quarta-feira, 27 de janeiro de 2016

A lição de Roosevelt ao Brasil de Dilma

Saul Leblon, na Carta Maior

   Franklin Roosevelt, o presidente americano frequentemente evocado quando se trata de buscar um paradigma à altura das tarefas colocadas pela crise mundial, tomou posse no dia 3 de março de 1933. Era uma sexta-feira e, neste caso, detalhes de calendário têm um significado político como se verá a seguir.

No domingo, dia 5, Roosevelt emitiria uma nota convocando o Congresso dos EUA para sessão extraordinária que deveria ocorrer na quinta-feira, dia 9. Não detalhou a pauta, mas trabalharia exaustivamente sobre ela nas horas seguintes. A uma da madrugada, já na segunda-feira, dia 6, o presidente democrata socorreu-se de uma lei da Primeira Guerra Mundial que confere poderes adicionais ao chefe de Estado norte-americano tanto na esfera monetária quanto cambial. Roosevelt decretou um feriado bancário de quatro dias, assegurando-se de que não haveria corrida às agências até a sessão legislativa.


As precauções eram justificáveis. A insegurança, a especulação e o desemprego faiscavam por todo o país. O medo do futuro sentava-se à mesa de milhões de lares sem ter sido convidado.


O emprego, a casa, a comida e o dinheiro estavam por um fio.


Independente de quantas voltas a chave pudesse girar na fechadura, nada, nem ninguém, podia sentir-se em posição confortável naquele momento. Não havia um centímetro de chão sólido no imaginário norte-americano em março de 1933.


Bolsas, bancos, fundos, grande conglomerados, advogados, políticos e justiça compunham diante da sociedade a caricatura de um enorme ladravaz. Uma bocarra disposta a devorar até a última lasca da economia em benefício próprio. A ameaça do futuro resmungava sua língua pestilenta em cada esquina.


A estrutura bancária dos EUA era uma montanha desordenada de reputações em ruína; rachaduras abriam-se em fendas até se tornarem buracos sem fundo, do dia para a noite. Notícias de demissões faziam fila de espera nas manchetes de jornais. Havia a percepção crescente de que as autoridades estavam à reboque dos acontecimentos, engasgavam com as notícias no café da manhã; à noite rezavam em silêncio pelo dia seguinte. Números azedos comandavam a economia sem que se erguesse uma voz capaz de comandá-los.


O monólogo dos tempos difíceis ia impondo sua ordem unida na frente da produção, do dinheiro, do emprego e da política.


A percepção de que as rédeas escapavam às mãos que deveriam controlá-las fornecia a ração diária de ceticismo e pânico que engrossava a cintura do colapso econômico. O relógio da crise adiantava seu despertar a cada dia. O salve-se quem puder de cada unidade produtiva fornecia combustível à imolação coletiva.


Na semana em que Roosevelt assumiu a presidência dos EUA, o país tinha proporcionalmente o maior contingente de desempregados do mundo. Mais de 14 milhões de pessoas perambulavam pelas cidades e estradas sem trabalho, número que somado às respectivas famílias equivalia a uma população maior que a da Inglaterra. A perda de confiança no futuro funcionava como uma empresa demolidora; milhões de marretas anônimas trabalhavam dia e noite para desmontar o que restava do alicerce social e econômico.


É nesse ponto que o timming das ações do governo – de qualquer governo – faz enorme diferença.


Cada gesto, cada decisão, cada anúncio adquire uma dimensão estratégica; a forma como as providências são comunicadas, ademais de sua contundência, sobre a qual não pode pairar dúvida, ou se revelam inócuas - ganha importância de variável histórico insubstituível.


Uma crise tem um tempo certo para ser derrotada, ou derrotará o governo --a produção e o emprego - que vacilar diante dela.


Nisso, sobretudo nisso, Roosevelt revelou-se o estadista cuja habilidade ainda tem lições a oferecer aos seus contemporâneos; inclusive no Brasil onde o colapso da ordem neoliberal já arromba fronteiras da economia, da política e do imaginário social.


A primeira lição de Roosevelt: a rapidez em ocupar a frente do processo; contemporizar seria a capitulação.


Em apenas uma semana de mandato ele tomou algumas decisões que não exorcizaram todos os demônios, mas foram afrontá-los em seu próprio campo. Olhando esse momento histórico a partir do mirante crítico de 2015 no Brasil, não se pode dizer que foram medidas acanhadas. Hoje ainda elas sugerem tudo menos tibieza e hesitação diante do grande vendaval que se forma quando o pânico e o dinheiro se encontram numa mesma esquina.


Quantos dos atuais chefes de Estado teriam a coragem de anunciar, 82 anos depois, o que Roosevelt proclamou naqueles idos de março de 1933?


Os tempos são outros, alega-se.

Sim. A globalização tornou tudo mais difícil, justificam aqueles que ocultam sua hesitação nas dificuldades do presente para ofuscar o componente de coragem dos personagens do passado.


Em 12 de março, ao fazer seu segundo discurso à Nação, Roosevelt trazia alguns troféus do primeiro round de uma luta que se estenderia até 1944, quando os EUA declararam guerra ao Eixo. Só então, de fato, o potencial produtivo norte-americano pode ser acionado a plena carga, desvencilhando-se da recessão com o socorro das encomendas bélicas.


Muitos relativizam o alcance das medidas anti-cíclicas tomadas nos 11 anos que antecederam esse momento. Poucos lembram de se perguntar o que teria acontecido com o presidente democrata, reeleito quatro vezes (de 1933 a 1945), se a sua autoridade tivesse fraquejada no primeiro mandato, na primeira semana ou no primeiro dia de março.


É sobre isso que os chefes de Estado de hoje deveriam refletir em vez de adiarem decisões num dominó protelatório à espera de um milagre de auto-ajuste do mercado.

Que não virá, como evidencia a recidiva da crise de 2008. Oito anos passados, o mundo está às voltas de novo com uma economia que murcha e deprecia todos os ativos, de commodities a imóveis, passando por moedas e petróleo.

Aderir ao ralo ou resistir e reordenar as bases do desenvolvimento emconjunto com a sociedade?

O maior desafio é exorcizar aquele risco apontado por Roosevelt no discurso de posse exaustivamente citado em palavrórios oficiais, mas pouca vezes assumido na prática: diante de uma crise divisora, só devemos temer o nosso próprio medo.


O torpor imobilizante parece ter contaminado até um pedaço da esquerda diante de um colapso , batizada por Chico de Oliveira como a primeira grande crise da globalização capitalista - uma crise clássica de realização do valor, declarou o sociólogo em entrevista à Carta Maior.


Sua especificidade estaria no fato de não ter origem num centro geográfico, mas na engrenagem planetária irrestrita consolidada pelo capital. O motor  insaciável que avança de mercado a mercado com apetite de saco sem fundo seria a impossibilidade de realização da mais-valia extraída das novas frentes de exploração abertas nos últimos 40 anos, sobretudo na Ásia, mas também no leste europeu. Essas novas fronteiras fizeram mais que dobrar a oferta de mão-de-obra, barateando o custo do trabalho urbi et orbe.


No primeiro momento do ciclo – quando FHC enxergou a emergência de um novo “renascimento”,  no apogeu do Consenso de Washington,- detentores de capital fictício experimentariam fastígio e glória inigualáveis.

Agora, na reversão, sobrevém o colapso sobre o colapso, o derretimento da riqueza acantonada em papeis, índices e moedas; o desemprego resiliente .

A gravitar como a força de atração rumo ao ralo, a incerteza em todo o globo.


Sob o risco da  simplificação, vale a fórmula: se a extração da mais-valia implica que uma parte da riqueza produzida não é paga ao produtor, padece o sistema de um desequilíbrio inerente que se amplia na proporção em que se expande a engrenagem.

Um pedaço cada vez maior do valor gerado não encontra meios para se realizar. Marx ensinou que as crises de superprodução - de capital e de capacidade produtiva - são o apanágio do sistema baseado na propriedade privada dos meios de produção.

A autodestruição cíclica é o seu método de sobrevivência.

Estamos a bordo de uma desses paradoxos periódicos, de abrangência e agressividade proporcional às dimensões magnificadas pela globalização capitalista –agora agravadas pela freio acionado no principal esteio de demanda agregada do planeta (o consumo e o investimento chinês).


Decorre desta característica uma parte da perplexidade que a crise fomenta e diante da qual se agiganta a importância do timming político na ação de governo.

É nisso que a experiência de Roosevelt dos anos 30 tem algo de inestimável valor a dizer à Presidenta Dilma no Brasil de janeiro de 2015.


Em 1929 havia pouca clareza teórica - exceto para marxistas e mesmo assim com grau de sofisticação restrito a franjas minoritárias - sobre a natureza da crise irradiada dos EUA. Marx era esconjurado; Keynes apenas buscava legitimidade e nem Roosevelt apostaria nele num primeiro momento.


A ignorância pode ter facilitado o desassombro.

Hoje dá-se o oposto. O objeto é razoavelmente conhecido, mas paradoxalmente intangível, dada a abrangência planetária de sua mecânica e a ausência de instituições correspondentes.


Ontem, como hoje, o capital quer se livrar das amarras da história, buscando um porto-seguro onde a reprodução desdobre-se em dízima dele mesmo (D-D).

Persegue-se o nirvana do capital, a abolição dos encargos trabalhistas, das greves, dos Morales e suas constituições refundadoras. Nesse éter de capitalismo sem o conflito das suas classes constitutivas, as circunstâncias abrigadas na danação marxista do D-M-D sumiriam. O mercado, a mídia, os milionários e os especuladores levitariam na livre mobilidade do capital, em bolhas insensíveis à gravidade terrena até o estouro ensurdecedor da próxima saturação.

São trunfos agregados à couraçado de um mercado inexistente no tempo em que este foi emparedado pelo Estado rooseveltiano


A verdade, porém, é que se a globalização ampliou as condições para a utopia capitalista, o dragão afrontado por Roosevelt em 1933 exalava as mesmas obsessões. E, mais que hoje, o poder público não dispunha também de nenhuma estrutura internacional com a qual dividir tarefas.


Seu valioso contrapeso era intuição política para atuar no vácuo  sem se deixar engolir pela crise, mesmo quando hesitava.


Foi assim que fez o Congresso discutir e aprovar, em um único dia, uma Lei de Emergência Bancária em rito fulminante, na quinta-feira, dia 9, seis dias depois da posse.


Para se ter uma medida de comparação, basta dizer que hoje o conservadorismo brasileiro não aceita, sequer, que o Presidente da República tenha influência sobre o Banco Central.

A Emergência Bancária, ao contrário, facultava a ingerência estatal sobre todo o sistema financeiro público e privado dos EUA. Com tais poderes, Roosevelt colocou as instituições –sadias, poucas, e podres, a maioria - sob custódia federal. Uma espécie de estatização branca, ainda que temporária, mas radical e impiedosa com o rentismo.


Estamos falando de um democrata progressista com forte dosagem de austeridade conservadora, não de um bolchevique.

Roosevelt não pretendia liderar uma revolução para derrubar o capitalismo. Queria reformá-lo para que pudesse outra vez fazer prosperar o emprego e a produção, eliminar a fome e a miséria no seio das famílias.


Ao contrário de alguns líderes da atualidade, tinha a vantagem de saber que isso não aconteceria sem erradicar a especulação, a jogatina, a obesidade mórbida do rentismo que se atava à jugular do trabalhador e ao caixa da produção.


Em 1933, Roosevelt sabia intuitivamente o que hoje é um consenso teórico, mas não político.

Para salvar a economia do colapso financeiro é preciso subordinar o crédito –portanto todo o sistema bancário— aos desígnios da produção, do emprego e do consumo. Nem que seja uma estatização temporária do crédito.

Só o Estado é capaz de fazê-lo em tempo hábil, antes que a epidemia se alastre e derreta o metabolismo econômico.


A Lei de Emergência dava ao Estado norte-americano essa faculdade e Roosevelt a exerceu com a rapidez e o apetite de um estadista.


Enquanto seus potenciais seguidores patinam entre a hesitação e a falta de meios políticos para superá-la,  no longínquo de março de 1933, Franklin Roosevelt pode apresentar-se à Nação, apenas oito dias depois da posse, como um Presidente vencedor.

Ele havia enfrentado o foco da doença in locu, submetendo o sistema bancário sem tergiversações.

Venceu um primeiro e decisivo round: estrangulou o espaço da  incerteza


No domingo, 12 de março, quando estreou seu programa “Conversa junto à Lareira” , o Presidente tinha o que dizer; e milhões queriam ouvi-lo. Sua palavra estava sintonizada com o espírito das ruas e viria reforçar a espiral da autoconfiança em diferentes setores e segmentos.


As filas no guichê dos bancos já não eram mais para sacar depósitos. Agora elas reuniam cidadãos trazendo de volta suas economias porque o Estado lhes devolvera a garantia e a esperança.


Roosevelt foi além na tarefa de devolver otimismo a uma sociedade acuada e sem futuro. Não se limitou a medidas rotineiras, nem confiou o destino da sociedade aos “canais convencionais de mídia’, tão a gosto dos acanhados chefes de Estado da atualidade.


Roosevelt comunicava-se direto com a Nação através da devastadora penetração do rádio. Um bolivariano après la lettre?

Não. Alguém que sabia enxergar quando o extraordinário tomara de assalto o cotidiano da sociedade.

Tida vez que falava à Nação, a voz de Roosevelt dizia coisas inteligíveis à angústia do pai de família que acordara empregado e fora dormir demitido.

Suas mensagens e políticas pavimentavam o futuro sem negligenciar a emergência. Traziam respostas para o presente.


Multiplicar providências imediatas para sacudir a sociedade entorpecida pelo medo e a descrença, esse foi o seu objetivo ao criar a Administração para o Progresso do Trabalho. Com ela encarou o desafio de enxugar imediatamente a inundação de desemprego que afogava as famílias, as cidades e o interior do país.

A mensagem era simples e convincente: os EUA foram divididos em zonas salariais; para cada uma delas fixou-se um seguro-desemprego proporcional; o governo passou a contratar até três milhões de trabalhadores por ano, em troca desse pagamento. A nova força-tarefa semearia canteiros de obra pelo país; estradas, ruas, escolas, canalizações, hospitais, parques infantis, pontes, caminhos vicinais foram recuperados, expandidos e construídos.


A Administração para o Progresso do Trabalho ganhou um braço cultural. Em um mês inauguraria 100 mil salas de alfabetização com um milhão de adultos inscritos na luta contra o analfabetismo.

Artistas e escritores desempregados foram engajados no mutirão.

Sua mobilização desencadearia uma revolução cultural ampliando as franjas de apoio progressista ao governo, taxado de comunista pela direita raivosa e a mídia cínica.

O Presidente também convocou a juventude. Milhares de jovens foram incorporados a serviços florestais dando vida a planos de replantio de matas, preservação e proteção de bosques.


O democrata austero e progressista continuou falando ao futuro e à angústia do presente.

Na Conversa ao Pé da Lareira de outubro de 1933, Roosevelt deu um aviso ensurdecedor aos ouvidos da crise: se houver qualquer família nos EUA, disse, ameaçada de perder a casa que habita, a terra na qual labuta, ou seus pertences, essa família deverá telegrafar imediatamente para a Administração de Crédito Rural ou à Companhia de Empréstimo aos Proprietários de Residência.

‘Ela receberá o auxílio de que necessita’, sentenciou aos ouvidos ansiosos por isso.


Para além das discussões técnicas sobre a viabilidade ou não de um novo New Deal, sobretudo na periferia do capitalismo em 2015, há uma lição de extrema atualidade a extrair dessa prontidão exibida pelo governo democrata de Franklin Roosevelt.


Ele tinha a exata noção de que, quando o extraordinário acontece, as ferramentas da rotina têm pouca eficácia e serventia.  Ao contrário de sensatez, ensejam fracassos e derrotas.


Esse talvez seja o principal legado que a experiência dos anos 30 tem a oferecer aos governantes progressistas que continuam a contemporizar de forma temerária ante as evidências de um novo mergulho na desordem neoliberal.. Mas não só eles. O paradigma do desassombro, associado ao realismo, convoca também sujeitos coletivos. Deles se espera agendas e respostas a salvo da dispersão e do descompromisso em relação às ansiedades e urgências da sociedade, neste divisor da história.

A ver.

(*) Obs .Texto atualizado a partir de versão original publicada em Carta Maior 29/01/2009

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