quinta-feira, 19 de novembro de 2015

A barbárie sem fronteiras exige fraternidade sem fronteiras

Antoni Domènech, G. Buster, Daniel Raventós, Carlos Abel Suárez. Extraído do site Carta Maior

Até o momento, o balanço do ataque contabiliza 129 mortos e 352 feridos em Paris, vítimas de três comandos yihadistas, em tragédia que o Estado Islâmico proclama como obra sua. Dos oito participantes, seis fizeram seus coletes-bomba explodirem, e um sétimo foi morto em tiroteio com as forças de segurança.

Nem o choque traumático do brutal ataque, nem o assustador ruído dos alarmes das unidades antiterroristas tem sido obstáculo para que os setores da direita populista busquem reorientar a situação com uma campanha xenófoba indiscriminadamente antimuçulmana e hostil contra os imigrantes. Se essa campanha prosperar, facilitará precisamente um dos objetivos evidentes do Estado Islâmico: provocar um conflito étnico-religioso na Europa, que pressione os governos que participam da coalizão anti-EI na Síria e no Iraque.

Colocar o doloroso atentado de Paris no contexto da guerra que o Estado Islâmico está promovendo, principalmente na Síria e no Iraque, ajuda a compreender melhor a situação. Além dos muitos ataques com carros-bomba realizados pelas frentes que lutam na Síria e no Iraque, também foram realizados os seguintes ataques terroristas suicidas massivos, reivindicados pelo Estado Islâmico nos últimos seis meses:


– 13 de maio, Karachi, Paquistão, contra fiéis ismaelitas: 43 mortos, dezenas de feridos
– 22 de maio, Qatif, Arábia Saudita, contra uma mesquita xiita: 21 mortos, dezenas de feridos
– 26 de junho, Kuwait, contra uma mesquita xiita: 27 mortos, dezenas de feridos
– 26 de junho, Sousse, Tunísia, ataque contra turistas: 38 mortos
– 11 de julho, Cairo, Egito, ataque contra o consulado italiano: sem vítimas fatais
– 20 de julho, Suruç, Turquia, ataque contra sede de um partido de esquerda pró-curdo: 32 mortos, 104 feridos
– 13 de agosto, Bagdá, Iraque, ataque contra um bairro xiita: dezenas de mortos
– 10 de outubro, Ancara, Turquia, atentado contra sede de partido curdo: 86 mortos, 126 feridos
– 30 de outubro, Sinai, atentado contra o avião russo KGH-9268: 224 mortos
– 12 de novembro, Beirute, Líbano, atentado em bairro xiita: 50 mortos, 250 feridos.
– 13 de novembro, Paris, França: 129 mortos, 352 feridos.


Basta ler essa lista terrível para se ter uma ideia dos objetivos desses ataques:

1) Polarizar e estimular um enfrentamento entre sunitas e xiitas em todo o mundo muçulmano. Um conflito que recria o choque geopolítico interposto entre o eixo persa (Irã, governos iraquianos e sírio, Hezbollah, Huthis iemenitas) de um lado e o eixo saudita-israelense (Arábia Saudita e monarquias do Golfo, todas apoiadas pelo governo de Netanhayu em Israel) do outro. Um choque de poderes regionais que a assinatura do acordo nuclear entre Irã e os Estados Unidos – junto com os demais membros permanentes do Conselho de Segurança e a Alemanha – tentou subordinar ao propósito da administração de Obama, de recuperar seu papel hegemônico, como árbitro da região. O resultado concreto até agora foram as conversações sobre a Síria, visando um cessar-fogo e uma estabilização das frentes, que permita o ataque das distintas milícias contra as forças do Estado Islâmico, com uma perspectiva de saída político-diplomática a médio prazo.

2) Castigar as potências ocidentais – e às esquerdas turca e curda – por sua participação na ofensiva terrestre e aérea contra o Estado Islâmico nos últimos meses. Reforçar um conflito étnico-religioso contra as minorias muçulmanas na Europa, que radicalize os distintos setores em favor da guerra santa proclamada pelo Estado Islâmico, o que favorece o recrutamento bélico para as frentes internas e externas. Simbolicamente, serve também para se impor sobre a Al-Qaeda como referente político-moral global da Jihad.

Nada disso é uma novidade radical. O surpreendente é a falta de informação sistemática no Ocidente sobre as causas, a situação e as consequências do conflito no Oriente Médio. Vejamos: a derrubada da ordem geopolítica estabelecida após a Primeira Guerra Mundial e o desmembramento do Império Otomano, a divisão imperialista da região petroleira mais importante do mundo através dos acordos Sykes-Picot, o auge e fracasso do nacionalismo árabe em suas diferentes versões, a consolidação das monarquias absolutistas sauditas e do Golfo Pérsico – com o apoio dos Estados Unidos e do Reino Unido –, a derrubada da monarquia persa, a revolução e contrarrevolução iraniana e a guerra Irã-Iraque, seguida pelas duas guerras do Golfo, a ocupação do Iraque e a guerra civil na Síria, sem esquecer o conflito árabe-israelense… Todo esse contínuo turbilhão de tensões regionais e conflitos bélicos tiveram sobre a região e suas populações o mesmo efeito combinado que a Primeira e a Segunda Guerras Mundiais tiveram na Europa. Economias destruídas, dezenas e dezenas de milhões de mortos e feridos por quatro gerações. Dezenas de milhões de desabrigados, uma parte dos quais está agora mesmo em busca de refúgio, de forma desesperada, e estão dispostos a enfrentar até mesmo a xenofobia dos Estados-membros da União Europeia.

Em meio à generalizada e interessada simplificação, baseada na limitada visão de demonização do inimigo terrorista do Estado Islâmico, pode parecer até meio pedante este apelo racional a compreender e estudar as causas do conflito. Mas sem essa compreensão é impossível até mesmo imaginar, e menos ainda conceber uma estratégia capaz de superar as manipulações táticas do equilíbrio de poderes das potências imperialistas globais e regionais. Há mais de cem anos que todo Oriente Médio tem que lidar com todo esse cenário de caos mortífero, que agora salpica algumas cidades do ocidente – a partir do atentado do dia 11 de setembro de 2001. Digamos claramente: se trata do maior fracasso político, social e econômico do desenvolvimento do capitalismo como marco institucional civilizatório. Desde o começo deste Século XXI, o sistema que os economistas fiéis ao conceito de livre mercado apresentam como a culminação da história da humanidade se viu ameaçado pelas forças políticas e sociais que, como a Al Qaeda e o Estado Islâmico, pretendem o restabelecimento distópico de um regime civilizatório do Século IX, e deveria ao menos levar à reflexão aqueles que acreditavam no discurso do “fim da História”.

A solidariedade autêntica com toda esta longa cadeia de vítimas inocentes da indecente fúria do Estado Islâmico passa necessariamente por estender a fraternidade republicana a todas as vítimas do conflito imperialista no Oriente Médio. A todas. Passa por buscar saídas políticas e diplomáticas que parem com esta sangria e ofereçam seriamente uma reconstrução das condições políticas, econômicas e sociais que permitam desmilitarizar a vida cotidiana e evitar que até a autodefesa das distintas comunidades termine criminalmente manipulada pela ajuda militar das potências regionais.

A condição prévia de tudo isso é a derrota militar de um Estado Islâmico cheio de recursos, incluindo recursos financeiros de origens desconhecidas. É preciso que se produza uma derrota militar da ofensiva que os jihadistas iniciaram em fevereiro deste ano, as frentes abertas que só puderam se estabilizar – e precariamente – graças à mobilização das milícias iraquianas, sírias, libanesas e curdas de diferentes ideais, além do apoio aéreo da coalizão dirigida pelos Estados Unidos. Mas temos que saber que não se conseguirá decompor o bloco social das alianças nas quais o Estado Islâmico se apoia, a não ser que sejam oferecidos projetos sérios e bem concebidos – e bem financiados – de reconstrução nacional. Um projeto capaz de responder às necessidades e às reivindicações mínimas das distintas comunidades do Oriente Médio, incluindo as sunitas da Síria e do Iraque – a que também é a razão do sucesso das milícias curdas no norte da Síria. Sem a reconstrução de projetos políticos que ponham os interesses e necessidades das diferentes comunidades da região em primeiro plano, todas elas seguirão dependendo da subordinação às distintas potências regionais, de diferentes tipos, para sua sobrevivência, e o ciclo de instabilidade e violência voltará a se reproduzir.

A Síria oferece agora a primeira oportunidade de uma saída política do conflito. O objetivo das negociações não deve ser o de impor às distintas comunidades da Síria um sistema político, e sim o de conseguir um cessar-fogo em todas as frentes, exceto nas que combatem o Estado Islâmico. O seguimento da situação na região deve ser mediante uma operação de manutenção da paz das Nações Unidas. Um aumento da pressão militar sobre o Estado Islâmico na Síria, tanto no norte curdo quanto na região de Aleppo, permitiria avanços no Iraque sobre Mosul e Al-Bhagdadi, onde estão as frentes estacionadas há semanas, e já se observam os primeiros indícios de desmoralização entre as milícias jihadistas.

Tudo é especulação, mas fica, isso sim, a convicção de que todas, absolutamente todas as vítimas do Estado Islâmico merecem nossa solidariedade. Assim como os refugiados que chegam às ilhas gregas por não ter outra opção. As minorias muçulmanas europeias que a direita populista tenta transformar em bodes expiatórios dos seus fracassos imperialistas.

Tradução: Victor Farinelli



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