde as suas ultrapassadas certezas continuavam intactas.

Agora, não preciso nem fazer a pergunta. Posso fazer uma afirmação. Essa história se aplica perfeitamente ao Brasil de 2015. Tem muita gente por aqui com sentimentos parecidos. No fim das contas, estamos falando de uma sociedade com uma noção muito enraizada de hierarquia, onde, de uma maneira ainda leve e superficial, a ordem social está passando por transformações. Óbvio que isso vai gerar uma reação.

No cenário atual, sobram motivos para protestar. Um Estado ineficiente, um modelo econômico míope sofrendo desgaste, burocracia insana, corrupção generalizada, incentivada por um sistema político onde governabilidade se negocia.

A revolta contra tudo isso se sente na onda de protestos. Mas tem um outro fator muito mais nocivo que inegavelmente também faz parte dos protestos: uma reação contra o progresso popular. Há vozes estridentes incomodadas com o fato de que, agora, tem que dividir certos espaços (aeroportos, faculdades) com pessoas de origem mais humilde. Firme e forte é a mentalidade do: "de que adianta ir a Paris para cruzar com o meu porteiro?".

Harold Macmillan, décadas atrás, teve que administrar o mesmo sentimento elitista de seus seguidores. Mas, apesar das manchetes alarmistas da época, foi mais fácil para ele. Há mais riscos e volatilidade neste lado do Atlântico. Uma crise prolongada ameaça, inclusive, anular algumas das conquistas dos últimos anos. Consumo não é tudo, mas tem seu valor. Sei por experiência própria que a primeira geladeira a gente nunca esquece.

*Tim Vickery é colunista da BBC Brasil e formado em História e Política pela Universidade de Warwick

domingo, 29 de novembro de 2015

O Quarto Poder - Uma outra história de Paulo Henrique Amorim

https://youtu.be/a2bCUQVgRmc

A mão de Deus andou acariciando o Brasil

https://youtu.be/BNXzeiIIKCU

Dieese, 60 anos. Conhecimento a serviço dos trabalhadores

trabalho

Dieese, criado por sindicatos desconfiados dos índices oficiais, tornou-se caso único de convivência entre diferentes visões políticas. E ferramenta de pesquisa do movimento sindical para a sociedade
por Por Vitor Nuzzi publicado 28/11/2015 11:10, última modificação 28/11/2015 11:12
A NOITE, 06/07/1951. ARQUIVO DO ESTADO DE SÃO PAULO
a_noite_06_07_1951_Arquivo_do_Estado_de_Sao_Paulo.jpg
Greves dos bancários, têxteis, gráficos, marceneiros e metalúrgicos, entre 1951 e 1954, levaram à constatação: sindicatos precisavam de números confiáveis para negociar
Em 18 de setembro, um grupo de 24 alunos recebeu o certificado de conclusão de curso superior em Ciências do Trabalho. Era a formatura da primeira turma organizada pelo Dieese, iniciada em 2012, completando um percurso histórico de 60 anos. O Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socieconômicos foi criado em dezembro de 1955 com a ideia, entre outras, de ser um centro de estudos e formação, aproximando-se da academia, mas tendo como base o mundo do trabalho. Completadas seis décadas, o instituto consolidou-se no cenário econômico como referência de análise. Para isso, teve de superar obstáculos políticos e financeiros. A convivência entre técnicos e dirigentes sindicais teve momentos ásperos, mas o Dieese conseguiu equilibrar-se entre o rigor científico e o atendimento a demandas, cada vez mais complexas, dos sindicatos.
Paraninfa da turma, a socióloga Heloísa Helena de Souza Martins, diretora técnica do Dieese de 1966 a 1968, falou aos formandos sobre a conjuntura em que o instituto foi criado: “Explicar os dilemas de uma sociedade envolvida com o projeto desenvolvimentista com ênfase no processo de industrialização era o desafio dos intelectuais e pesquisadores comprometidos com a ideia da superação das desigualdades e injustiças sociais”. E destacou a figura do primeiro diretor, José Albertino Rodrigues, que alimentava uma utopia socialista, mas também defendia a necessidade de uma “compreensão científica da realidade brasileira”.
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Durante os anos de hiperinflação, e índices manipulados pelo governo, o Dieese fez a diferença
“Ouça o que eles (sindicalistas) falam, observe o comportamento”, foram recomendações que a socióloga Heloísa, indicada a Albertino pelo professor Azis Simão, recebeu ao chegar ao Dieese, “o primeiro que levou a discussão do sindicalismo para a universidade”. E lembra de uma conversa com Azis: se a universitária queria estudar o movimento sindical, deveria aproveitar a oportunidade para conhecê-lo “por dentro”, conviver com as questões do dia a dia. “Pude compreender, então, que antes de se constituírem como problemas teóricos, eram problemas sociais”, disse a paraninfa aos formandos.
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Lenina Pomeranz: 'A gente tinha muito apoio do núcleo duro'
Ela chegou para ajudar a calcular o Índice do Custo de Vida (ICV) na cidade de São Paulo. Eram duas pessoas para fazer coleta de preços em feiras livres e centros comerciais. Professora doutora aposentada e colaboradora na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (USP), Heloísa observa que desde o começo Albertino enfatizava a importância da objetividade e do critério científico. O instituto deveria produzir conhecimento para sustentar a prática.

Desmascarar

A inflação também está na gênese da criação do Dieese. Era tempo de grandes greves e negociações, e os sindicalistas desconfiavam do índice oficial, na época calculado pela prefeitura paulistana. Fundador do instituto, o dirigente bancário Salvador Losacco contou – em depoimento de 1987 ao pesquisador Miguel Chaia – que a ideia era formar um organismo que estudasse e calculasse o custo de vida, inclusive para “desmascarar” o índice oficial.
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Heloísa Martins recorda de momentos tensos, quando chegou a ouvir de um dirigente: 'Não vim aqui para ter aulinha de estatística. Quero discutir o nosso reajuste'
As primeiras conversas nesse sentido surgiram no Pacto de Unidade Intersindical (PUI), formado nos anos 1950. “O Dieese é fruto desse pacto”, diz o sociólogo Fausto Augusto Júnior, autor de uma dissertação de mestrado, em 2010, para a Faculdade de Educação da USP, justamente sobre o ICV como “produção de conhecimento” entre 1955 e 1964. Primeiro, houve uma apropriação do conhecimento produzido pela ciência histórica. E a aproximação entre intelectuais e sindicalistas avançou à medida que o ICV adquiriu solidez.
“A ideia de ‘perda salarial’ e ‘reajuste necessário’ contribuiu para se revelar o constante arrocho salarial sofrido pelos trabalhadores, transformando assim o ICV/Dieese em instrumento de denúncia e bandeira de luta política contra a carestia”, escreve Fausto na dissertação. Ao analisar os boletins daquele período de dez anos (1955/1964), o técnico – que hoje atua na subseção do Dieese no Sindicato dos Metalúrgicos do ABC – nota as tentativas de “fazer a migração de um texto acadêmico para o sindical”.
Assim, o instituto foi conquistando campos de negociação, observa Fausto. E atuando em diversas frentes. Enquanto isso, muitos dirigentes sindicais tornaram-se gestores públicos. “Isso demanda mais conhecimento.”
A economista Lenina Pomeranz, professora na Faculdade de Economia e Administração da USP, lembra dos primeiros tempos, em uma sala “grande, mas escura” e com uma máquina Olivetti chamada de “jacaré, muito barulhenta e grandona”. Além do ICV, o Dieese começou a organizar um fichário de empresas, analisando os balanços que saíam nos jornais, o que representava um subsídio a mais na mesa de negociação. Apesar de alguma incompreensão por parte dos sindicalistas em relação à importância da estatística, Lenina avalia que a relação com os dirigentes era de intercâmbio e confiança. “A gente tinha muito apoio do núcleo duro.” Diretora técnica a partir de 1962, no lugar de Albertino, ela saiu em setembro do ano seguinte, para fazer um curso na Polônia. Só voltaria em 1967.
Heloísa Martins recorda momentos mais tensos, como em uma reunião sobre política salarial em que um dirigente lhe disse: “Não vim aqui para ter aulinha de estatística. Quero discutir o nosso reajuste”. Ou quando convocou uma reunião para um domingo de manhã, incluindo trabalhadores da base, em São Paulo. “Técnico não fala com trabalhador, fala com dirigente. Nós falamos com trabalhador”, ouviu. Também não era incomum reclamarem do índice de inflação apurado, argumentando que determinado produto estava aumentando muito de preço.
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Walter Barelli: 'Tem uma coisa que ninguém tira do Dieese, que é a característica técnico-científica'

Científico

A ata de fundação do Dieese foi assinada às 20h30 de 22 de dezembro de 1955 por 19 entidades, no sétimo andar do Edifício Martinelli, centro de São Paulo, prédio onde ficava a sede do Sindicato dos Bancários – e para onde a entidade voltou em 1993. Teve dezenas de presidentes, mas apenas seis diretores técnicos. Entre eles, ninguém permaneceu mais tempo do que o economista Walter Barelli, cujo nome se confunde com a instituição. “Tem uma coisa que ninguém tira do Dieese, que é a característica técnico-científica”, diz Barelli, que permaneceu 22 anos à frente da direção técnica, de 1968 a 1990. Formado em Economia na USP em 1964, ele não teve formatura, porque a cerimônia ocorreria justamente no dia do golpe e havia um carro de combate diante da faculdade – ele seria o orador.
Essa conduta técnica às vezes provocava queixas. Convidado por Heloísa para trabalhar no instituto, Barelli lembra que muitas vezes o índice de inflação calculado pelo Dieese era inferior ao oficial. “E era dureza falar para o dirigente sindical. Você tem de ser fiel à metodologia.” No final dos anos 1950, conta, o ICV passou a ter três faixas, conforme a renda familiar, padrão mantido até hoje.
Diretor técnico de 1990 a 2003, o economista Sérgio Mendonça também testemunhou algumas crises internas por causa do resultado das análises feitas pelo instituto. Como no Plano Cruzado, em 1986, quando o Dieese apontou aspectos negativos e positivos e recebeu críticas dos sindicalistas, principalmente da CUT, mas também da então CGT. Dizer que o Plano Real, lançado em 1994, seria duradouro “incomodou muita gente”, lembra Sérgio.
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Sérgio Mendonça: 'A grande escola é o trabalho coletivo'
“Havia um movimento mundial de estabilização das economias. Não era muita novidade imaginar que o Brasil também se estabilizaria, como aconteceu.” Também houve algum atrito quando algumas entidades resolveram criar seus próprios departamentos econômicos. “Acho que hoje essa tensão está superada”, avalia o ex-diretor, atualmente secretário de Relações de Trabalho do Ministério do Planejamento.

Diversidade

A recomendação para os técnicos sempre foi a de não externar posições políticas. Já a direção sindical procurou blindar o instituto de posições partidárias. Dirigente pré-1964, Luiz Tenório de Lima, o Tenorinho, integrante do Comando Geral dos Trabalhadores (CGT), atestou essa preocupação em depoimento ao próprio Dieese, dez anos atrás. “Nunca aceitamos – inclusive eu não aceitei, mesmo como dirigente do Partido Comunista, reagi e não permiti, como outros companheiros não permitiram – que um partido comunista instrumentalizasse o Dieese, fizesse dele, vamos dizer assim, um trampolim político para certas ocasiões. Nós nunca fizemos isso para garantir a unidade daqueles que vinham com o Dieese.”
Barelli também se recorda de uma recomendação feita por Albertino: “Não deixe os dirigentes sindicais perceberem qual é a sua tendência política, senão eles perdem o respeito”.
Autor do livro Intelectuais e Sindicalistas – A Experiência do Dieese, Miguel Chaia afirma na obra que o instituto nasceu de uma consciência operária: só os trabalhadores poderiam promover o conhecimento de sua situação. “Escudando-se no binômio ciência-trabalho, cria sua própria natureza e evita confrontos ideológicos e partidários, quando referentes à diversidade da classe trabalhadora”, escreveu. O pesquisador lembra ainda que a conquista da legitimidade tornou o Dieese referência não apenas para o mundo sindical, mas para vários setores da sociedade.
Com turbulências, o departamento conseguiu estabelecer uma relação de equilíbrio entre as diversas forças políticas que o sustentam. O atual diretor técnico, Clemente Ganz Lúcio, no cargo desde 2003, diz que há clareza sobre o papel do instituto: “O propósito da instituição é ser uma assessoria técnica. Nossa posição tem uma influência, mas não é deliberativa. Há um esforço de ser sempre muito transparente, mostrar a metodologia”. Além disso, existe um acordo político para que as disputas sindicais não se reflitam no Dieese.
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Formatura da primeira turma do curso superior de Ciências do Trabalho: instituto pensado para produzir conhecimento
Um conselho formado por oito centrais sindicais, com três representantes de cada, ajusta a dar essa sustentação e tornar o departamento uma espécie de território neutro. “Acho que isso mostrou a importância do Dieese e o papel que desempenha no movimento sindical. Facilitou o diálogo com as centrais”, afirma a presidenta do instituto, Zenaide Honório, diretora do Sindicato dos Professores do Ensino Oficial do Estado de São Paulo (Apeoesp).
A presidência é ocupada em sistema de rodízio: a cada mandato – o atual vai até 31 de janeiro de 2017 –, revezam-se dirigentes da CUT e da Força Sindical. Em termos históricos, pode-se dizer que de alguma maneira essa alternância ocorreu desde o princípio: Salvador Losacco (Bancários de São Paulo) foi o primeiro presidente e Remo Forli (Metalúrgicos de São Paulo), o sucessor.

Sobrevivência

Se a questão política foi relativamente resolvida, a financeira continua sendo um problema. Barelli se refere a um “padrão Dieese” de resistência a crises. “O Dieese sempre viveu com dificuldades financeiras”, diz Sérgio Mendonça, que nos anos 1990 passou por um período doloroso, com corte de áreas e demissões. “Estou aqui há mais de 30 anos. Não tem tempo fácil”, acrescenta Clemente. “O Dieese tem um equilíbrio de longo prazo, operado por um desequilíbrio recorrente permanente. O nosso grande problema é o padrão de financiamento de curto e médio prazo.”

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Zenaide Honório destaca o papel do conselho formado pelas centrais: 'Acho que mostrou a importância do Dieese e o papel que desempenha no movimento sindical'
As receitas do Dieese vêm das entidades filiadas e de convênios com órgãos públicos, como o que mantém a Pesquisa de Emprego e Desemprego (PED), um dos vários estudos permanentes do instituto, junto com o que apura o custo da cesta básica, o poder real de compra do salário mínimo e o comportamento das negociações salariais. A relação varia – este ano, 60% da receita deve vir do movimento sindical. O momento econômico difícil causa preocupação. “Vamos trabalhar para atravessar essa crise sem tormentas”, diz Zenaide. Durante a ditadura, houve uma tentativa do governo de sufocar financeiramente o Dieese. Segundo Barelli, o ministro Julio Barata (à frente da Pasta do Trabalho no pós AI-5) reuniu os delegados regionais e determinou que os sindicatos não podiam contribuir para o instituto – na época, a contabilidade das entidades tinha de ser aprovada pelo Ministério do Trabalho. Os sindicalistas conseguiram driblar a medida. Chaia anota, em seu livro, que nos anos 1970 um sindicalista ligado à Arena (partido da ditadura), Orlando Malvezi, foi eleito deliberadamente para a presidência “como tática para evitar as crescentes pressões contra a instituição e os ataques contra os técnicos”.
Até hoje, o instituto não tem sede própria. A atual, no centro de São Paulo, pertence ao poder público. A estrutura compreende 64 subseções – escritórios atuantes em entidades sindicais – em nove estados, 18 escritórios regionais e 342 funcionários, sendo aproximadamente 200 técnicos, dos quais 150 economistas.
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Clemente Ganz Lúcio: 'Há um esforço de ser sempre muito transparente, mostrar a metodologia'

“A grande escola do Dieese é trabalhar técnica e coletivamente”, define Sérgio Mendonça. “É uma escola de formação. A gente aprendeu a trabalhar para a classe trabalhadora.” Com o tempo, a pauta também se ampliou, observa o economista. “Nos anos 50, 60, quando o inimigo da classe trabalhadora era a inflação, o Dieese atuava quase monotematicamente. Hoje é uma agenda voltada para as políticas públicas. É uma sociedade bem mais complexa.”
As demandas contemporâneas levaram à criação da escola do Dieese, um sonho antigo. “É um campo de conhecimento não clássico, mas interdisciplinar, trazendo o escopo de produção do Dieese”, diz Clemente. Com isso, também se combate uma visão de que o trabalho é um simples recurso, um insumo, desconsiderando o fator humano. “O conflito básico (as relações capital-trabalho) não é mais objeto de atenção.” Para ele, isso se reflete na academia tradicional, que já teria dedicado mais espaço ao estudo desse universo.
Consciência a partir da realidade

Um episódio que deu visibilidade – e credibilidade – ao Dieese aconteceu no segundo semestre de 1977. Na edição de 31 de julho, o jornal Folha de S.Paulo publicou um relatório do Banco Mundial, revelando que o índice oficial de inflação no Brasil em 1973 (perto de 15%) não era válido – os preços no atacado teriam variado, na verdade, 22,5%. O indicador que mais se aproximava da realidade era o do Dieese (26,7%). Imediatamente suspeitou-se de manipulação. O ministro da Fazenda na época era Delfim Netto.No dia seguinte ao da publicação da reportagem, uma segunda-feira, Barelli conta que recebeu dois telefonemas: dos presidentes do Sindicato dos Bancários de São Paulo (Francisco Teixeira) e do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo e Diadema (atual ABC), Luiz Inácio da Silva, o Lula. Queriam que o Dieese calculasse as perdas causadas pelo fato de o índice oficial ter subestimado a inflação. “Choveu pedido do país inteiro. Foi importante para criar um fator mobilizador para o movimento sindical.” Aquele fato impulsionaria as campanhas salariais do ano seguinte.Dias depois de divulgado o relatório, o ministro Mário Henrique Simonsen foi à Câmara dos Deputados falar do assunto. Em setembro, ele e seu colega do Planejamento, Reis Velloso, se reuniram com sindicalistas. O empresário Herbert Levy, filiado à Arena e na ocasião dono do jornal Gazeta Mercantil, chegou a comentar que “o tal do Dieese” é que estava certo. Para Barelli, o instituto ajudou a criar “uma consciência de perdas, de espoliação, usando os dados da realidade”.Em 1990, o Dieese viveu outro confronto, já no governo Fernando Collor. O então porta-voz da Presidência da República, Cláudio Humberto, questionou cálculos do Dieese sobre a inflação, tentando desqualificar o instituto ao lembrar que Barelli, então licenciado, trabalhava na assessoria econômica do candidato Lula. A ilação provocou uma reação indignada do economista: “O movimento sindical tem a sabedoria de nunca pedir para que o Dieese manipule. A classe operária é muito mais digna do que os governantes

O mito interesseiro da "autorregulação"

Por George Monbiot, no site Outras Palavras: extraído do blog do Miro.
O que os governos aprenderam com a crise financeira? Eu poderia escrever uma coluna falando sobre isso. Ou poderia explicar com uma única palavra: nada.

Na verdade, nada é muito generoso. As lições aprendidas são contra-lições, anticonhecimento, novas políticas que dificilmente poderiam ser melhor concebidas para assegurar a recorrência da crise, dessa vez com acréscimo de impulso e menos remédios. E a crise financeira é apenas uma das múltiplas crises – de arrecadação, gasto público, saúde pública e, acima de todas, ecológica – que as mesmas contra-lições fazem acelerar.

Volte um pouco atrás e você verá que todas essas crises têm origem na mesma causa. Atores com grande poder e alcance global são liberados do império das leis. Isso acontece devido à corrupção fundamental no núcleo da política. Em quase todas as nações, os interesses das elites econômicas tendem a pesar mais na balança dos governos do que os interesses do eleitorado. Bancos, corporações e proprietários de terras exercem um poder enigmático, operando silenciosamente entre os membros da classe política. A governança global está se tornando algo semelhante a uma reunião infinita do Clube de Bilderberg [1].

O professor de direito Joel Bakan, num artigo no Cornell International Law Journal, argumenta que dois movimentos alarmantes estão acontecendo simultaneamente. De um lado, os governos vêm revogando leis que restringem a ação de bancos e corporações, sob o argumento de que a globalização enfraquece os Estados, tornando impossível uma legislação efetiva. Como alternativa, eles dizem, nós devemos confiar na autorregulação daqueles que exercem o poder econômico.
Por outro lado, os mesmos governos concebem novas leis draconianas para fortalecer o poder da elite. Às corporações são dados os direitos de pessoas físicas. Seus direitos de propriedade são reforçados. Aqueles que protestam contra elas estão sujeitos ao controle e à vigilância policial. Ah, o poder do Estado continua muito bem a existir – quando é conveniente…

Muitos de vocês já terão ouvido falar sobre a Parceria Transpacífica (TPP) e da proposta da Parceria Transatlântica de Comércio e Investimento (TTIP). São, supostamente, acordos de comércio – mas pouco têm a ver com comércio e, sim, com poder. Ampliam o poder das corporações, enquanto reduzem o poder dos parlamentos e do Estado de Direito. Tais acordos não poderiam ser melhor concebidos para exacerbar e universalizar nossas múltiplas crises – financeira, social e ambiental. Mas algo ainda pior está por vir, o resultado de negociações conduzidas, mais uma vez, em segredo: um Acordo sobre o Comércio de Serviços (TiSA), cobrindo a América do Norte, a União Europeia, Japão, Austrália e muitas outras nações.

Apenas através do Wikileaks temos alguma ideia do que está sendo planejado. Este acordo poderia ser usado para forçar nações a aceitar novos produtos e serviços financeiros, a aprovar a privatização de serviços públicos e a reduzir os padrões de precaução e provisão. Esta parece ser a maior agressão à democracia arquitetada nas últimas duas décadas. O que significa muito.

O Estado, em sua autoflagelação, proclama que não tem mais poder. Ao mesmo tempo, aniquila sua própria capacidade de legislar – doméstica e internacionalmente. Como se a última crise financeira não tivesse ocorrido, e como se não estivesse ciente de sua causa, o ministro das Finanças britânico, George Osborne, em seu mais recente discurso na Prefeitura de Londres, disse à sua plateia de banqueiros que “a principal exigência na nossa renegociação é que a Europa interrompa a regulação onerosa e prejudicial”. O primeiro-ministro David Cameron vangloriou-se de comandar “o primeiro governo na história moderna que, ao fim de sua legislatura, possui menos regulações em prática do que havia no começo”.

Isso, num mundo de crescente complexidade e onde crescem os crimes corporativos, é pura imprudência. Mas não tenha medo, eles dizem: o poder econômico não precisa se sujeitar ao Estado de Direito. Ele consegue se regular por si próprio.

Alguns de nós há tempos suspeitamos que isso seja uma grande tolice. Mas, até agora, a suspeita era tudo que tínhamos. Esta semana foi publicada o primeiro estudo global sobre autorregulação. Tal estudo foi encomendado pela Britain’s Royal Society for the Protection of Birds [2], mas se estende a todos os setores, desde agentes de pequenos empréstimos até criadores de cães. E ele mostra que em quase todos os casos – 82% dos 161 projetos avaliados, medidas voluntárias fracassaram.

Por exemplo, quando a União Europeia buscou reduzir o número de pedestres e ciclistas mortos por veículos, a instituição poderia ter simplesmente votado uma lei instruindo os fabricantes de automóveis a mudar o design dos para-choques e capôs, a um custo aproximado de€30 por carro. Ao invés disso, confiou-se num acordo voluntário com a indústria. O resultado foi um nível de proteção 75% menor do que uma lei teria induzido.

Quando o governo do País de Gales introduziu uma cobrança de 5 centavos para sacolas plásticas, o seu uso foi reduzido em 80% de um dia para outro. O governo inglês afirmou que a autorregulação por parte dos varejistas apresentaria o mesmo efeito. O resultado? Uma grande redução de… 6%. Depois de sete anos desperdiçados, o governo sucumbiu à lógica óbvia e introduziu a cobrança.

Projetos voluntários para coibir a publicidade de junk food para crianças na Espanha, para reduzir a emissão de gases causadores do efeito estufa no Canadá, para economia de água na California, para salvar albatrozes dos barcos de pesca na Nova Zelândia, para a proteção de pacientes de cirurgias plásticas no Reino Unido, para impedir o marketing agressivo de remédios psiquiátricos na Suécia: apenas fracassos. O que o Estado poderia ter feito com uma simples canetada, com baixo custo e de maneira eficiente é deixado de lado em prol de ações desastradas das indústrias que, mesmo quando sinceras, são minadas por aproveitadores e oportunistas.

Em diversos casos, as empresas imploraram por novas leis que elevassem os padrões na indústria. Por exemplo, aqueles que produzem embalagens plásticas para silagem para fazendeiros tentaram fazer com que o governo do Reino Unido elevasse a taxa de reciclagem. Empresas de jardinagem queriam regulamentações para eliminar gradualmente o uso de turfa. Os governos recusaram. Teria sido o resultado de ideologia cega ou escusos interesses próprios – ou ambos? Os maiores doadores de partidos políticos tendem a ser os piores empresários, usando seu dinheiro para manter as más práticas legais (vide o caso Enron).

Como os partidos que eles financiam se curvam aos seus desejos, todos são forçados a adotar seus baixos padrões. Suspeito que os governos, assim como qualquer um, sabem que a legislação é mais eficiente e eficaz que a autorregulação e que por isso mesmo não a empregue.

Imobilizar o eleitorado, liberar os poderosos: essa é a fórmula perfeita para uma crise multidimensional. E nós estamos colhendo seus frutos.

Notas:

1 - N. T.: As reuniões do Clube de Bilderberg acontecem anualmente com o objetivo de fomentar os diálogos entre EUA e Europa. A conferência conta com a presença de líderes políticos, acadêmicos, empresários discutindo informalmente tendências globais. A lista dos participantes é divulgada, mas ninguém tem acesso ao conteúdo da conferência. Ver mais em: http://ow.ly/V5rzK.

2 - N. T.: Sociedade Real Britânica de Proteção dos Pássaros.
* Tradução de Gabriel Filippo Simões.

O parlamentar e o banqueiro

Da Folha de São Paulo

Janio de Freitas

Apesar de menos escandalosa, a prisão do banqueiro André Esteves é tão ou mais importante, em vários aspectos, do que a prisão do senador Delcídio do Amaral. Até agora, as empreiteiras e um ou outro fornecedor da Petrobras compunham a imagem dos grandes patrocinadores da corrupção. A entrada em cena de um poderoso banqueiro necessitado de silenciar um delator não é a "ponta de um iceberg": é um grão no terreno arenoso da corrupção brasileira em sua verdadeira extensão.
As relações capitalistas adotam predominantemente, no Brasil, procedimentos à margem da lei e da ética. Qualquer que seja o setor de atividade, é inexpressiva a parcela que não se vale, com permanência, de vantagens ilegais. A verdade mais brasileira é que são práticas comuns a sonegação, a fraude, caixa dois, adulterações, produtos irregulares, e a corrupção com subornos que evitam fiscalizações e apagam multas, ou, no outro extremo, asseguram negócios, preços assaltantes e contratações ilícitas.
No setor financeiro, as manobras irregulares de especulação são o mais regular. Agora mesmo começa a despontar um caso gravíssimo de manobras cambiais de bancos dos Estados Unidos, ou sobretudo destes, inclusive com a moeda brasileira. O Banco Central tem muito a dizer a respeito, e o dever de dizê-lo, mas faz papel de espectador desinteressado. Trata-se, no entanto, de corrupção em altos bilhões.
A menção a André Esteves na reunião com Delcídio do Amaral, para salvarem-se ambos do perigo personificado por Nestor Cerveró, é só um flash das relações capitalistas no Brasil. Personagem de prestígio aqui e no exterior, André Esteves é conhecido também como abastecedor financeiro de alguns políticos, não só em campanhas eleitorais. O poder político é um dos seus negócios.
O pasmo causado pelo novo passo da Lava Jato não decorreu da prisão, sem precedentes, de um senador em exercício do mandato. Estão no Senado outras presenças a atestar que não há motivo para tamanho estarrecimento com a busca de um senador pela Polícia Federal. O espantoso veio sobretudo de ser Delcídio do Amaral, embora já estivesse citado em vazamento antigo da Lava Jato. Mas, parlamentar eficiente e bem conceituado mesmo pela oposição ao PT e ao governo, inclusive como negociador, Delcídio do Amaral figuraria em toda lista dos bons senadores.
O que o sereno Delcídio pretendeu, com André Esteves, foi livrar-se da acusação de um crime por meio de outro. Mas a falta de percepção com que o imaginaram diz mal de ambos. Era lógico que, à fuga de Nestor Cerveró desejada pelo parlamentar e pelo banqueiro, a família preferiria a delação premiada de seu chefe, para com ele gozar, pelo resto da vida, o saldo de riqueza que o acordo de delação deixa ao delator.
Fosse a fuga de perseguido político, aqui não poderia haver comentário reprovador. Auxílio à fuga de corrupto, por si mesma inaceitável, agrava-se porque os próprios Delcídio e Esteves seriam beneficiados, livrando-se, sem fugir, de acusações a que estavam sujeitos. Seu plano vale como uma confissão de culpa.
Por mais que os trombadinhas do impeachment explorem contra o governo a prisão de Delcídio do Amaral –houve até quem dissesse que agora a Lava Jato "caiu dentro do gabinete da presidente Dilma"– o efeito de fato é a perda do líder hábil da bancada governista no Senado. Tudo o que compromete Delcídio é estritamente pessoal. No mais, as coisas seguirão, com as mesmas dificuldades e as mesmas urgências.

sábado, 28 de novembro de 2015

A história da Rússia e o xadrez geopolítico

Bruno Adrie. Transcrito do site Carta Maior

  É necessário provar que Putin é mal retratado pela imprensa ocidental?

Ele é tão desprezado que a revisão do L'Express escreveu sobre um relatório dirigido ao Pentágono que afirmava que “o desenvolvimento neurológico de Putin foi interrompido substancialmente na infância” e que “o presidente russo carrega uma anormalidade neurológica”. Os autores do relatório dizem que "o seu comportamento e suas expressões faciais revelam uma postura defensiva em grandes ambientes sociais"

A conclusão implícita do relatório manipulado pelo Pentágono é que Putin não consegue se comunicar, é incapaz de participar de um diálogo aberto e construtivo com os outros e pode ser perigoso, declarando uma guerra sem prévio julgamento. O leitor crédulo se assusta e se pergunta como tal homem pode ser o líder da Rússia. Então ele olha para o que tem acontecido nos últimos anos e de repente entende por que Putin invadiu a Geórgia em 2008, por que anexou a Crimeia, por que apoiou os separatistas em Donbas e por que está bombardeando os fundamentalistas islâmicos na Síria agora em apoio ao torturador Al-Assad! Qual é a diferença entre mencionar este relatório e espalhar propaganda?

E se Putin não fosse esse homem que eles descrevem? Suponha, por exemplo, que exista algum tipo de lógica na sua política externa.

De acordo com o geógrafo George Friedman, as nações agem como jogadores de xadrez, que atuam nos limites estreitos de uma série de regras que definem seu leque de boas jogadas. Tão melhor quanto mais lógico for um jogador, quanto mais previsível ele for na escolha da melhor tática "até que desfira seu brilhante golpe inesperado". George Friedman acredita que as nações não simplesmente agem irracionalmente. "As nações são limitados pela realidade. Eles geram líderes que não se tornariam líderes se fossem irracionais" (Friedman, p.29). Ele considera que os líderes "compreendem o seu menu de possíveis movimentos e os executam". Quando eles falham, não é porque são estúpidos, mas apenas porque as circunstâncias não lhes forneceram as possibilidades corretas.


Seguindo a abordagem de George Friedman em termos de geopolítica, vamos nos perguntar: é possível entender as iniciativas tomadas por Vladimir Putin no tabuleiro internacional?

Em seu livro The Next 100 Years, George Friedman insiste no fato de que a Rússia não tem uma abertura para litoral, enquanto os EUA dispõem de "acesso fácil para os oceanos do mundo". Durante a Guerra Fria, os Estados Unidos - que pretendiam "conter e, dessa forma, estrangular os soviéticos" - criaram um "cinturão maciço de nações aliadas" que se estendia do Cabo Norte da Noruega até a Turquia e as Ilhas Aleutas " (Friedman, p.45 ). "Trancada pela geografia", a URSS não podia vencer a Guerra Fria e, finalmente, entrou em colapso em 1991. Friedman prevê que, no século XXI, depois de uma segunda Guerra Fria, a Rússia entrará em colapso novamente, pela mesma razão geográfica.

Mas não possuir um litoral não é o único inconveniente geográfico pra Russia. A fim de entender esse contexto, o jornalista Tim Marshall nos convida a dar uma olhada neste mapa da Europa, em que a planície europeia foi escurecida.

https://lh4.googleusercontent.com/V0nEaPQEY_iw6OJxQe1jlJrsinriho2Nl_ulzXyc_WNYAhzK2ufZ3uBVNHx44P5kLjjPrkUMoOXhxqN6GV3RXnTiRlNEEm71qvFkz-mz4_HeIOVrHK1tgLk-WYgFNz0e2MufOsgY.


Esta planície, que vai da costa atlântica até os Montes Urais e da Finlândia até o Mar Negro e o Cáucaso, é um corredor enorme e aberto em que se deram todas as invasões nos últimos 500 anos: os poloneses em 1605, os suecos em 1707, os franceses em 1812 e, finalmente, os alemães em 1914 e 1941. Essas invasões só foram possíveis porque a planície não oferece resistência aos invasores. Lá você não vai se deparar "com montanhas, desertos, e apenas poucos rios" para atravessar. Para lidar com este problema, os líderes russos decidiram atacar primeiro.

A única maneira de evitar essa insegurança foi deslocar suas fronteiras para lugares mais fáceis de controlar e defender, onde haveria obstáculos naturais para invasões. Ivan, o Terrível, foi o primeiro a avançar sobre esses marcos.

"Ele estendeu seu território ao leste dos Montes Urais, ao sul do Mar Cáspio e em direção ao norte do Círculo Ártico". Assim ele "teve acesso ao Mar Cáspio e, mais tarde, ao Mar Negro, aproveitando as montanhas do Cáucaso enquanto barreira parcial frente aos mongóis". Ele também "construíu uma base militar na Chechênia a fim de dissuadir qualquer suposto invasor".

Então veio Pedro, o Grande, e depois Catarina, a Grande. Eles "expandiram o império a oeste, ocupando a Ucrânia e, em seguida, atingindo as montanhas dos Cárpatos". Eles assumiram controle da Lituânia, Letônia e Estônia para se defender "contra os ataques do Mar Báltico". E após a Segunda Guerra Mundial, Stalin ocupou a Europa Oriental e lá apoiou regimes aliados, a fim de criar uma zona tampão para bloquear a planície Europeia, forçando as fronteiras a oeste, até chegar a uma área estreita e, portanto, mais fácil de controlar contra os inimigos. Podemos ver, na verdade, que a fronteira entre as Alemanhas Oriental e Ocidental é mais fácil de defender do que a fronteira da Rússia atual. E esses fatores não dependem da personalidade de um líder, seja ele um imperador, um ditador ou um presidente eleito. Este ponto de vista é amplamente partilhado por Alexander Dugin.

Alexander Dugin é geógrafo, mas não só isso. É também um fervoroso russo movido pelo amor ao seu país. Para ele, a Rússia é mais do que um país enorme e sem litoral, mais do que uma bandeira. É uma civilização sitiada que precisa ser defendida. "A Rússia não é simplesmente a Federação da Rússia, a Rússia é o mundo russo, uma civilização, um dos pólos de um mundo multipolar", diz ele em entrevista concedida ao Katehon.com, sob o título: “War in Ukraine Will Resume Soon”.

Assim como Tim Marshall, Alexander Dugin inclina-se sobre a geografia para justificar a política externa do presidente Putin. Segundo ele, a guerra contra a Geórgia, a anexação da Crimeia e a campanha de bombardeios na Síria - onde a Rússia tem uma base naval na cidade de Tartus (muitos dos leitores ocidentais não sabem que a Síria é, como Crimea ou Transcaucásia, um posto avançado que garante uma Rússia não circunscrita as suas próprias fronteiras) - foram ações ditadas por uma necessidade geopolítica que transcende a personalidade de seus líderes. Segundo ele, a Rússia deveria ter anexado as províncias de língua russa da Ucrânia e, como Dugin acredita, mais cedo ou mais tarde ela vai ter que fazê-lo.

E não porque os russos sejam ávidos por territórios ou simplesmente imperialistas. Ao fazer isso, a Rússia tende a garantir sua própria sobrevivência. "Se perdermos Donbas, então vamos também perder a Criméia e, em seguida, toda a Rússia", diz ele. Anexar a Ucrânia não é um objetivo. A Ucrânia não precisa se tornar um estado vassalo. "Eu não sou contra uma Ucrânia soberana, é apenas necessário que ela seja nossa aliada ou companheira, ou, no mínimo, um espaço neutro, intermediário", diz ele. E acrescenta: "O que não pode ser permitido é uma ocupação atlantista da Ucrânia". Aqui, Dugin fala do reino da necessidade. Isso é o que ele quer dizer quando trata de um "axioma da geopolítica". "Nossos inimigos entendem perfeitamente que a Rússia só pode se tornar grande novamente em conjunto com a Ucrânia". Segundo ele, "Não há outro caminho. A Primavera Russa é impossível sem avançar um eixo euro-asiático estratégico na Ucrânia, não importam os meios, sejam pacíficos ou não, que forem necessários". Dugin pensa que manter independentes as repúblicas de Donetsk e Lugansk entre a Ucrânia e a Rússia é um imperativo categórico. "Aquele que controla as fronteiras do DPR e do LPR com a Rússia, controla tudo", diz ele, imitando o famoso slogan de Mackinder.


A Síria é parte do mesmo problema. Alexander Dugin considera que a Síria “é uma meta mais distante, mas não menos importante”. Ele garante que a existência do EI faz parte de “um plano norte-americano”. Segundo ele, “O Estado Islâmico é uma operação especial dirigida contra os adversários da hegemonia norte-americana no Oriente Médio e em particular contra nós [russos]” e acrescenta que "o fundamentalismo islâmico tem sido tradicionalmente um instrumento geopolítico norte-americano" . Eu sugiro àqueles que consideram Alexander Dugin um teórico da conspiração que leiam as confissões de Zbigniew Brzezinski, que, enquanto Conselheiro de Segurança de Jimmy Carter, recebeu, em 03 de julho, a autorização presidencial para financiar batalhões Mujahedin, a fim de oferecer aos russos a sua própria versão de "Guerra do Vietnam" no Afeganistão.

Dugin pensa que, para enfrentar a ameaça americana, a Rússia deve mostrar força e parar de usar a soluções diplomáticas.

A guerra parece inevitável para a Rússia, este país vasto e sem litoral que a oligarquia americana deseja afastar para longe de todos os lugares, desde as costas do Báltico, do Cáucaso, do Mar Negro ou do Mediterrâneo, quem sabe com a expectativa de afastá-la da Sibéria em um próximo momento. E esta guerra não será a conseqüência da personalidade do Presidente Putin, mas resultado de uma turbulência geopolítica deliberadamente organizada pelos oligarcas ocidentais.

Sem dúvida, porém, os idiotas vão continuar a urrar que Putin é um ditador sanguinário e que a Rússia é um país perigoso e bárbaro.

Esses idiotas não são apenas os inimigos da Rússia. Eles são também os inimigos da verdade e sua onipresença no cenário da mídia e no mundo político fez da Europa um grande corpo doente, cujos membros estão gradualmente sendo devorados pela gangrena atlantista.


Notas:


George Friedman, The Next 100 Years, Allison & Busby, London, 2009
Tim Marshall, « Russia and the Curse of Geography » , The Atlantic Monthly, October 31st 2015
Tim Marshall, Prisoners of Geography, Scribner Book Company, October 27th  2015
Alexander Dugin, « War in Donbass will be imposed on us by Washington and Kiev » , Katehon.com, November 2nd  2015 (reblogged here)
Bruno Adrie, « Brzezinski, Obama, Islamic fundamentalism and Russia » (Part I), brunoadrie.wordpress.com,October 26th 2015
Bruno Adrie, « Brzezinski, Obama, Islamic fundamentalism and Russia » (Part II