Sensor publica a aula inaugural do professor Luis Fernandes, um dos mais brilhantes
cientistas políticos brasileiros, ministrada no dia 5 de setembro deste
ano, para alunos do Instituto de Estudos Sociais e Políticos do Rio de
Janeiro (Iesp). Retirado do blog O Cafezinho.
Luis Fernandes**
Quis o destino que esta conferência fosse proferida na sequência da
consumação de grave ruptura na ordem democrática nacional que resultou
no impeachment da Presidente Dilma Rousseff. As travessuras do fado me
ajudam a situar esta traumática ruptura no contexto mais amplo das
profundas e aceleradas transformações que marcam a evolução do sistema
internacional neste início de século 21.
Os promotores, apoiadores e executores da ruptura consumada alegam
que o processo não pode ser classificado de “golpe”, já que os ritos
formais definidos pela Constituição e pelo Congresso estão sendo
cumpridos, com acompanhamento do Supremo Tribunal Federal (STF). Mas o
mero cumprimento de ritos não confere legitimidade democrática ao
processo. A própria experiência do golpe civil-militar deflagrado no
Brasil em 1964 nos mostra isso com clareza. Na madrugada de dois de
abril daquele ano, cumprindo o rito previsto, o Congresso se reuniu, com
o beneplácito do Supremo, para consumar o golpe ao declarar a vacância
da Presidência da República, já que o Presidente João Goulart estaria
fora do país. Mas essa alegação era mero pretexto: o Presidente se
encontrava em território nacional. Cumprindo o rito - a partir de uma
alegação infundada - o presidente legítimo e democraticamente eleito foi
destituído pelo Congresso, inaugurando um regime autoritário no país
que durou duas décadas.
A palavra “golpe”, em português, tem variados significados. Um desses
significados é o de “artimanha”. No rito congressual do impeachment, a
artimanha se materializou na de ampliação e flexibilização da definição
de “crimes de responsabilidade” para abarcar as chamadas “pedaladas
fiscais” - práticas administrativas e orçamentárias recorrentes em
sucessivos governos federais e em outras unidades da Federação - e, em
seguida, empregar seletivamente esse “conceito ampliado” para cassar um
mandato conferido soberanamente pelo eleitorado. A alegação de crime se
torna mero subterfúgio para alcançar um objetivo político. Assim como em
1964, o cumprimento de rito formal, com conteúdo deturpado, não torna a
ação de afastamento da Presidente legítima.
“Golpe” também pode significar “pancada” ou “abalo” decorrente de
agressão. A gravidade do atual recurso ao instituto do impeachment
reside no fato dele golpear (abalar/subverter) o princípio basilar da
democracia representativa: a constituição de governos com base na
soberania popular, expressa no sufrágio majoritário de
cidadãos/eleitores. Em regimes parlamentaristas, esse princípio convive
com a possibilidade de afastamento do chefe de governo e convocação de
novas eleições gerais, via voto de não-confiança no Parlamento. Em
regimes presidencialistas, como o nosso, o princípio exige o
reconhecimento e respeito da autoridade legitimada pelas urnas durante
todo o seu mandato, cabendo às oposições tentar conquistar maioria de
votos no pleito seguinte para trocar o comando do governo.
Numa democracia jovem e ainda pouco consolidada como a brasileira, o
risco que corremos é o da banalização do instituto do impeachment,
transformado em recurso usual da disputa política para apear governantes
que tenham perdido eventual maioria congressual. Em regime
presidencialista, isso estimula nas oposições (quaisquer que elas sejam)
posturas de desrespeito à legitimidade do mandato conferido pela
soberania popular nas urnas, minando e ameaçando a estabilidade do
sistema democrático. Neste, a revogação de um mandato conferido
livremente pelo povo só deve ser admitida como recurso extremo em
situações excepcionalíssimas, quando a própria ordem democrática estiver
sob grave ameaça. Como sabemos, não era essa a base do processo votado
no Congresso Nacional.
No sentido político mais usual, “golpe” também significa a ação de um
bloco de atores para apear (ou tentar apear) outro bloco do poder, à
margem dos processos eleitorais que devem reger a alternância de poder
em regimes democráticos. De forma geral, esta ação para a alteração
não-democrática (isto é, não ancorada na soberania popular expressa no
voto) da composição do poder político visa abrir caminho para uma
reorientação das políticas implementadas pelo grupo destituído,
reorientação esta que teria dificuldade de obter apoio majoritário em
processos eleitorais regulares.
Na ruptura institucional em curso no Brasil todas estas acepções do
“golpe” se encontram e se fundem, ainda que o processo atual não
reproduza a forma das intervenções e sublevações militares que tanto
marcaram a nossa história no Século 20. Mas a ruptura institucional em
curso não é um fenômeno exclusivamente brasileiro. Por isso é importante
situá-la – e os processos análogos que se verificam em outras
experiências sul e centro-americanas – no contexto da transição
estrutural em curso no sistema internacional neste início de Século 21.
Desenvolvimento Desigual e Ordem Mundial
A evolução das relações de poder neste início de século apontam
claramente para a transição do quadro de dominação unipolar que marcou o
imediato pós-Guerra Fria no final do século passado, com a
intensificação de tendências à multipolarização e à instabilidade no
sistema internacional, fomentadas e alimentadas pela dinâmica de
desenvolvimento desigual do capitalismo. Retomo, aqui, o conceito de
“desenvolvimento desigual” formulado originalmente por Lênin a partir de
reflexões de Hobson e Hilferding nos debates teóricos sobre a Economia
Política do Imperialismo há um século, e retomado por estudiosos atuais
da Economia Política das Relações Internacionais, como Robert Gilpin.
Contrariamente à interpretação que acabou predominando nos enfoques
da chamada Teoria da Dependência latino-americana nos anos ’60 e ’70,
inspirada por Andre Gunder Frank, o conceito de “desenvolvimento
desigual” formulado no contexto do debate original sobre a natureza do
imperialismo não aponta para o contínuo aprofundamento das assimetrias
entre “centro” e “periferia” na economia capitalista mundial, mas
precisamente para o seu contrário: a tendência estrutural à erosão do
poder do centro hegemônico face à ascensão de novos polos de maior
dinamismo econômico em áreas de desenvolvimento capitalista mais tardio
no próprio centro ou na periferia do sistema.
Os estudiosos realistas das relações internacionais, como Paul
Kennedy e o próprio Gilpin, associam esse fenômeno aos altos custos da
manutenção da hegemonia e à tendência para uma rápida difusão
tecnológica para a periferia, (em função das “vantagens do atraso”
identificadas por Alexander Gerschenkron, que permitiriam aos
retardatários queimar etapas de desenvolvimento ao incorporar técnicas
mais avançadas e eficientes). Já a abordagem que Kenneth Waltz batizou
de “paradigma Hobson/Lênin” destacava o impacto dos processos de
monopolização, do advento do capital financeiro e da crescente
financeirização dos circuitos de acumulação nos países capitalistas
centrais, levando à multiplicação de investimentos e aplicações em áreas
mais “atrasadas” da economia mundial onde as taxas de lucro e de
retorno eram mais elevadas. Assim, os ganhos do capital financeiro, no
coração do sistema, passaram a ser cada vez mais alimentados por uma
lógica rentista, uma lógica de especulação sustentada por excedentes
extraídos de atividades produtivas realizadas fora do centro. Essa
dinâmica levaria à decomposição do dinamismo econômico do centro e à
ascensão de novos polos de maior crescimento no sistema. Estes, por sua
vez, passariam a se confrontar com estruturas geopolíticas de dominação e
governança internacional que não refletiriam mais a configuração
geoeconômica mundial. Ou seja, a dinâmica estrutural de desenvolvimento
desigual mina continuamente as bases da ordem mundial estabelecida.
A erosão do poder hegemônico relativo das potências dominantes
decorrente desta dinâmica estaria, assim, na origem da instabilidade,
transição e mudança de sucessivas ordens mundiais. Emprego o conceito de
“ordem mundial” aqui em sentido estrito, que remete a configurações
relativamente estáveis e persistentes de poder no sistema internacional
moderno – e não a variadas proposições de ordenamento civilizacional
geradas ao longo da história humana, como concebido por Kissinger. Pela
chave teórico-conceitual que emprego, três grandes “ordens mundiais”
podem ser identificadas, a grosso modo, na evolução do sistema
internacional moderno desde a sua consolidação na Paz de Vestefália de
1648. A primeira é uma ordem não hegemônica regida pelo mecanismo do
“balanço de poder” das grandes potências em um sistema de abrangência
basicamente europeia (com ramificações coloniais em outras regiões do
planeta, sobretudo nas Américas). Em meio a agudas tensões e conflitos,
esta ordem se estende até a derrota militar da ameaça sistêmica
representada pela França napoleônica em 1815. A ordem mundial que emerge
das guerras napoleônicas preserva o mecanismo do balanço de poder no
teatro europeu, mas expande as fronteiras do sistema para todo o planeta
através do poder hegemônico da Inglaterra (que, impulsionado pela
conquistas da Revolução Industrial, solapa e desmantela ordens
civilizacionais alternativas, sobretudo na Ásia). Esta ordem, marcada
pelo que Polanyi chamou de “cem anos de paz” na Europa, entra em colapso
com o advento da Primeira Guerra Mundial, em 1914, a que se segue um
período de transição interrompido pela deflagração da Segunda Guerra
Mundial, em 1939, período este examinado na obra clássica de E. H. Carr
Vinte Anos de Crise. A nova ordem que emerge dos escombros da Segunda
Guerra é de hegemonia contestada: a Guerra Fria. Por um lado, os Estados
Unidos consolidam e afirmam a sua hegemonia sobre o mundo capitalista –
formalizada e explicitada nos acordos de Bretton Woods -, e por outro, a
União Soviética encabeça a formação de um sistema mundial socialista
alternativo. Como bem observou Fred Halliday, a disputa no cerne desta
ordem configurava um conflito intersistêmico, e não mera reedição do
mecanismo do balanço de poder. No contexto do deslocamento das antigas
potências coloniais europeias e do delicado equilíbrio alcançado no
sistema de segurança coletiva da ONU na Guerra Fria, a própria forma de
organização política em estados soberanos foi globalizada após
sucessivas ondas de descolonização.
Como se sabe, a ordem mundial da Guerra Fria se encerrou em 1989 com a
implosão do bloco soviético na Europa Central e do Leste, e subsequente
desmantelamento da própria União Soviética e do sistema mundial
alternativo que ela estruturava. O que se seguiu foi um período de
transição no sistema internacional que perdura até hoje. A impressão
inicial era de que configuraria rapidamente uma novíssima ordem, baseada
no predomínio unipolar e inconteste da potência vencedora da Guerra
Fria – os Estados Unidos – no sistema e nas suas instituições
multilaterais de governança global. Esta impressão se traduzia em
formulações como as do “fim da História”, do advento de uma “nova ordem
mundial” ou, em chave mais crítica, de uma nova forma de “Império”. A
esta fase na transição, que marcou os anos ’90, logo se seguiu outra, em
que ficou evidente a crescente dificuldade dos EUA gerarem convergência
em torno das suas posições e interesses nos fóruns multilaterais, ao
que responderam com uma crescente disposição ao recurso a ações
unilaterais de força para tentar afirmar esses mesmos posicionamentos e
interesses. O marco da passagem para esta nova fase foi a reação
empreendida pelos Estados Unidos aos atentados terroristas de 11 de
setembro de 2001, com a decretação da “Guerra Global ao Terror” e
subsequentes invasões do Afeganistão e do Iraque.
A Transição em Curso na Ordem Mundial
Entendo que as chaves teóricas apresentadas acima são fundamentais
para entender a transição em curso no sistema internacional, já que os
processos de globalização financeira que marcaram a evolução do
capitalismo nas últimas décadas intensificaram exponencialmente tanto os
mecanismos de financeirização quanto a natureza especulativa/rentista
da acumulação no coração do sistema. Neste contexto, a evolução do
sistema internacional no início do Século 21 é marcado pela emergência
de novos pólos de poder no mundo que não compunham o núcleo central do
sistema internacional moderno que conquistou abrangência global no
Século 19 (com destaque para a China e a Índia). A China que ainda
encarna a particularidade de ser um estado socialista integrado à
economia capitalista mundial – mais do triplicou sua participação
relativa no PIB mundial medida por Paridade de Poder de Compra (PPC) a
partir da deflagração da política das “Quatro Modernizações” em 1979,
sustentando médias de crescimento próximas a 10% ao ano desde então. O
próprio FMI, que previra que a China ultrapassaria os Estados Unidos em
participação relativa no PIB mundial (PPC) em 2016, reconhece que esta
ultrapassagem foi antecipada e teria se verificado em 2014. Já a Índia
quase dobrou sua participação no PIB mundial (PPC) no mesmo período, com
médias anuais de crescimento superiores a 6%. Como tive oportunidade de
destacar em artigo recente, com delays variados, a evolução dos
indicadores que se referem a dimensões cruciais da agregação de valor na
era do conhecimento – produção científica e tecnológica medida por
artigos publicados em revistas indexadas; registro de patentes;
participação na lista de empresas detentoras dos maiores ativos globais;
entre outros – caminha na mesma direção.
Na história da economia mundial moderna, a trajetória chinesa e
indiana das últimas décadas em direção ao centro do sistema a partir da
sua “periferia” só tem precedentes na ascensão dos próprios Estados
Unidos e da Alemanha pós-unificação no Século 19. Ambos os países – a
China e a Índia – se caracterizam, ainda, por possuir as maiores
populações do planeta, extensões territoriais amplas, poderio militar
nuclear, além de estruturas estatais de planejamento e regulação que não
sucumbiram às pressões pela liberalização financeira e cambial durante a
ofensiva neoliberal global dos anos ’80 e ’90.
Há que se destacar, também, a intensificação da atuação internacional
da Rússia, sobretudo a partir da eleição de Putin, procurando retomar e
reconstituir esferas de influência para enfrentar a política de cerco
fomentada pelos Estados Unidos com a contínua expansão da OTAN para o
leste. Após o colapso econômico e social provocado pelo processo de
restauração do capitalismo, a Rússia procura reconstruir instrumentos
estatais de planejamento, intervenção e regulação econômica, em parte
herdados do período socialista. Nesta base, conseguiu recuperar o
dinamismo da sua economia após a crise financeira de 1998 e alcançar, em
2007, o patamar de atividade econômica que possuía antes do colapso do
socialismo em 1991 (embora tenha sido fortemente atingida pela queda dos
preços do petróleo e do gás no mercado mundial na sequência da
financeira deflagrada em 2008). Cabe lembrar que, como herança do
esforço realizado para alcançar paridade estratégica com os EUA durante a
Guerra Fria, a Rússia preserva, ainda hoje, o segundo maior arsenal
nuclear do mundo – e manifesta uma disposição crescente para se
contrapor à ofensiva norte-americana sobre suas antigas áreas de
influência (como fica evidente no seu crescente envolvimento na crise da
Síria, frustrando e derrotando a iniciativa dos Estados Unidos para
forçar, via intervenção da OTAN, a derrubada do regime de Bashar
Al-Assad e o triunfo das forças oposicionistas na Guerra Civil). Neste
movimento, atua abertamente como potência energética, explorando os
recursos de poder conferidos por suas gigantescas reservas de petróleo e
gás para integrar sua área de influência na Ásia Central e explorar a
dependência energética europeia.
A Viragem Progressista e a Agenda da Integração Latino-Americana
É no contexto desta tendência de decomposição estrutural da hegemonia
dos Estados Unidos e crescente multipolarização do sistema
internacional que se processou a viragem política progressista em grande
parte da América Latina no começo do Século 21. Iniciada com a eleição
de Hugo Chávez na Venezuela no final de 1998 e de Ricardo Lagos (via
Concertación Democrática) no Chile no final de 1999, seguida pela
eleição de Lula no Brasil no final de 2002, essa viragem se
materializou, em sequência, na eleição de governos de esquerda ou
centro-esquerda na maior parte da América do Sul e parte da América
Central (Argentina em 2003; Uruguai em 2005; Bolívia em 2006; Equador e
Nicarágua em 2007; Paraguai em 2008; El Salvador em 2009; e Peru em
2011). Esta “onda progressista” sucedeu a três “ondas“ anteriores que
marcaram a evolução política latino-americana na segunda metade do
Século 20: a de ascensão de regimes militar-civis ditatoriais (nos anos
’60 e ’70); a de transição para regimes democráticos (nos anos ’70
e’80); e a que Perry Anderson designou de “virada continental em direção
ao neoliberalismo” (nos anos ’80 e ’90).
Vale registrar que este novo ciclo político progressista no
continente se constituiu e se desenvolveu no quadro mais geral de
defensiva estratégica da esquerda no mundo. Este quadro de defensiva se
inicia com o desmantelamento do campo socialista, que polarizava o
sistema internacional até o final dos anos ’80 e cindia a economia
mundial em sistemas globais opostos e antagônicos. O bloco socialista
operava como força material no sistema internacional dando apoio
diplomático, militar, político, econômico a movimentos progressistas e
de libertação em todo o globo. Essa força galvanizava transformações
progressistas em diferentes regiões do mundo, acelerando e aprofundando
as suas agendas de mudança econômica e social. Evidentemente, o seu
desmantelamento criou um quadro mais adverso para a atuação política e
social das forças de esquerda no mundo. Na América Latina, no entanto, o
impacto foi menor do que em outras regiões. Essa resiliência da
esquerda brasileira e latino-americana se deve em grande medida, a meu
ver, à legitimidade política e social que ela havia conquistado por ter
assumido papel protagonista nos movimentos de resistência democrática no
continente. No contexto dos processos de redemocratização, a imagem
política das forças de esquerda se associou fortemente, aqui, à causa
democrática, o que não era o caso da experiência – pelo menos mais
recente – em outras regiões do mundo. Isso permitiu à esquerda
latino-americana continuar acumulando forças na resistência e oposição à
“virada liberal” que se processou em seguida.
Neste contexto mundial ainda marcado pela defensiva estratégica das
forças de esquerda, a viragem progressista operada na América Latina no
Século 21 se apoiou, de maneira geral, no prestígio político de fortes
lideranças carismáticas e na formação de coalizões governamentais de
centro-esquerda em regimes presidencialistas. Embora a eleição de Chávez
na Venezuela tenha sido precursora do ciclo, foi o Brasil – dado o
tamanho do seu território e população e o grau de desenvolvimento da sua
economia – que se tornou pivô da sua consolidação e estruturação
regional após a posse de Lula. Afinal, como próprio presidente Nixon
confidenciou ao General Médici ao justificar o apoio dos EUA à ditadura
civil-militar brasileira nos marcos da sua agenda de
“contra-insurgência” continental no início dos anos ´70, “para onde o
Brasil for, o resto da América Latina irá”.
Na ausência do antigo campo socialista, a orientação que predominou
nas experiências dos governos progressistas na América Latina foi a da
estruturação de novos projetos de desenvolvimento nacional, com
políticas ativas de redistribuição de renda e redução de desigualdades.
Apesar do impacto da crise econômica internacional nos últimos anos, os
novos governos progressistas da América Latina conseguiram, de maneira
geral, associar crescimento econômico e promoção da igualdade. Houve
importante redução da desigualdade em praticamente todo o continente no
período, materializada na redução de indicadores de concentração de
renda medidos pelo índice Gini e na expansão de políticas públicas
promotoras da inclusão e dos direitos sociais.
Ao mesmo tempo, esses governos fortaleceram variados processos de
integração latino e sul americanos (MERCOSUL, UNASUL, CELAC, ALBA)
rompendo com uma tradição secular de alinhamento automático com a
política externa e os interesses estratégicos dos Estados Unidos na
região. Basta lembrar que uma das primeiras consequências do novo ciclo
político continental foi, precisamente, a implosão do projeto de criação
da Área de Livre Comércio das Américas (ALCA) patrocinado pela Casa
Branca. Na sequência, se estruturou e consolidou, sob liderança
brasileira, uma abrangente e ousada agenda de integração física e
logística da América do Sul, materializada em variados projetos de
infraestrutura. O Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social
(BNDES) cumpriu papel central no financiamento dos projetos da
integração física da América do Sul, no contexto do quais as grandes
empresas de construção brasileiras desempenhavam função viabilizadora
central. Estas se tornaram atores estratégicos tanto na estruturação de
um novo projeto de desenvolvimento nacional para o Brasil quanto para os
novos projetos de integração regional associados à viragem progressista
continental.
A Agenda Externa dos Governos Lula e Dilma
A reorientação da política externa brasileira após a eleição do
Presidente Lula apostou na diversificação das relações externas do país
como melhor caminho para afirmar e defender o interesse nacional no
contexto da transição em curso na ordem mundial, marcada por fortes
tendências à multipolarização. Para além da agenda de integração sul e
latino-americana já mencionada, esta reorientação se materializou na
expansão de relações diplomáticas, econômicas e sociais com outros
países em desenvolvimento na África, no Oriente Médio e na Ásia,
orientadas para um novo padrão de cooperação Sul-Sul. Ela se expressou,
igualmente, na estruturação de uma aliança estratégica com os novos
polos em ascensão no sistema internacional, materializada na iniciativa
de formação do grupo BRICS, abarcando Brasil, Rússia, Índia, China e
África do Sul.
Estes países têm trajetórias distintas, configurações institucionais
distintas e projetos distintos de desenvolvimento, mas convergem para
uma agenda comum de critica ao monopólio dos países capitalistas
centrais nas estruturas de governança global, que não reflete mais a
correlação de forças existente no mundo. É uma agenda crítica e
reformista em relação à governança mundial que pretende, por um lado,
reformar as instituições de governança multilateral no mundo ampliando a
presença dos novos polos em ascensão nas suas estruturas deliberativas,
e, por outro, criar novas instituições multilaterais de alcance global.
A criação do Banco de Desenvolvimento dos BRICS é uma expressão disto:
um contraponto às instituições hegemonizadas pelas velhas potências em
declínio, que tem se revelado cada vez mais incapazes de enfrentar os
principais problemas que afligem o mundo e a própria crise econômica
global no Século 21.
A orientação predominante na atuação dos países que integram a
iniciativa BRICS é a de lutar por reformas na governança sistêmica
global para melhor refletir, na sua institucionalidade, a nova
correlação de forças no mundo. Não se trata de uma política de
confrontação direta e global com os Estados Unidos, já que estes mantêm a
sua superioridade bélica e sua hegemonia está em erosão, e não colapso.
Mas para além da agenda reformista dos novos polos de poder, há
movimentos geopolíticos de flanco importantes em curso, sobretudo por
parte da Rússia e da China. Entre estes, eu destacaria, no contexto dos
malogros militares norte-americanos na Ásia Central, a consolidação da
Organização da Cooperação de Xangai, iniciativa de segurança que abarca
(sem a participação dos EUA) a China, a Rússia, o Cazaquistão, o
Quirquistão, o Tajiquistão e o Uzbequistão, e mais recentemente
incorporou o Paquistão, a Índia, o Afeganistão e o Irã.
A reorientação da política externa brasileira foi acompanhada por uma
evolução articulada e correlata na política de defesa, consolidada em
sucessivas versões da “Política Nacional de Defesa” e da “Estratégia
Nacional de Defesa” formuladas pelo Poder Executivo, via Ministério da
Defesa, aprovadas pelo Congresso Nacional. Queria destacar três
formulações que estruturam esse pensamento sobre defesa nacional.
A primeira é a estratégia de dissuasão. A experiência mundial no
Pós-Guerra – incluindo o período Pós-Guerra Fria – revela que a
superioridade de meios bélicos, por si só, é incapaz de assegurar
triunfos militares. Países detentores de meios bélicos mais fracos, mas
com capacidade dissuasória e de engajamento prolongado, lograram
frustrar os objetivos políticos e militares de Estados mais poderosos ao
minar a coesão interna destes em torno desses mesmos objetivos. Baseado
nessa experiência, ao mesmo tempo em que se orienta para a solução
pacífica e negociada de conflitos no âmbito do sistema multilateral de
governança global, o Brasil deve buscar preservar capacidade estratégica
dissuasória visando desencorajar eventuais tentativas de violação e/ou
constrangimento da sua soberania, sobretudo levando em conta o aumento
das pressões direcionadas a países em desenvolvimento detentores de
recursos naturais e ativos estratégicos, como é o nosso caso. Esta
capacidade se desdobra em projetos estratégicos das três Forças e no
investimento na sua capacidade de operação sustentada. O cenário
concebido, portanto, é de preparação para conflitos em que o Brasil se
encontre em posição de inferioridade de poderio bélico. Isto desenha o
cenário estratégico e define como o Brasil deve orientar e preparar a
defesa do seu território e das suas riquezas.
A segunda formulação chave é o conceito de entorno estratégico. No
que concerne aos países vizinhos do Brasil na América do Sul, na Bacia
do Atlântico Sul, na Antártica, na África Austral e os países em
desenvolvimento da Comunidade de Língua Portuguesa, a orientação
formulada visa complementar as iniciativas de integração econômica e
política com ações de cooperação na esfera militar. A ênfase maior
recai, naturalmente, sobre a América do Sul e o Atlântico Sul, ambientes
regionais no quais o Brasil está diretamente inserido. Aqui, a
estratégia formulada é dar sequência ao processo de integração e
cooperação com os países vizinhos inaugurado com o acordo nuclear entre
Brasil e Argentina que dissipou desconfianças mútuas na área militar e
viabilizou a construção do MERCOSUL e da União de Nações Sul-Americanas
(UNASUL). Na esfera da cooperação militar, o principal desafio é
fortalecer e consolidar o Conselho de Defesa Sul-Americano (CDS) como
instância integradora de ações na área de Segurança e Defesa no
subcontinente, para além da intensificação das ações de cooperação no
âmbito da Organização do Tratado de Cooperação Amazônica (OTCA) e da
Zona de Paz e Cooperação no Atlântico Sul (ZOPACAS).
A terceira orientação estratégica fundamental dessa política de
defesa é a estruturação de uma base industrial-tecnológica de defesa
nacional. Isto implica no enfrentamento e superação de barreiras
impostas por regimes multilaterais ou unilaterais de cerceamento de
transferência de tecnologia militar, que representam, na verdade, um
apartheid tecnológico, porque qualquer tecnologia passível de utilização
dual acaba por ter o seu acesso bloqueado. Isso afeta inúmeras áreas da
nossa economia, não só a defesa. Exemplo disso é a tecnologia de
sistemas inerciais, que guiam tanto veículos lançadores de satélites e
submarinos para exploração de petróleo e gás em águas profundas. É uma
tecnologia cuja transferência para o Brasil está bloqueada. A
preservação da capacidade de defesa do país exige, portanto,
investimento estratégico no desenvolvimento de tecnologias críticas
cerceadas e na massificação da capacidade produtiva nacional. Para isso
foi constituída uma Secretaria Nacional no Ministério da Defesa voltada
para produtos de defesa, que se articulava com as políticas de apoio à
inovação na indústria de defesa, apoiadas pelo BNDES e pela FINEP, que
tive a honra de presidir.
A Agenda Externa dos EUA e a Contraofensiva Conservadora no Continente
Mais do que simples mudança de governo, a ruptura institucional
consumada no Brasil visa reverter e inviabilizar o projeto de
desenvolvimento nacional e regional que começou a ser estruturado a
partir da eleição do governo Lula, bem como o movimento associado de
reposicionamento estratégico do Brasil e da América do Sul no mundo. Ela
se insere na ofensiva regional para desestabilizar os governos de
esquerda e centro-esquerda que ascenderam ao poder na região nas duas
ultimas décadas, que se traduziu na destituição dos presidentes
democraticamente eleitos de Honduras (em 2009) e do Paraguai (em 2012 –
neste caso, em processo de impeachment congressual, tal qual o Brasil);
na sucessão de tentativas de golpe processados no contexto de aguda
polarização político-social da Venezuela; no recurso a ações de aguda
violência física extraparlamentar no Equador (em 2010) na Bolívia (que
se estende até os dias de hoje); e nas derrotas eleitorais impostas aos
governos do Chile (em 2010, revertida em 2013) da Argentina (em 2015) e
do Peru (em 2016). Um elemento comum a esses variados processos de
desestabilização é a forte instrumentalização, por parte de
conglomerados monopolistas privados de comunicação e seus aliados
políticos, da bandeira da corrupção econômica ou moral para desconstruir
e deslegitimar as lideranças políticas carismáticas que encabeçaram o
processo de mudança na região, procurando minar e dividir sua base de
sustentação congressual e social.
Esta contraofensiva conservadora no continente - com recurso
crescente a métodos e alternativas antidemocráticas - se relaciona à
resposta dada pelas potências centrais, em particular os Estados Unidos,
à erosão do seu poder hegemônico. Estudiosos das mudanças de ordens
hegemônicas no sistema internacional indicam que, ao se deparar com o
enfraquecimento do seu poder relativo na ordem mundial que encabeçam, as
potências dominantes tendem a instrumentalizar unilateralmente os
recursos de poder em que ainda tem prevalência, para tentar conter e/ou
minar a consolidação de novos polos de poder no sistema (movimento que
Robert Gilpin chama de passagem da “hegemonia benevolente” para a
“hegemonia coercitiva”). Para além de variações de forma e de ênfase
entre administrações republicanas e democratas, a evolução da política
externa dos EUA nas duas últimas décadas é marcada pelo crescente
recurso a ações unilaterais de força à margem das instituições
multilaterais globais, como evidenciado nas desastradas intervenções no
Afeganistão, no Iraque e na Líbia (além da frustrada escalada para
intervenção na Síria), bem como no recurso intensivo a ações de “guerra
cambial” (instrumentalizando o poder estrutural do dólar nos mercados
globais) no contexto da crise econômica mundial deflagrada em 2007.
A consolidação mais recente desta orientação se encontra na
Estratégia Militar Nacional 2015, elaborado pelo Estado Maior Conjunto
das Forças Armadas dos Estados Unidos. Vale destacar que este documento
oficial aponta que, mesmo na esfera militar, “vantagens competitivas
mantidas pelos EUA por longo tempo estão hoje em xeque”. São
identificadas duas ameaças principais à segurança dos Estados Unidos no
contexto das rápidas mudanças em curso no cenário estratégico global. A
primeira é a que o documento chama de “organizações extremistas
violentas” (VEO na sigla em inglês), com destaque para o Estado Islâmico
e para a Al Qaeda. Na sua origem, trata-se, na verdade, de organizações
fomentadas e apoiadas pelos Estados Unidos no Oriente Médio para
desestabilizar regimes considerados adversários (o regime pró-soviético
do Afeganistão nos anos ’80 e os regimes seculares de orientação
“anti-imperialista” – Iraque, Líbia e Síria – mais recentemente). Na
medida em que passaram a alvejar, também, os EUA e seus aliados, foram
classificadas como “extremistas”, “violentas” e “terroristas”. Mas
segundo o próprio documento, as VEOs não constituem a principal ameaça à
segurança dos Estados Unidos. A ameaça principal é a que o documento
chama de “estados revisionistas”. Esta nomenclatura abarcaria os estados
que procuram “revisar” aspectos cruciais dos processos e instituições
que compõe a ordem mundial. Quatro países são explicitamente citados
como integrantes desta categoria: Rússia, Irã, Coréia do Norte e China.
No âmbito desta formulação, a mencionada agenda reformista dos países
BRICs em relação às instituições e mecanismos de governança global passa
a ser associada ao que a política de defesa dos EUA considera ser a
“principal ameaça” à segurança do país.
A agenda externa dos Estados Unidos vem traduzindo essa formulação em
ações, iniciativas e movimentos concretos. A política de cerco e
contenção da Rússia se materializou na expansão da OTAN para países e
regiões que integravam o antigo bloco soviético na Europa Central e do
Leste, bem como em ações para desestabilizar e depor governos que
mantenham relações mais próximas a Moscou, como ocorreu na Ucrânia
deflagrando a guerra civil que se estende até hoje no país. Em relação à
China, para além de tentar isolar e conter a sua liderança na Ásia
através da constituição do Tratado Transpacífico (TPP na sigla em
inglês), os Estados Unidos vem atiçando a intensificação das disputas
territoriais no Mar da China, que já se tornou a principal rota
comercial marítima do mundo suplantando em valor e volume de bens
transportados a tradicional rota Roterdã Nova Iorque.
Neste contexto, não constitui surpresa o fato de atores e interesses
importantes na formulação e execução da agenda externa dos EUA verem com
bons olhos a contraofensiva conservadora em curso na América do Sul. No
caso do Brasil, para além do esperado e protocolar reconhecimento do
Governo Temer como governo “de fato”, o embaixador dos Estados Unidos no
Conselho Permanente da OEA avançou para a defesa do processo de
impeachment no país contra as críticas formuladas por outros países
latino-americanos. Mas para além do apoio, até que ponto houve
protagonismo de atores e interesses responsáveis pela agenda externa dos
EUA nos processos de desestabilização dos governos progressistas na
região, e no processo de ruptura institucional no Brasil em particular?
Na prolongada crise política da Venezuela, o envolvimento dos Estados
Unidos é mais evidente. No caso da crise política brasileira, há
indícios que já podem ser apontados, e que certamente serão
complementados por informações colhidas após a liberação posterior de
arquivos oficiais para pesquisa, como aconteceu no caso do golpe
civil-militar de 1964. Um primeiro forte indício veio com as informações
vazadas pelo Wikileaks do Julian Assange em 2013, a partir de
informações obtidas por Edward Snowden, que revelaram que o governo
brasileiro era um dos principais alvos dos sistemas de monitoramento de
comunicações pelos órgãos de segurança dos Estados Unidos, em especial a
Agência de Segurança Nacional (NSA). O volume e grau de espionagem eram
equivalentes ao dirigido aos estados acima apontados como “grave ameaça
à segurança” dos EUA, nomeadamente a Rússia e a China. Para além de
altos dirigentes do Estado brasileiro – incluindo a própria Presidente
da República – outra alvo prioritário do monitoramento era a Petrobras.
Vazamentos mais recentes da Wikileaks revelaram encontros patrocinados
pela Embaixada dos Estados Unidos entre empresas petrolíferas americanas
e líderes da oposição de então no Brasil como o Senador José Serra do
PSDB, em que este se compromete a alterar o regime de partilha na
exploração do pré-sal caso viesse a ascender ao poder.
Um segundo indício remete às revelações do Wikileaks sobre relações
de cooperação desenvolvidas por setores do judiciário, da Polícia
Federal e do Ministério Público do Brasil com órgãos de segurança e
investigação dos EUA ainda em 2009, visando integração de ações e
treinamento no combate ao “financiamento do terrorismo”, em um momento
em que as autoridades do governo brasileiro responsáveis por conduzir a
agenda internacional do país não consideravam essa temática adequada ou
relevante para a cooperação do Brasil com os Estados Unidos. O Juiz
Sérgio Moro foi protagonista destacado na viabilização desta cooperação.
O objetivo manifesto era identificar e minar sistemas de lavagem de
dinheiro associados ao financiamento de grupos terroristas. Para tal,
foram instituídos procedimentos para troca de informações e treinamento
em “melhores práticas” para a sua obtenção e validação. Curitiba foi um
dos centros selecionados para o treinamento continuado de forças tarefas
nas referidas práticas.
Da “Guerra ao Terror” à “Guerra à Corrupção”
No caso da “Guerra Global ao Terror” deflagrada pelos EUA após os
atentados de 11 de setembro de 2001, sabemos que isso significou fortes
ataques e violações de direitos civis e humanos, a ponto de aceitar
práticas de tortura para a obtenção de informações (desde que não
praticadas contra cidadãos americanos). A lógica era de que os “fins”
(combate ao terrorismo) justificavam os “meios” (restrição e violação de
direitos individuais). A mesma lógica foi reproduzida na Operação Lava
Jato, com outros “fins” (o combate à corrupção) justificando práticas
violadoras de direitos e garantias individuais, como a prisão por tempo
indeterminado de suspeitos até que estes firmassem acordos de delação
confirmando as acusações dos investigadores; o vazamento seletivo e
antecipado para os meios de comunicação de partes do processo de
investigação para criar na opinião pública juízo condenatório de
lideranças políticas e empresariais suspeitas (alimentando a campanha
mediática para deslegitimar as principais lideranças do novo ciclo
político no país); o vazamento de diálogos captados ilegalmente,
inclusive da própria Presidente da República; a gravação ilegal de
diálogos de advogados de defesa em pleno exercício profissional; a
negação do princípio constitucional fundamental da presunção de
inocência dos acusados; entre outros. Baseados na experiência americana,
operadores da Lava Jato defendem abertamente, inclusive, que até mesmo
provas ilícitas devem ser validadas em processos investigatórios quando
obtidas “de boa fé”. Essas práticas, examinadas em chave weberiana,
substituem a ética prudencial da política pela vontade punitiva de
estratos do aparato estatal com função investigatória que atuam com
autonomia quase ilimitada e, por não integrarem o sistema político
formal, não tem de prestar contas pelas consequências dos seus atos.
Como a possibilidade de algum grupo recorrer a ações terroristas é
permanente, bem como o é o risco da malversação de recursos públicos por
gestores desonestos, banaliza-se o uso seletivo e politicamente
orientado de práticas e expedientes próprios de regimes de exceção: uma
grave ameaça ao Estado Democrático de Direito, conquistado há tão pouco
tempo – e a duras penas – no Brasil. Mas é mais do que isso.
Os principais alvos da operação, como se sabe, são justamente as
empresas estatais e privadas que desempenharam papel estratégico e
estruturante no novo projeto nacional de desenvolvimento que se gestava
no país e nas iniciativas de integração física da América do Sul (com
destaque para a Petrobras e as grandes empresas nacionais de construção
de infraestrutura). Essas empresas – e as críticas cadeias de valor a
elas associadas – foram cerceadas, estranguladas e inviabilizadas,
contribuindo decisivamente para a crise econômica que se instalou no
país a partir de 2015, o que alimentou, por sua vez, a crise política
que resultou no impeachment. Ou seja, os prejuízos econômicos e sociais
provocados pelos métodos adotados no “combate à corrupção” são
incomparavelmente maiores e mais profundos do que os gerados pelos atos
de corrupção em si. Há que se ver e comprovar, ainda, até que ponto
informações fornecidas seletivamente pelo FBI e outros órgãos de
investigação dos Estados Unidos contribuíram para este desfecho,
atendendo objetivos mais amplos da agenda externa dos EUA. O fato é que
as consequências econômicas e políticas da operação desestabilizaram não
apenas o governo, mas todo o projeto nacional e regional de
desenvolvimento e os seus atores estratégicos.
Isto não significa que, em nome da preservação desse projeto, devamos
ser lenientes e permissivos com práticas de corrupção. O ponto é que o
combate à corrupção não pode ser conduzido com base na violação de
direitos e garantias individuais, e a punição dos dirigentes empresarias
e políticos envolvidos no desvio e apropriação de recursos públicos não
pode acarretar a paralisia e/ou inviabilização de empresas essenciais
para o desenvolvimento do país. Vale registrar, como exemplo, a
experiência da Alemanha na reconstrução do pós-guerra, que preservou e
viabilizou empresas que haviam cultivado relações estreitas com o regime
nazista e lucrado com atividades associadas ao trabalho forçado e ao
extermínio (como a Bayer, Hugo Boss e Siemens, entre outras). As
punições dos dirigentes envolvidos e as indenizações determinadas para a
reparação das vítimas não inviabilizaram a continuidade da operação
dessas empresas, consideradas atores fundamentais e estratégicos para a
reconstrução econômica e o desenvolvimento da Alemanha.
Perspectivas Pós-Ruptura
A ruptura democrática em curso no Brasil configura-se, assim, como
ruptura de um projeto de desenvolvimento, executada por um governo não
sufragado pela soberania popular para exercer as funções que ocupa. Os
anúncios iniciais do novo governo apontam para um retrocesso global, não
apenas em relação ao projeto de desenvolvimento que começou a ser
estruturado na última década, mas também em relação a conquistas sociais
da Constituição de 1988 e da própria Revolução de 30. Anuncia-se o
congelamento do patamar de investimentos em Saúde e Educação até 2037
(para garantir a transferência ilimitada de recursos da sociedade para o
capital financeiro via dívida púbica); o desmonte das bases de proteção
ao trabalhador sacramentadas na CLT (com a promoção da terceirização e o
predomínio de acordos negociados sobre as garantias legais); a
desvinculação da previdência do sistema de seguridade social (com perda
de direitos de aposentadoria e da sua dimensão redistributiva); a
retração dos bancos públicos (com reorientação da sua atuação para
fomentar processos de privatização); entre outros. Não está claro,
ainda, o que será efetivamente proposto ou implementado nesta agenda.
Afloram as tensões e contradições na própria base do novo governo em
relação a essas propostas, e a oposição da base social do governo
deposto se rearticulou de forma rápida e contundente contra os novos
rumos anunciados.
A dimensão em que a reorientação de rumos pelo novo governo avançou
mais rapidamente foi na agenda externa, com o desmonte do papel de pivô
da integração sul-americana exercido pelo país neste início de século.
Sob a liderança de José Serra no Ministério das Relações Exteriores
(MRE) foram abertos contenciosos diplomáticos com inúmeros vizinhos,
configurando um retrocesso até mesmo em relação às iniciativas de
aproximação e integração promovidas pelos governos Sarney, Itamar e FHC.
Não está claro, ainda, qual será a posição do novo governo em relação à
iniciativa BRICs. O governo dá sinais de que poderá enfraquecer a
atuação do bloco, para privilegiar uma relação bilateral mais próxima
com a China. De maneira geral, o que parece orientar a sua agenda
externa é a retomada, em bases mais extremadas, da politica que marcou
os anos FHC e que seu finado chanceler Luiz Felipe Lampreia cunhou de
“autonomia pela integração”: a compreensão de que o melhor caminho para o
país se se desenvolver é buscar nichos favoráveis em cadeias globais de
valor comandados pelos centros ainda dominantes do sistema. Mas essa
orientação não corresponde à profunda transição em curso na ordem
mundial, examinada nesta conferência. Essa transição estrutural tende a
minar – a médio e longo prazo – a agenda das forças internas e externas
que provocaram a atual ruptura institucional no Brasil, o que abre
caminhos políticos para a retomada do projeto de desenvolvimento
nacional e regional interrompido, com a devida superação de erros e
limitações da sua primeira etapa de implantação.
REFERÊNCIAS DE AUTORES E TEXTOS CITADOS
* Aula inaugural proferida no IESP/UERJ em 5 de setembro de 2016.
** Luis Fernandes é Doutor em Ciência Política pelo antigo
Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (IUPERJ) e
graduado em Relações Internacionais pela Universidade de Georgetown nos
Estados Unidos. É professor do Instituto de Relações Internacionais
(IRI) da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio) e
da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Suas atividades de
pesquisa se concentram em temas de Economia Política das Relações
Internacionais, com destaque para os desafios da inovação e do
desenvolvimento na era do conhecimento, as transformações nos estados
socialistas e ex socialistas, e a reconfiguração das relações de poder
no sistema internacional pós-Guerra Fria. Exerceu distintas funções de
gestão pública na área de Ciência, Tecnologia e Inovação (CT&I) no
Brasil, entre as quais as de Secretário Executivo do Ministério da
Ciência e Tecnologia (MCT), Presidente da Financiadora de Estudos e
Projetos (FINEP) e Diretor Científico da Fundação Carlos Chagas Filho de
Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ).
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