Mark Weisbrot: Reunião de Kerry com Serra é uma atitude podre para um Secretário de Estado dos EUA no século 21
Reunião de Kerry com ministro interino brasileiro revela apoio dos EUA ao governo ilegítimo
por Mark Weisbrot, no The Hill, em 09/08/2016
Em 25 de julho, 43 membros da Câmara dos Deputados dos EUA escreveram ao Secretário de Estado Kerry. A carta diz:
Escrevemos para expressar nossa profunda preocupação com os
acontecimentos recentes no Brasil, que ameaçam as instituições
democráticas do país. Nós também pedimos que Vossa Excelência exerça
máxima cautela nas relações com as autoridades interinas do Brasil, e
que se abstenha de declarações ou ações que possam ser interpretadas
como apoio à campanha de impeachment lançada contra a presidenta Dilma
Rousseff.
Nós acreditamos que nosso governo deve expressar forte
preocupação em relação às circunstâncias que envolvem o processo de
impeachment e apelamos para a proteção da democracia constitucional e do
Estado de Direito no Brasil.
Na segunda-feira, o senador Bernie
Sanders também expressou sua opinião, observando que, “após suspender a
primeira presidenta mulher do Brasil com argumentos duvidosos, sem um
mandato para governar, o novo governo interino extinguiu o Ministério
das Mulheres, da Igualdade Racial e dos Direitos Humanos.” E
acrescentou: “Os Estados Unidos não podem permanecer em silêncio
enquanto as instituições democráticas de um de nossos mais importantes
aliados são atacadas.”
É extremamente raro ver este tipo de
questionamento sobre a política do governo dos Estados Unidos por
membros do Congresso do mesmo partido, especialmente sobre um país tão
grande e importante como o Brasil. Ao lidar com tal país, que possui um
território maior do que a área continental dos Estados Unidos, com mais
de 200 milhões de pessoas, e que representa a sétima maior economia do
mundo, seria esperado que os parlamentares democratas não interferissem
nesse tema, especialmente em um ano eleitoral.
Talvez eles tenham
tomado tal decisão porque sabem que a administração de Obama estaria
apoiando o impeachment. Um membro do Comitê de Relações Exteriores da
Câmara me disse recentemente que este seria realmente o caso, e existem
evidências de que seria verdade.
Em uma coletiva de imprensa em 3
de agosto, o porta-voz do Departamento de Estado disse que Kerry
responderia à carta do Congresso. Nenhuma resposta escrita foi recebida
até agora, mas Kerry pode ter enviado uma resposta não-verbal ao
encontrar-se com o ministro das Relações Exteriores do governo interino,
José Serra, durante sua recente viagem ao Brasil. Se esta é a sua
resposta para os membros do Congresso, equivaleria a levantar o dedo do
meio.
Kerry não teve a ousadia de se reunir com o presidente
interino, Michel Temer. A grande maioria dos brasileiros quer que Temer
renuncie, e não complete os dois anos e meio restantes do mandato
presidencial que está ocupando. Mas se o Senado brasileiro votar pela
condenação da presidenta Dilma Rousseff no final deste mês, ele ocuparia
a presidência até 2018.
Temer nem sequer foi apresentado nos
Jogos Olímpicos, falou por cerca de 10 segundos e, de acordo com o
Washington Post, foi ruidosamente vaiado. Temer foi condenado por violar
leis de financiamento eleitoral e está impedido de concorrer a cargos
públicos por oito anos, além de estar envolvido em outros escândalos.
Ao reunir-se com Serra, e ao emitir declarações conjuntas sobre uma
série de questões após essa reunião, Kerry mais uma vez mostra o apoio a
um governo de legitimidade questionável.
Afinal, Serra não foi
escolhido por um presidente eleito. Na verdade, pode-se fazer uma
argumentação constitucional de que o presidente interino Temer — que foi
vice-presidente antes do impeachment — não poderia nomear um novo
ministério e mudar o rumo das políticas anteriores (não
coincidentemente, composto somente por homens brancos e ricos).
A
presidenta eleita não foi removida definitivamente; ela foi suspensa
enquanto aguarda o resultado do julgamento no Senado. Portanto, o
governo interino deveria atuar como uma administração temporária e não
agir como um governo eleito, que acabara de ganhar um mandato político
por uma grande maioria.
Ao reunir-se com Serra, Kerry ajuda a
legitimar o que muitas pessoas no Brasil e em todo o mundo consideram um
golpe de Estado das forças de direita. Ele poderia facilmente ter
evitado o encontro com Serra, como evitou com Temer. Isso não seria um
problema diplomático ou de protocolo. Kerry se aproximou do governo
interino e gerou a impressão de que Dilma já estaria condenada pelo
Senado. Na verdade, o procurador federal designado para o caso concluiu
há poucas semanas que Dilma nem sequer cometeu crime.
Kerry está
escolhendo um lado em uma situação política polarizada. E está
escolhendo o lado formado por uma conspiração conservadora de políticos
corruptos, os quais — segundo transcrições vazadas de conversas
telefônicas — buscam remover a presidenta democraticamente eleita, com o
propósito de se proteger de investigações e possíveis condenações
criminais.
Essa é uma atitude podre para um Secretário de Estado
dos EUA no século 21. Muitos brasileiros lembram o papel que Washington
desempenhou no golpe militar de 1964, que levou a mais de duas décadas
de uma sórdida ditadura, sob a qual o antecessor de Dilma, Lula da
Silva, foi preso, e sob a qual Dilma foi torturada. No caso de alguém
ter perdido o cordão umbilical da história, que conecta aquele golpe ao
golpe atual, um dos deputados pró-impeachment“expressamente elogiou, no
Congresso do Brasil, a ditadura militar e saudou incisivamente o coronel
Carlos Alberto Brilhante Ustra, torturador-chefe da ditadura
(responsável pela tortura de Dilma).”
A resposta do governo de
Obama a esse golpe também será lembrada por muito tempo e provavelmente
irá afetar as relações com futuros governos brasileiros. Enquanto isso,
43 membros do Congresso dos Estados Unidos ainda esperam a resposta por
escrito de John Kerry à sua carta.
Mark Weisbrot é co-diretor do
Centro Pesquisa para Economia e Política em Washington, D.C., e
presidente do Just Foreign Policy. Também é autor do livro “Failed: What
the ‘Experts’ Got Wrong About the Global Economy” (2015, Oxford
University Press).
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